Constituição e Poder

Predomínio da tópica jurídica promove crise na teoria das fontes do Direito

Autor

  • Marco Aurélio Marrafon

    é advogado professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com estudos doutorais na Università degli Studi Roma Tre (Itália). É membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

8 de junho de 2015, 18h42

Spacca
Quando falamos em Estado de Direito, uma primeira lição básica deve surgir na mente: a substituição da vontade do rei pelas determinações da lei significa que o Direito — representado primeiramente pela Lei Fundamental (Constituição) — está acima da vontade dos homens, aprisionando e impondo limites à política ordinária.

Por óbvio, em situações de extrema ineficácia e falta de legitimidade, a democracia constituinte pode/deve revolucionar as estruturas jurídicas e criar um novo Direito. No entanto, é justamente essa exceção que confirma a regra: uma das maiores conquistas da modernidade — o Império da Lei e o princípio da legalidade dele decorrente — significa que a realização do Direito não está mais nas mãos dos juízes e/ou do rei. Está na Constituição e, no âmbito da democracia ordinária, nas leis oriundas do Parlamento.

E é justamente para que a prioridade constitucional/legislativa se realize que a teoria das fontes estabelece parâmetros para a atuação judicial, enquanto uma primeira tentativa de evitar decisões contraditórias para casos iguais/semelhantes.

Estabelecidas essas premissas, surge uma conclusão importante: se a Constituição e a legislação perdem seu valor e permite-se que sobre ambas se diga qualquer coisa que interesse ao caso concreto – ainda que no afã de fazer justiça –, temos então elementos para constatar que a teoria das fontes e, logo, o Estado de Direito começam a ser violados. Se a violação se torna uma regra, aí a situação se agrava e voltamos ao governo dos homens e não da lei.

E é nesse rumo casuístico e tópico que, cada vez mais, a jurisprudência brasileira tem seguido, gerando julgados de todos os tipos sem ao menos se preocupar com a robustez teórica de Theodor Viehweg, que em 1953 publicou seu clássico Tópica e Jurisprudência.

Nesse contexto, a coluna de hoje discute alguns fundamentos da Tópica de Viehweg para demonstrar como esse modo de pensar o Direito por problemas pode ser prejudicial à teoria das fontes e à supremacia constitucional[1].

Elementos fundamentais

A tópica jurídica pode ser vista sob três perspectivas diferentes:

i. do objeto: é técnica do pensamento problemático, porque se relaciona com um problema, que no direito é um caso concreto que permite diferentes respostas jurídicas válidas;

ii. do instrumento: opera a partir da noção de topos (topoi) ou lugar comum da argumentação, cuja natureza é de uma premissa éndoxa;

iii. do tipo de atividade: é atividade de busca e exame de premissas colocadas em debate, na tentativa de obtenção de um consenso que forneça uma única resposta válida[2].

Esses três eixos não são, necessariamente, excludentes entre si, mas antes mostram pilares da teoria que, de certo modo, permitem defini-la como uma “técnica do pensamento problemático”, porque parte do problema, buscando solucioná-lo sem dele se desvincular, opera e se realiza através dos topoi, os quais são as premissas examinadas e confrontadas dialeticamente na busca de uma verdade que seja uma solução justa para o caso concreto.

Viehweg propõe que a tópica jurídica deve ser dividida em dois níveis: o primeiro deles é a tópica de primeiro grau, momento da invenção ou busca de argumentos, onde se depara com um problema e obtém-se, “através de tentativas, pontos de vista mais ou menos casuais, escolhidos arbitrariamente”[3],  que sirvam como premissas adequadas ao caso.

Para repelir a falta de segurança desse procedimento, Viehweg distingue entre topoi (argumentos geralmente aceitos) universalmente aplicáveis e os que são aplicáveis apenas a determinado ramo, servindo apenas para um determinado círculo de problemas.

Assim, a tópica de primeiro grau tem como diretriz a busca de pontos de vista mais específicos, aplicáveis apenas à esfera do conhecimento inerente ao problema para, ao prepará-los e organizá-los de antemão, produzir os “catálogos de topoi”. Em palavras mais coloquiais, nesta etapa se separam os argumentos do senso comum dos argumentos propriamente jurídicos que podem resolver um caso.

