Senso Incomum

Novo estudo mostra porque se roda na OAB ou o que o BBB tem com isso?

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22 de janeiro de 2015, 7h00

Spacca
caricatura lenio luis streck 02 [Spacca]Li artigo aqui na Revista Consultor Jurídico concluindo que o grande problema do Exame de Ordem é que os candidatos não sabem escolher a sua área na segunda fase. É evidente que não poderia deixar passar a afirmação in albis. Fui cobrado por dezenas de leitores que me mandaram e-mails. Eis, portanto, minha análise sobre o assunto, apresentando outra visão sobre o assunto:  

No direito não é novidade dizer que a formação deficiente que o aluno traz consigo é componente importante para o fracasso na sua formação profissional, cujo primeiro reflexo é o Exame da OAB. O ensino jurídico vai mal. Muito aqui já escrevi. Tenho referido que não há professores suficientes para tantas faculdades. Denuncio, de há muito, que se criou uma espécie de “gambiarra docente”, uma laje construída em terreno à beira de morros, rios e abismos (gnosiológicos). Ou seja, improvisa-se. A faculdade necessita de um docente para direito constitucional? Sem problema: pega o cara que fez especialização à distância-tipo-cursinho-de-preparação-para-exame-de-ordem-ou-concurso-público (ou algum mestrado que aceita dissertação sobre agravo de instrumento), manda ele comprar um livro de direito constitucional resumido-facilitado-simplificado e, pronto. Eis aí o novo docente. E assim por diante.  Esse é modelo que pegou. Ah: e se é para lecionar disciplinas humanistas, mandam o neo-docente comprar um desses livros produzidos em série que explicam Kelsen em meia página e colocam Schleiermacher no século XVII (como já denunciei).

O artigo aqui sob comento — em liça — descreve um estudo do núcleo de concursos da FVG  sobre os exames da OAB do II ao XIII, mostrando que só 17,5% vem passando, em média, nesses certames. Depois de lançar esses dados, o articulista diz que “O índice de aprovação dos candidatos revela-se menor, mas não tanto quanto os dos exames anteriores, organizados pelo CESPE/UNB. Mas esse índice pode nos levar a alguns problemas a serem detectados, são eles: 1.   inflacionamento do número de advogados. Em 2004, tínhamos cerca de 415 mil advogados no Brasil; hoje, 2015, temos mais de 850 mil; 2.   inflacionamento dos cursos de Direito. O Brasil tem mais de 1,1 mil faculdades de Direito, enquanto o mundo tem menos de 1,1 mil, ou seja, temos mais faculdades de Direito no Brasil que o mundo todo; 3.   o  Exame ficou mais difícil; 4.   a qualidade do preparo dos alunos, com grande quantidades de materiais e videoaulas de valor duvidoso e sem qualquer metodologia”.

OK. A média de 17,5% dos aprovados desses certames todos é baixa. Portanto, é fato que o desempenho não vem se alterando, a não ser no último Exame (um pouco), que pode não se repetir no próximo. Minha indagação primeira: O que o inflacionamento do número de advogados teria a ver com isso?. Ora, aumentou o número de faculdades, o número de alunos e, vegetativamente, o número de causídicos (assim como aumentou incrivelmente o número de cursinhos)…! O que se queria? Uma diminuição? Na sequência, segundo o articulista, o exame ficou mais difícil (sic). Aqui já uma ressalva: há algum estudo mostrando que o exame ficou mais difícil? O que é “mais difícil”? Foi medido por “dificilómetro”? Não creio que tornar o certame um quiz show (cheio de pegadinhas) implique dizer “ficou mais difícil’”.

Para mim, esses dados da FGV provam — pelo menos no-modo-como-foram-lançados-no-artigo — apenas uma coisa: não melhorou o nível dos alunos e/ou mostra que o ensino jurídico continua indo (de) mal (a pior). Isto é, o ensino continua standard, sem ar condicionado, sem câmbio automático, sem air bag e sem direção assistida. Ensino pé-de-boi. Um autêntico Chevette 76.

