Paradoxo da Corte

Notas sobre os conceitos de jurisprudência, precedente judicial e súmula

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7 de julho de 2015, 11h41

Verifica-se que, sob o ponto de vista técnico, reina inequívoca imprecisão na prática do direito daquilo que se concebe por jurisprudência, precedente judicial e súmula (e suas respectivas classificações). Assim, entendemos que se torna necessário traçar os respectivos conceitos, para que os juízes possam orientar-se ao proferir as suas decisões e os advogados invocá-los e argumentar corretamente em seus arrazoados.

Dúvida não há de que a jurisprudência, os precedentes judicias e as súmulas são produzidos exclusivamente pelos tribunais colegiados[1].

Em sistemas jurídicos de civil law, como o nosso, nos quais predomina a legislação escrita, o termo jurisprudência — que é polissêmico —  geralmente indica uma pluralidade de decisões relativas a vários casos concretos, acerca de um determinado assunto, mas não necessariamente sobre uma idêntica questão jurídica. Esse modo de lidar com a jurisprudência, cujo conhecimento é, via de regra, fornecido pela consulta rápida nos sítios eletrônicos dos próprios tribunais revela, em algumas hipóteses, a tendência do posicionamento pretoriano sobre a interpretação de determinado texto legal.

Invoca-se, por exemplo, a jurisprudência, aludindo-se, de um modo geral, a muitas decisões, causando sempre certa dificuldade para estabelecer qual tese é realmente relevante, ou mesmo para aferir qual ou quais julgados tratam especificamente da interpretação de um fundamento no qual lastreada a questão sob apreciação judicial.

Como bem observa Michele Taruffo, não é fácil desvendar, entre inúmeros arestos citados à guisa de jurisprudência, qual a posição realmente dominante.[2]

Na verdade, em nossa experiência jurídica, num universo jurídico com mais de 50 tribunais de segundo grau, a respeito de muitas teses descobrem-se, não raro, num mesmo momento temporal, acórdãos contraditórios, evidenciando significativa ausência de uniformidade da jurisprudência e, como natural decorrência, consequente insegurança jurídica. E esse grave inconveniente pode ser inclusive constatado, por paradoxal que possa parecer, num mesmo tribunal, revelando divergência de entendimento, intra muros, entre câmaras, turmas ou sessões.

Não obstante, afirma ainda Taruffo, que a jurisprudência pode desfrutar de acentuada eficácia persuasiva se ficar demonstrado que o julgamento sobre determinada quaestio iuris, reiterado em vários acórdãos, desponta uniforme e sedimentado.

Saliente-se, por outro lado, que os órgãos judicantes, no exercício regular de pacificar os cidadãos, descortinam-se como celeiro inesgotável de atos decisórios. Assim, o núcleo de cada um destes pronunciamentos constitui, em princípio, um precedente judicial.  O alcance deste somente pode ser inferido aos poucos, depois de decisões posteriores.[3] O precedente então nasce como uma regra de um caso e, em seguida, terá ou não o destino de tornar-se a regra de uma série de casos análogos.

Bem é de ver que, pressupondo, sob o aspecto temporal, uma decisão já proferida, todo precedente judicial é composto por duas partes distintas: a) as circunstâncias de fato que embasam a controvérsia; e b) a tese ou o princípio jurídico assentado na motivação (ratio decidendi) do provimento decisório, que aspira certo grau de universalidade.

O precedente sempre corresponde a um pronunciamento judicial atinente a um caso concreto. Não é possível conceber um julgado como precedente se a interpretação da norma por ele aplicada não estiver diretamente conectada ao caso concreto que foi objeto de decisão.[4]

Quando se alude a precedente refere-se, geralmente, a uma decisão relativa a uma situação particular, enquanto, como acima visto, a citação da jurisprudência encerra uma pluralidade de decisões relativas a vários e diversos casos concretos.

A diferença não é apenas semântica. O fato é que nos sistemas de common law, que se fundam tradicional e tipicamente na máxima do stare decisis, geralmente a decisão que é considerada precedente é apenas uma[5]; ou, no mínimo, poucas decisões sucessivas que vêm citadas para sustentar o precedente. Desse modo, é fácil identificar quais pronunciamentos realmente “geram precedente”.