Já a tópica de segundo grau é equivalente ao momento da formação do juízo, onde se escolhe um entre os de topoi previamente aceitos e selecionados para realizar a dedução lógica e chegar a uma conclusão que irá solucionar o problema.

Viehweg explica que a real dimensão da tópica jurídica é compreendida quando se conjugam os dois níveis do procedimento tópico, de tal modo que ela não se confunda com a perspectiva axiomática dedutiva, porque “o modo de buscar as premissas influi na índole das deduções e, ao contrário, a índole das conclusões indica a forma de buscar as premissas”[4].

Isso porque esses pontos de vista juridicamente aceitos não são concebidos previamente, de maneira abstrata e geral, no sentido de que é um único sistema que vai dar a solução de antemão, mas sim como uma pluralidade de sistemas que podem ser selecionados para alcançar a resposta almejada, cujos nexos dedutivos são de curto alcance à medida que a ordem da solução normativa está sempre por ser determinada em razão de um problema específico.

Em relação à necessidade de, entre as premissas suscitadas, propiciar uma única escolha na formação do juízo decisório, Viehweg propõe que ela (premissa) deve preencher os requisitos de racionalidade e justiça dos topoi a partir da teoria da argumentação, de modo que o consenso indicaria a escolha do melhor ponto de vista como solução do caso.

Não há dúvida que esse conjunto de diretrizes trouxe contribuições, mas tampouco se pode ignorar os problemas dela advindos para a teoria do direito.

Falando das contribuições, sem dispensar o conceito de sistema no Direito, Helmut Coing lembra que esse método é utilizado “na interpretação de pontos duvidosos da lei bem como na sua aplicação e formação. Também a explicação da disputa entre as partes no procedimento judicial na verdade é algo diferente de um processo de argumentação de ida e vinda, no qual são apresentados ao juiz os argumentos relevantes de natureza fática e jurídica, para a decisão do caso”[5].

Mais comedido, Karl Larenz admite que “o livro de Viehweg suscitou um interesse pouco habitual. Não pode, efectivamente, negar-se que os juristas argumentam, por várias vias, topicamente, por exemplo nas audiências de julgamento”. No entanto, esse mesmo autor lembra que, na motivação da sentença, é preciso um processo intelectual ordenado, mantendo a coerência no conteúdo e a consistência lógica, de modo que “o apelo à tópica seria de reduzida valia”[6].

Ora, duas ideias fundamentais da tópica tiveram grande importância nas teorias jurídicas contemporâneas: a ênfase no caso concreto (problema) e o debate sobre a natureza das premissas jurídicas, não mais vistas como verdades, mas como pontos de vista ou argumentos que, uma vez postos à prova, são fontes de sustentação da decisão judicial.

Nessa perspectiva, o direito passaria a ser pensado de maneira atrelada à realidade social, com o dever de justiça e exigência de uma fundamentação argumentativa, e não mais de maneira axiomática, fria e distante do ‘ser’.

Não à toa, Paulo Bonavides entende que a Constituição aberta representa o campo ideal da intervenção do método tópico, justamente por contemplar o aspecto material e os valores pluralistas de uma sociedade dinâmica[7].

Contudo, o próprio Bonavides admite que a tópica de Viehweg deve ser compreendida nos quadros da reação ao positivismo e racionalismo jurídico e que, se levada às últimas consequências, pode ter efeitos ruinosos para a normatividade constitucional[8], atingindo principalmente a Constituição formal.

Isso porque, enquanto teoria para a compreensão do fenômeno jurídico e de sua aplicação, a tópica se mostra insuficiente e deveras imprecisa, notadamente quando se pensa na busca de critérios racionais de julgamento e efetivação de certa ordem constitucional, sendo neste sentido grande parte das críticas proveniente da doutrina mais abalizada.

Também Garcia Amado entende que em função da indefinição e generalidade abstrata de seu objeto, de seus objetivos e de sua terminologia, a tópica jurídica se apresenta como uma explicação parcial de diversas atividades jurídicas (aplicação do direito, interpretação dos fatos, tentativa de evitar colisões), sem fornecer uma explicação convincente em nenhuma delas[9].