No artigo — registre-se, o mais lido da semana no ConJur (e por isso merece minha atenção) — lê-se, ainda, que

“Os dois últimos motivos são os que mais me preocupam e com o qual podemos contribuir com os estudos dos alunos. De fato, a inserção de novas matérias e a redução do número de testes reduz a possibilidade de expansão temática em determinadas matérias tidas como essenciais. Penso que, com relação a esse tema, a OAB deveria ampliar a quantidade de questões para 100 testes novamente, elaborar questões mais curtas e apresentar no edital do Exame o temário das matérias que não são exigidas na segunda fase, como Direitos Humanos e Filosofia do Direito”. (grifei)

Indago: É assim que vamos melhorar esse quadro? Aumentar o número de questões, fazê-las mais curtas (?) e apresentar o temário prévio das matérias a serem exigidas na segunda fase (Direitos Humanos e Filosofia do Direito)? Como se encurtam questões? E que diferença faz se foram 50, 100 ou 200 questões, se o aluno médio é um néscio (os números mostram isso, pois não?)? É disso que se trata?

No artigo há uma forte crítica em relação à [baixa] qualidade do preparo dos alunos, com grandes quantidades de materiais e videoaulas de valor duvidoso e sem qualquer metodologia. Estamos absolutamente de acordo, o articulista e eu (e tanta gente mais). E acrescento que, por certo, o artigo quer se referir não só à graduação, como também aos próprios cursinhos de preparação, onde existe uma quantidade considerável de vídeo-aulas… Inclusive com músicas da Xuxa, acrescento. E muita autoajuda, com depoimentos de concurseiros de sucesso, etc. Basta entrar no youtube. Ou não é assim? Material didático e metodologia… Os cursinhos são os mais indicados para falar disso… se entendem minha ironia.

O artigo remete o leitor, ainda, a um outro texto, de autoria do articulista, intitulado Onde Está a Riqueza? Quem é Rico no Exame de Ordem? Li. É autoexplicativo. Nele, o ponto fulcral é o mesmo do artigo aqui sob comento: que o (maior?) problema do exame de Ordem estaria na circunstância de que o aluno não saber escolher a área. Simples assim (verbis: é preciso ter um direcionamento de estudo, como o que fazemos no Curso Forum onde leciono e coordeno a OAB).

Ora, permito-me dizer que há décadas discutimos a crise do ensino jurídico. Há pesquisas e estudos sérios que mostram os diversos gaps do “sistema” (por exemplo, aqui, aqui aqui e aqui na ConJur . Há uma associação brasileira de ensino do direito que trata disso com seriedade (ABEDI). E em todos esses estudos sempre se verifica o cuidado para não simplificar o problema. Temos que cuidar para não concluir que o problema do ensino e do Exame de Ordem está “nos pequenos detalhes” (como, por exemplo, saber escolher a área na segunda fase do exame de Ordem?) ou na elaboração de questões mais curtas (sic) ou, acrescento eu, no uso de roupas adequadas, lápis número 18, caneta tinteiro, patuá no bolso esquerdo ou algo desse naipe.

Por tais razões, não preciso repetir aqui as críticas que já fiz ao modus operandi dos cursinhos de preparação para concursos e exame da OAB espalhados por todo o país (da pedagogia do decoreba ao estilo autoajuda de ensinar até o ensino através de músicas…).

Meu diagnóstico e minhas sugestões
Permito-me insistir no tema: o ensino jurídico — e o péssimo desempenho no Exame de Ordem é consequência disso e não de pequenos detalhes — vai mal porque não há pedagogia sem dor. Não há a mínima possibilidade de avançarmos na melhoria do ensino jurídico enquanto a literatura utilizada for composta por um produto pret-à-porter, pret-à-parler e pret-à-penser e não melhoramos o nível dos docentes nas salas de aula. Um simples olhar no material didático utilizado nas salas de aula e, pronto. O diagnóstico está feito. Vou me repetir pela undécima vez: parcela considerável dos livros utilizados nas salas de aula das faculdades de leis (porque teremos que fundar as faculdades de Direito) deveria imitar as advertências das carteiras de cigarro: o uso constante desse material fará mal a sua a sua saúde mental, e, na parte de traz das carteiras, a foto de um aluno com cara de imbecil, com os dizeres: li e fiquei assim! Esse é o problema. Troquemos essa literatura e começaremos a mudar o ensino. Claro: com docentes que consigam entender uma literatura jurídica mais sofisticada. Ou transformemos os cursos jurídicos em cursinhos-tipo-Walitta-IUB-Instituto-Universal-Brasileiro (ver aqui).

