Por que tenho medo dos examinadores
das bancas de concursos públicos?
31 de janeiro de 2015, 7h00
Vejamos um episódio recente e ilustrativo. No último domingo (25/1), em Santa Catarina, houve a prova escrita do concurso público para admissão no Curso de Formação de Oficial (CFO) da Polícia Militar, realizado pelo Instituto O Barriga Verde (IOBV), que reuniu 2.688 candidatos para um total de apenas 70 vagas (65 para homens e 5 para mulheres).
Na prova de direito processual penal militar, os candidatos depararam-se com a seguinte questão (de número 45):
De conformidade com a disciplina do Código de Processo Penal Militar quanto ao inquérito policial militar, assinale a alternativa incorreta:
(a) A autoridade militar não poderá mandar arquivar autos de inquérito, embora conclusivo da inexistência de crime ou de inimputabilidade do indiciado.
(b) O encarregado do inquérito poderá manter incomunicável o indiciado, que estiver legalmente preso, por três dias no máximo.
(c) A testemunha não será inquirida por mais de quatro horas consecutivas, sendo-lhe obrigatório o descanso de meia hora, sempre que tiver de prestar declarações além daquele termo. O depoimento que não ficar concluído às dezenove horas será encerrado, para prosseguir no dia seguinte, em hora determinada pelo encarregado do inquérito.
(d) O inquérito deverá terminar dentro em vinte dias, se o indiciado estiver preso, contado esse prazo a partir do dia em que se executar a ordem de prisão; ou no prazo de quarenta dias, quando o indiciado estiver solto, contados a partir da data em que se instaurar o inquérito. Este último prazo poderá ser prorrogado por mais vinte dias pela autoridade militar superior, desde que não estejam concluídos exames ou perícias já iniciados, ou haja necessidade de diligência, indispensáveis à elucidação do fato.
Qual a resposta certa?
Segundo o gabarito preliminar divulgado no mesmo dia, a resposta certa é a letra “C”. Isto porque o examinador modificou a redação prevista no artigo 19, parágrafo 2º, do Código de Processo Penal Militar, ao alterar o prazo de “dezoito horas” para “dezenove horas”, tornando, assim, o enunciado incorreto. É genial, não? A criatividade humana não tem limites. Fico imaginando a competência e a habilidade que esta questão é capaz de aferir…
Mas e a letra “B”? Por que não?
Para o examinador, que simplesmente copiou o texto do artigo 17 do mesmo Código, o enunciado é verdadeiro. O único detalhe do qual ele se esqueceu ao elaborar a prova foi que a Constituição, desde 1988, contém um dispositivo em sentido contrário: “Na vigência do estado de defesa, é vedada a incomunicabilidade do preso” (artigo 136, parágrafo 3º, IV, CF).
Como se isto não bastasse, em seu catálogo de direitos fundamentais, a Constituição assegura que “a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada” (artigo 5º, LXII, CF) e, igualmente, que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado” (artigo 5º, LXIII, CF).
Tudo isto evidencia que o disposto na legislação castrense — outorgada pela junta militar provisória em 1969 — não foi recepcionado pela atual ordem constitucional. Dito de outro modo, o artigo 17 do CPPM, literalmente transcrito na letra “B” da questão nº 45 e considerado verdadeiro pelo gabarito preliminar do concurso, está revogado pela Constituição. E, portanto, a questão é nula.
Este conflito entre o texto legal e o texto constitucional revela a necessidade de se realizar uma filtragem hermenêutica-constitucional do Código de Processo Penal Militar. Na verdade, a crença na incomunicabilidade do preso militar nos termos do referido dispositivo legal revela a confusão — ainda presente nos setores mais conservadores da ciência jurídica —- entre os planos da vigência e da validade das normas.
Ocorre que, como adverte Ferrajoli, a distinção entre vigência e validade é um dos pilares da teoria jurídica contemporânea. Conforme a lição do mestre italiano, em Diritto e ragione, uma coisa é o plano da vigência, que diz respeito à existência jurídica das normas; e outra, bem diferente, é o plano da validade, no qual se verifica se as normas vigentes estão em conformidade (formal e material) com a Constituição. É por isto, aliás, que uma norma pode ser vigente, porém inválida. Trata-se, em suma, de uma distinção que fundamenta o próprio controle judicial de constitucionalidade das leis.
E não me venham, aqui, defender a validade da questão sob o álibi retórico de que, em seu comando, o examinador utilizou a expressão "De conformidade com a disciplina do Código de Processo Penal Militar quanto ao inquérito policial militar". Tal argumento levaria a acreditar que a decoreba da legislação castrense é mais importante do que o conhecimento dos direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição, o que se mostra absolutamente temerário, especialmente quando se trata de concurso para a formação de oficiais da Polícia Militar.
Para finalizar e não deixar passar em branco: uma das razões pelas quais eu tenho medo dos examinadores dos concursos públicos se deve, precisamente, à incomunicabilidade entre eles. A prova escrita para o ingresso no Curso de Formação de Oficial é um exemplo disso. O examinador que elaborou as questões de Direito Processual Penal Militar não leu as questões de Direito Constitucional. Se o tivesse feito, teria visto que, na questão 18, indagou precisamente acerca da prisão no estado de defesa. A resposta certa, letra “C”, diz, in verbis: “Na vigência do estado de defesa a prisão ou detenção de qualquer pessoa não poderá ser superior a dez dias, salvo quando autorizada pelo Poder Judiciário, sendo vedada a incomunicabilidade do preso”. De outro lado, o examinador que elaborou as questões de direito constitucional, se tivesse realizado a prova, teria errado a questão mal formulada pelo seu colega, justamente por saber a matéria! É mole? Vida difícil a de concurseiro.
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