Em sentido semelhante, Atienza oferta uma crítica contundente ao entender que Viehweg exagera na oposição entre pensamento tópico e sistemático, além do que praticamente todas as noções básicas da tópica são imprecisas e até mesmo equívocas[10].

Tal crítica se inicia com a pluralidade de concepções do conceito de tópica jurídica, passa pela noção de problema, visto como de restrita utilidade para o direito, mas atinge principalmente a definição de topoi, uma vez que não é possível apreender se ele é equivalente a argumento, se é ponto de referência para a obtenção de argumentos, se é enunciado de conteúdo ou ainda forma argumentativa.

O próprio Viehweg admite que não há uniformidade em todos os ‘catálogos de topoi’ manejados pelos estudiosos ao longo dos séculos, na medida em que os tópicos (como argumentos utilizados na solução de problemas jurídicos ou cânones de interpretação) ganham sentido apenas a partir do problema e da realidade histórica em que está inserido, mesmo porque sua definição é imprecisa.

Tamanha é a imprecisão que Tércio Sampaio Ferraz Jr arrisca a seguinte aproximação do que seriam os topoi jurídicos:

No Direito, são topoi, neste sentido, noções como interesse, interesse público, boa fé, autonomia da vontade, soberania, direitos individuais, legalidade, legitimidade. Viehweg assinala que os topois, numa determinada cultura, constituem repertório mais ou menos organizados conforme outros topoi, o que permite séries de topoi. Assim, por exemplo, a noção de interesse permite construir uma série do tipo interesse público, privado, legítimo, protegido etc[11]

Atienza aponta, ainda, que a tópica não é uma teoria autêntica e suficiente de argumentação, propõe uma teoria ingênua de Justiça sem criar um método que permita discutir racionalmente essa questão e que não haja distinção entre sua tese prescritiva e descritiva[12].

Nesse ponto, filósofos do direito são quase unânimes em afirmar que a tópica de Viehweg se limita a investigar de maneira pouco profunda a argumentação jurídica, diminuindo a importância da lei, da dogmática jurídica e dos precedentes no raciocínio das decisões jurídicas, não admitindo critérios de hierarquia entre os topoi.

Desta feita, ao subestimar a ideia de sistema e assim desprezar a hierarquia normativa e a teoria das fontes do Direito, a tópica jurídica – enquanto teoria prescritiva da decisão judicial – promove a desestruturação da ordem constitucional e prejudica a tão necessária realização do Estado Democrático de Direito.


[1] As citações de Viehweg que seguem são todas oriundas da mesma obra: VIEHWEG, Theodor.  Tópica e jurisprudência.  trad. Tercio Sampaio Ferraz Jr. Brasília: Departamento da imprensa nacional, 1979, p. 27. (col. Pensamento Jurídico Contemporâneo, vol. 01). p. 36 e ss.
[2]Essa síntese é baseada nas conclusões de: ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. Trad. Maria Cristina Guimarães Cupertino, 2ª ed. São Paulo: Landy editora, 2002.p. 65; GARCIA AMADO, Juan Antonio. Teorias de la topica jurídica. Madrid: Editorial Civitas, 1988; ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Trad. Zilda HutchinsonSchild Silva, São Paulo: Landy editora, 2001.
[3] VIEHWEG, Theodor. Op.cit, p. 36.
[4] Id., ibid., p. 40.
[5] COING, Helmut. COING, Helmut.  Elementos fundamentais da filosofia do direito. Trad. da 5 ed. alemão por Elisete Antoniuk. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. p. 366-367.
[6]LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3ª ed. trad. Jose Lamego. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 1997, p. 204.
[7] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 13 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 495.
[8] Id., ibid., p. 498.
[9]GARCIA AMADO, Juan Antonio. Op.cit., p. 92.
[10]ATIENZA, Manuel. Op.cit., p. 70 e ss.
[11]FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Prefácio In: VIEHWEG, Theodor, Tópica e Jurisprudência. Op.cit., p. 04.
[12] ATIENZA, Manuel. Op. cit., p. 72 a 76.

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