Com minha LEER, repito: se a medicina for ensinada com livros “facilitados” como no direito, a ciência hipocrática vai morro abaixo (sim, sei que na Psicologia já existe “Gestalt Facilitada”, mas, enfim…). Espero, sinceramente, que os esculápios de Pindorama tenham uma formação melhor na graduação que nossos bacharéis em direito. Quem se operaria com um esculápio que tivesse escrito um livro com o título de Operação cardíaca facilitada ou A fibrilação atrial em palavras cruzadas? Ou transplante de órgãos simplificados?  Ou quem se submeteria a tratamento com esculápios que tivessem estudado com professores que utilizaram livros tipo resumo-do-resumo? Ou que tivessem apreendido cantando a artéria supraventricular é para amar… ao ritmo de Zezé de Camargo e Luciano? É ruim, é? Mas Direito Constitucional Mastigado pode, certo?

Hoje há professores de direito civil que não conhecem nem a história do direito civil alemão ou o brasileiro… E o modo como ensinam Kelsen nas salas de aula é de sair correndo. E assim por diante. Agora, diante da aprovação de um novo Código de Processo Civil, o que menos importa nas faculdades é estudar esse fenômeno. Aliás, aqui mesmo na ConJur interessa mais a discussão sobre assuntos bizarros do que se o CPC vai institucionalizar a malsinada ponderação (que, aliás, ficou “assim-jabuticaba” exatamente pela má-formação dos docentes que ensinam na graduação e pelo uso sem critérios da tese nas aulas dos cursinhos de preparação). O que interessa mesmo aos estudantes e bacharéis em direito? Esta semana a notícia da ConJur mais lida trata do afastamento de uma conciliadora do TJ-RS por causa do Big Brother Brasil (BBB) dá uma boa mostra daquilo que mais interessa à média dos leitores de Pindorama. Talvez a saída esteja em estocar comida. Ou colocar nos títulos bizarros, tipo “Exame de Ordem exigirá questões sobre Big Brother Brasil; haverá também questões sobre a biografia do Pedro Bial”! Ou seja: BBB tem relação com o exame de Ordem. Tem, sim. Quem assiste ao BBB por certo não passa no Exame. É incompatível. Para ver BBB, bastam 2 neurônios (mesmo sendo um acarunchado); para passar no Exame, são necessários bem mais!

Em síntese: Não há como aprender direito sem que os alunos leiam… livros. Sim, livros- a-mancheias… e não resumos de livros ou livros orelhados. É lendo livros — e não os resumos de livros — que os candidatos conseguirão responder perguntas longas (sic) ou curtas (sic) do exame de Ordem. E saberão escolher a área na segunda fase. 

De todo modo, eis algumas observações sobre o que é e como pode(ria) ser o ensino jurídico. Por exemplo:

a) reformular as grades curriculares, dando ênfase às disciplinas formativas e não às meramente informativas;

b) quando me refiro à formação, quero dizer que, inclusive nas cadeiras de processo, deve o aluno compreender os acessos filosóficos ao processo de formação da prova; e estudar os paradigmas filosóficos que estão por trás dos procedimentos; estudar processo não é saber fazer petição (há modelos no Google…);

c) disciplinas formativas — filosofia do direito, introdução, etc — devem ser ministradas por professores com formação na área e não como biqueiros (quebradores de galho), que chegam na aula dizendo: regras é no tudo ou nada, princípios é na ponderação…;

d) as faculdades devem fazer um processo de seleção acerca de que tipo de bibliografia está sendo indicada pelo professor. Não estou aqui a pregar uma espécie de index sobre o que não deve ser lido; mas a coordenação ou os órgãos deliberativos do curso (colegiados de curso e núcleos docentes estruturantes) deveriam, no mínimo, estimular os professores das respectivas áreas a debater a literatura utilizada em aula.

e) é comum, nos dias atuais, mencionar a falta de “espírito crítico” (sic) por parte dos alunos. Pois é. Mas, cabe perguntar: como cobrar algum tipo de postura investigativa por parte do discente se, na maioria dos casos, os professores colocam-se passivamente diante dos conteúdos que existem na literatura standard sobre o direito? Deve haver, no mínimo, uma recomendação por parte dos órgãos deliberativos no sentido de serem evitados compêndios pequeno-gnosiológicos, resumos-tipo-laje, resumões-tipo-gambiarra, plastificações-tipo-piscina, livros lato sensu “tipo-simplificado-mastigado-facilitado-twitado”;

f) de sua parte, o acadêmico de direito precisa também operar um processo de autoanálise para colocar em questão o tipo de atitude por ele assumida com relação à própria formação.

