Acordo protegido

Poder de investigação das autoridades judiciais não inclui delação

Autor

  • Gilson Dipp

    é advogado e consultor jurídico. Ministro aposentado do STJ foi ministro do TSE corregedor nacional de Justiça e presidente do TRF-4.

25 de setembro de 2014, 20h58

Ante as revelações e noticias sobre o tema, em caso da atualidade envolvendo o Supremo Tribunal Federal — que pela primeira vez sob a nova lei vai enfrentar esse tipo de questão em processo penal originário — convém ter presente certas peculiaridades.

A chamada colaboração premiada, mais conhecida por “delação premiada”, é instituto de direito processual penal progressivamente introduzido na legislação brasileira desde a Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990) até a recente lei das organizações criminosas (Lei 12.850/2013) a qual consolidou e sistematizou seu processamento à base de precedentes jurisprudenciais sobre casos concretos, a maioria experimentados nas varas federais de lavagem de dinheiro onde foram elaborados e aperfeiçoados procedimentos, clausulas e sobretudo os termos de acordo.

Destinada a propiciar à instrução criminal elementos consistentes para a prova da materialidade e autoria dos crimes praticados por organização criminosa, cuida-se de um acordo (artigo 4º, parágrafo 7º) entre acusação e defesa pelo qual o colaborador investigado se compromete a revelar de modo voluntario e efetivo (artigo 4º caput) a identificação dos demais autores ou partícipes, os crimes respectivos e a da estrutura hierárquica da organização; a recuperação do produto ou proveito das infrações; quando for o caso, a localização de eventual vitima e a prevenção de novos crimes. Em outras palavras, é instituto essencialmente direcionado ao juízo penal e aos seus propósitos, caracterizado pela lei como colaboração “com a investigação e com o processo criminal” (artigo 4º, caput).

A lei dá a entender que esse acordo deverá ser requerido pelas partes, isto é, por ambas as partes (artigo 4º). Essa característica evidencia ser a colaboração premiada um fenômeno de natureza processual incidental ao procedimento investigatório e logicamente concertado no conjunto de propósitos legais que disciplinam e orientam a ação penal correspondente, tão importante que o prazo para o oferecimento da denuncia pode ser suspenso (e com ele o da prescrição) até que sejam cumpridas as medidas de colaboração (artigo 4º, parágrafo 3º).

A despeito disso, a colaboração que a lei institui como meio de prova excepcional pode ser objeto de retratação (artigo 4º, parágrafo 10), nesse caso não podendo as provas autoincriminatorias ser utilizadas exclusivamente em desfavor do colaborador. Não se cogita de rescisão do acordo por ato das partes talvez porque o termo de acordo (artigo 6º) deverá conter:  I — o relato da colaboração (portanto estar esgotada a colaboração); II — as condições da proposta do MP e da Policia; III — a declaração de aceitação do colaborador e seu defensor; e IV e V — as assinaturas e as medidas de proteção. Em outros termos, o acordo que oficializa a colaboração só será conhecido quando concluída esta, o que de certa forma expõe o colaborador a incertezas antes da formalização. Aliás, o colaborador também renuncia ao direito constitucional ao silêncio (artigo 4º, parágrafo 14).

Em troca, o Ministério Público e a Polícia Judiciária podem oferecer o perdão judicial, a redução de até 2/3 da pena privativa de liberdade ou a substituição dela por pena restritiva de direitos e, em alguns casos, deixar de apresentar a ação penal cabível. O colaborador tem direito à proteção pessoal, à preservação da identidade, à condução e, se for o caso, cumprimento de pena em estabelecimento especial.

O juiz competente (seja juiz de primeiro grau, desembargador ou ministro, conforme detenha o acusado foro especial ou não) não participa das negociações e o termo de acordo com as declarações do colaborador e a cópia da investigação lhe será submetido apenas para verificar a regularidade, a legalidade e a voluntariedade (artigo 4º, parágrafo 6º), mas poderá ouvir o colaborador sigilosamente na presença do defensor (artigo 4º, parágrafo 7º)

Cabe-lhe, nesses limites, a homologação ou não do acordo sem apreciação do conteúdo embora possa recusa-la ou adequá-la se não atender aos requisitos legais. Nada obstante, parece inevitável a delibação acerca de possíveis elementos constantes da colaboração uma vez que é praticamente inviável, por exemplo, a aferição da regularidade e da voluntariedade da “delação” sem um mínimo envolvimento com o conteúdo das declarações ou documentos revelados. Em particular porque o juiz poderá não homologar o acordo, hipótese só compreensível se vier a valer-se de juízos acerca da voluntariedade ou regularidade das declarações ou afirmações. A atenção com os limites dessa homologação recomenda reiterado cuidado com possíveis avaliações de mérito, até porque somente na sentença final (artigo 4º, parágrafo 11) o julgador apreciará os termos do acordo homologado.