Diferentemente da citação da jurisprudência, na qual se reportam a trechos ou extratos mais ou menos sintéticos da motivação, o precedente somente é compreendido pela interpretação da controvérsia antes resolvida. É assim do cotejo — técnica do distinguish — da integralidade de pelo menos duas situações fáticas (a já julgada e a que está sob julgamento), que o julgador estabelece a relação de precedente aplicável ou não incidente ao caso concreto.  Ressalte-se, a propósito, segundo precisa observação de Thomas Bustamante, que o distanciamento do precedente não implica seu completo abandono — “ou seja,  sua  validade  como  norma universal não é infirmada” —, mas tão-somente a sua não aplicação em determinada hipótese concreta.[6]

Ademais, sob outro enfoque — ainda segundo Taruffo —, não é simplesmente uma questão quantitativa: o precedente produz uma regra universal, que pode ser aplicada como critério de decisão num caso sucessivo em função da identidade ou da analogia entre os fatos do primeiro caso e os fatos do segundo caso. “Naturalmente, a analogia dos dois casos concretos não é dada in re ipsa… É, com efeito, o juiz do caso sucessivo que estabelece se existe ou não existe o precedente e, portanto, ‘cria’ o precedente. A estrutura fundamental do raciocínio que leva a aplicar o precedente ao caso sucessivo é fundada sobre a comparação dos fatos. Se esta análise justifica a aplicação no segundo caso da ratio decidendi aplicada no primeiro, o precedente é eficaz e pode determinar a decisão do segundo caso. Note-se que, quando se descortinam estas condições, apenas um único precedente é suficiente para fundamentar a decisão do caso sucessivo”.[7]

Sob o aspecto institucional, a situação típica de aplicação do precedente é aquela de eficácia vertical, decorrente da autoridade hierárquica do órgão que emitiu o precedente em relação ao órgão incumbido de decidir o litígio posterior.

Diante desta importante perspectiva, os tribunais superiores são atualmente concebidos, especialmente em países federados, como o Brasil, para exercerem a importante função nomofilácica em prol da uniformização da interpretação e aplicação do direito, ou seja, de verdadeiras cortes de precedentes.[8]

Ao enfrentarem questões polêmicas ou teses jurídicas divergentes, os tribunais também produzem máximas ou súmulas que se consubstanciam na enunciação, em algumas linhas ou numa frase, de uma “regra jurídica”, de conteúdo preceptivo. Trata-se de uma redução substancial do precedente. A aplicação da súmula não se funda sobre a analogia dos fatos, mas sobre a subsunção do caso sucessivo a uma regra geral.[9]

A construção de súmulas remonta a uma prática tradicional e consolidada do sistema judiciário luso-brasileiro. Não deriva da decisão de um caso concreto, mas de um enunciado interpretativo, formulado em termos gerais e abstratos. Por consequência, o dictum sumulado não faz referência aos fatos que estão na base da questão jurídica julgada e assim não pode ser considerado um precedente em sentido próprio, “mas apenas um pronunciamento judicial que traduz a eleição entre opções interpretativas referentes a normas gerais e abstratas. Sua evidente finalidade consiste na eliminação de incertezas e divergências no âmbito da jurisprudência, procurando assegurar uniformidade na interpretação e aplicação do direito”.[10]


[1]. As sentenças monocráticas, quando invocadas em casos análogos, constituem exemplos e importante subsídio, mas não são consideradas “jurisprudência” na acepção do termo.

[2]. Precedente e giurisprudenza, Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, 2007, p. 714.

[3]. Cf., nesse sentido, Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, Tratado da argumentação. A nova retórica, tr. port. Maria Ermantina Galvão, São Paulo, Martins Fontes, 2002, p. 404.

[4]. Cf., também, Taruffo, Precedente e giurisprudenza, Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, cit.,  p. 712.

[5]. É por esta razão que os operadores do common law invocam na maioria das vezes um determinado caso para indicar um precedente, como, p. ex.,  Mac Pherson v. Buick Motor Co.

[6]. Thomas da Rosa Bustamante, Teoria do precedente judicial, São Paulo, Noeses, 2012, p. 471.

[7]. Precedente e giurisprudenza, Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, cit., p. 712.

[8]. V., nesse sentido, dentre outros, Luiz Guilherme Marinoni, A ética dos precedentes, São Paulo, Ed. RT, 2014, p. 102,

[9]. Cf. Taruffo, Precedente e giurisprudenza, Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, cit., p. 713.

[10]. Michele Taruffo, Las funciones de las Cortes Supremas: entre uniformidade y justicia, Proceso y Constitución – El rol de las Altas Cortes y el derecho a la impugnación, Lima, Palestra Ed., 2015, p.136-137.

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