Nesse aspecto algumas questões são fundamentais:

f.1.) deve-se abandonar a postura do acadêmico-consumidor que se relaciona com a faculdade do mesmo modo que cuida de seus interesses nos supermercados ou no âmbito de uma mega store. Ora, a educação não é um bem de consumo. O que está em jogo aqui não é um produto estragado ou com mal funcionamento. É da própria formação que estamos falando.

f.2.) é preciso livrar-se das “muletas” utilizadas para apoiar algum tipo de deficiência na própria formação em algum elemento institucional. De se registrar: é claro que as demandas dos discentes por melhoras na infraestrutura do curso são salutares. Todavia, deficiências ou falhas institucionais não são motivos para, a priori, justificar gaps formativos. Exemplos: se na sua faculdade não existe pesquisa institucionalizada, procure um professor-mestre-ou-doutor que possa lhe orientar e busque financiamento de sua pesquisa em algum órgão de fomento à pesquisa; se sua faculdade não produz eventos científicos interessantes, tente viabilizá-los juntos aos órgãos de representação acadêmica (DA’s; CA’s, etc..). Não incentive showmícios pequeno-epistêmicos feitos por professores mais preocupados em vender seu “peixe” de cursinho. E incentive os alunos a, antes de frequentarem congressos, pesquisarem acerca do curriculum dos palestrantes.

f.3.) aprenda a usar a biblioteca; faça o uso devido de sua autonomia intelectual. Ali você vai descobrir um universo muito além da sala de aula e de seu professor. Faça um exercício consigo mesmo e se pergunte: quantas vezes você, desde que começou a frequentar o curso de direito, foi até a biblioteca despido de alguma obrigação institucional? Quantos livros você tomou emprestado que não foram indicados pelo professor? É importante ir a uma biblioteca e não simplesmente requerer ao bibliotecário ou a quem responda por ele o exemplar que você procura.

f.4) e por fim, mas não menos importante, leia livros de literatura. Leia aos montes… Você terá, além de um contato com a língua na sua forma mais emblemática, a possibilidade de se deparar com personagens fictícios que enfrentam dramas da vida próximos daqueles que os cientistas sociais enfrentam; próximo daqueles que os juristas enfrentam. Frustrações, paixões, um desfile de dilemas morais tudo que nos leva a sentirmos mais humanos, menos bestializados.

Desse modo, necessitamos de transformações:

— uma de ordem estrutural institucional: cursos que apresentem currículos mais consistentes e que busquem um material adequado para trabalhar os conteúdos. Há coisas que necessariamente devem ser abordadas e há livros que fazem isto melhor do que outros;

— por outro lado, é necessário que os discentes deixem a passividade de lado e passem a ser mais ativos com relação à própria formação. Não para, simplesmente, reivindicar “os seus direitos” (sic), mas, muito além, por estarem conscientes dos deveres que possuem para com a sua própria formação.

Finalmente, lembrem-se: se o professor que leciona na graduação não conseguiu lhe passar um leque de saberes (não meras informações tipo-estão-google) em cinco anos, não será em alguns meses que um cursinho conseguirá essa façanha e muito menos se o docente for o mesmo ou do mesmo-tipo-que-lhe-deu-aulas-na-graduação. No máximo você ficará treinado. Mas treino é treino e jogo é jogo. E o jogo da vida é mais duro que fazer um jogral para decorar o conceito de legítima defesa ou usar truques para memorizar a Constituição. Fuja disso. Por mais tentador que seja.

Post Scriptum: esta coluna é em homenagem aos que sofrem cinco anos na faculdade estudando em (e por) resumos e resumões e depois… Bom, todos sabem. Aí vem os cursinhos, etc.. E depois o quiz show que é o Exame da Ordem. Por isso, permissa vênia, não me parece que o busílis do problema seja “saber escolher ou não o que fazer na segunda fase”. Também não adianta estar “focado” ou estar repleto de autoconfiança se só sabe superficialidades. O resto são consequências, que, como dizia o insigne Conselheiro Acácio, “vem sempre depois”.

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