Pela gênese, desenvolvimento e estrita finalidade da colaboração, a “delação premiada”, portanto, constitui um meio de prova exclusivo do processo penal. Por essa razão é inseparável da instrução criminal e, nos termos claros da lei, não compartilhável, até o recebimento da denúncia que é o momento legal em que cessa o sigilo (artigo 7º, parágrafo 3º). Não está expresso na lei, mas se a denuncia não for oferecida ou se for rejeitada os elementos apurados e objeto da “delação” deverão ser mantidos em segredo absoluto ou destruídos — a critério do juiz, ouvidas as partes.

A lei, nessa linha, é expressa em permitir o acesso aos autos apenas ao juiz, ao Ministério Público, ao Delegado de Policia e ao Defensor, este naquilo que interesse à defesa do colaborador (artigo 7º, parágrafo 2º), de modo a excluir logicamente as demais pessoas ou instituições enquanto a colaboração se mantiver sigilosa.

Esse rigor legal impede a divulgação ou entrega de seus elementos, depoimentos ou dados a qualquer outra instituição ou para qualquer outra finalidade por mais qualificada, “como forma de garantir o êxito das investigações”. Há, pois, vedação formal para remessa de seus documentos a outro órgão administrativo de investigação ou controle, inclusive Comissões de Inquérito ou de investigação com ou sem prerrogativas assemelhadas antes da cessação do sigilo.

A esse respeito, cabe lembrar a jurisprudência da Corte Suprema confirmando às Comissões de Parlamentares de Inquérito idênticas prerrogativas dos tribunais ou juízos quando no exercício das investigações de seu âmbito (artigo 58, parágrafo 3º da Constituição), mas ao mesmo tempo recordar o postulado constitucional da reserva de jurisdição (MS 23.452-1/RJ, DJ 02.05.2000, Rel. Celso de Mello) assentado na ocasião, o qual “..importa em submeter-se, à esfera única de decisão dos magistrados, a prática de determinados atos cuja realização, por efeito de explicita determinação constante do próprio texto da Carta Política, somente pode emanar do juiz, e não de terceiros, inclusive daqueles a quem se haja eventualmente atribuído o exercício de “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”. No mesmo sentido, vão os Mandados de Segurança 23.446 e 23.454. Vale notar, a despeito desses precedentes, que o postulado constitucional da reserva de jurisdição se refere a certas garantias constitucionais expressamente protegidas e reservadas cuja quebra está sujeita ao exclusivo controle judicial. É certo, por outro lado, que a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem (artigo 5º, LX CF). Ora, na conjugação desses preceitos, resulta que o postulado da reserva constitucional abrange também o sigilo da “delação premiada” dado que foi ele instituída por lei no interesse exclusivo do processo penal e sob exclusivo controle judicial até o recebimento da denuncia.

Não fosse isso, “os poderes de investigação próprios das autoridades judiciais” (artigo 58, parágrafo 3º CF), não dariam consistência a pretensões de uma CPI sobre as apurações da colaboração premiada, pois, na opinião do então ministro Moreira Alves (MS 23.454-7/DF, DJ 23.04.2004, Rel. Min. Marco Aurélio, Pleno, unanime), “esse ‘próprios’, evidentemente, tem de significar alguma coisa. É muito realce, quando se podia dizer apenas ‘atividade judicial’. Por outro lado, acho que o problema está muito mais na delimitação do que seja poder investigatório, porque, realmente, o juiz não tem esse poder de investigação; ele tem o poder de instrução no sentido de colheita de provas, mas também colheita de elementos que, com relação a fatos determinados, possam até extravasar o simples conceito de prova”.

Com efeito, os poderes de investigação das autoridades judiciais não incluem o acordo de colaboração, até mesmo porque o juiz dele não participa, faltando assim a prerrogativa que pudesse ser invocada e estendida ao Parlamento. De qualquer sorte, a titularidade de tais prerrogativas também não confere por si só aos seus atos ou providências a natureza de ato judicial e menos ainda os investe no caráter de informação ou de prova necessária idêntico ao do juízo de condenação criminal, por mais qualificado que sejam as finalidades da CPI. O mesmo vale para comissões de investigação ou administrativas ou para órgãos de controladoria-geral para apuração de infrações de improbidade, disciplinares ou atos ilícitos civis.

Aliás, de outro modo não seria possível assegurar ao colaborador os direitos que a lei objetivamente lhe concede (artigo 5º) de usufruir medidas de proteção pessoal, com garantia de preservação da identidade e qualificação, assim como ser conduzido e mantido em locais separados dos demais investigados, especialmente não ter seu nome e identidade revelados pelos meios de comunicação.

A colaboração premiada ou “delação premiada”, constituindo um acordo estritamente processual penal, nessa fase, em principio interessa primordialmente às partes.

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