Benesse questionada

Auxílio educação é inconstitucional e perpetua desigualdades

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15 de outubro de 2014, 8h52

A análise do atual cenário jurídico nacional não pode prescindir de um exame sobre o processo histórico-político, sob pena de incidir em leituras equivocadas. O fato de diversas promessas da modernidade se encontrarem positivadas não deve ser compreendido como resultado de uma bondade legislativa ou de um humanismo próprio do brasileiro, mas sim da existência de uma sociedade extremamente desigual. Não configura qualquer exagero afirmar que as marcas da pré-modernidade são cotidianamente visíveis.

Até mesmo como forma de manter a coerência do que veio a ser alegado, antes mesmo de discorrer sobre a mais recente reivindicação remuneratória da magistratura fluminense, mostra-se importante tecer algumas considerações históricas e que se relacionam com o tema.

As consolidações da unidade territorial, da nação brasileira e da cidadania se realizaram em tempos distintos. No decorrer do governo de D. Pedro II, após a vitória dos insurgentes “farrapos”, já não havia mais ameaça à unidade do território. Ao contrário do que se sucedeu na América Hispânica, o antigo território lusitano de além-mar conseguiu manter-se uno e praticamente com as fronteiras atuais. Com o alvorecer da República e a liberdade civil obtida pela população negra, mostrou-se necessário criar o sentimento nacional, a brasilidade precisou ser inventada. Já a questão da cidadania somente com a transformação do perfil da sociedade, o que se deu com o crescimento da população urbana, é que a luta por direitos passou a ser uma bandeira.

Assim, não resta dúvida de que existe uma real discrepância temporal entre os momentos que marcaram a obtenção da unidade territorial, a formação da nacionalidade e a tomada de consciência cívica.

Por outro lado, não se pode negar que o formato do Estado brasileiro foi se alterando no curso do seu processo histórico. A tentativa de superação da ditadura civil-militar (1964-1985) e a influência de doutrina alienígena permitiram, com a promulgação da chamada Carta Cidadã, o início da trajetória de efetivação do Estado Constitucional.

O respeito aos direitos e garantias fundamentais, que é uma marca própria do Estado Liberal, é combinado com um intervencionismo estatal, que visa a igualdade material e configura um signo próprio do Estado Social. E tudo isso se faz em um cenário de compromisso com a transformação de uma realidade marcada pela extrema desigualdade, que não se restringe ao aspecto econômico.

A despeito da crise que o constitucionalismo dirigente sofreu após a queda do bloco soviético nos anos 1980-1990 e o vigor obtido com o discurso neoliberal, é importante destacar que os objetivos fundamentais, que se encontram positivados no artigo 3º, Constituição da República, trazem um modelo de Estado que não pode ser olvidado, inclusive pelos próprios agentes estatais.

Se, de um lado, o Estado com suas fronteiras se consolidou antes dos conceitos de nação e cidadania, de outra banda, o modelo estatal, que foi positivado em 5 de outubro de 1988, deve(ria) impedir que comportamentos pautados em regalias ainda se mostrem presentes.

Feito esse breve escorço histórico, é chegado o momento de apresentar o, já polêmico, Projeto de Lei 3.181/2014, que, segundo a sua ementa, dispõe sobre o auxílio educação devido aos magistrados e servidores do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. Para tanto, é colacionado, nas linhas que se seguem, o seu texto integral:

Art. 1º. Os magistrados e servidores efetivos ativos do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro farão jus ao auxílio educação, de caráter não remuneratório, a ser disciplinado por resolução do Tribunal de Justiça.

Parágrafo único – O auxílio educação devido pela totalidade dos filhos ou dependentes dos magistrados e servidores não poderá exceder ao equivalente ao valor do maior vencimento básico pago aos servidores efetivos do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro.

Art. 2º O auxílio educação será concedido aos filhos ou dependentes dos destinatários desta Lei a partir dos 8 (oito) anos e até que completem 24 (vinte e quatro) anos de idade.

§ 1º. Fica mantido o auxílio creche para os filhos ou dependentes dos destinatários desta Lei,  nos termos do art. 3º da Lei nº. 6649/2013 e do inciso VII do art. 33 do Decreto-Lei 220/75 – Estatuto dos Servidores Públicos Civis do Poder Executivo do Estado do Rio de Janeiro.

§ 2º. Não se aplica o limite máximo de idade referido no ‘caput’ deste artigo, caso o filho ou dependente seja interdito ou portador de necessidades especiais, conforme laudo médico-pericial.

§ 3º. Para fazer jus ao benefício instituído por esta lei, não poderá o filho ou dependente exercer qualquer atividade remunerada, com exceção de estágios, o que será objeto de declaração no ato do requerimento.

Art. 3º. O auxílio educação poderá ser pago em até quatorze parcelas anuais e abrange a taxa de matrícula e reembolso de gastos durante o ano letivo com uniforme e material escolar obrigatório.

Art. 4º. Caso o cônjuge ou companheiro do beneficiário receba auxílio semelhante, pago por qualquer fonte, pública ou privada, a soma dos reembolsos devidos não poderá superar o total de despesas realizadas.

Art. 5º Os magistrados e servidores ativos do Poder Judiciário farão jus a ajuda de custo para aprimoramento profissional, no interesse do serviço, sem caráter remuneratório, a ser paga em parcela única anual, que não pode ultrapassar a 50% (cinquenta por cento) de seus subsídios ou vencimento básico, na forma a ser regulamentada pelo Presidente do Tribunal de Justiça.

Art. 6º Para arcar com as despesas decorrentes da presente Lei poderá o Poder Judiciário utilizar o orçamento próprio do Fundo Especial.

Art. 7º. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.”

A indignação da opinião pública se mostrou frente ao referido auxílio destinado aos integrantes do Poder Judiciário fluminense, o que, inclusive, teria justificado a noticiada[1], porém não comprovada, diminuição dos valores a ser auferidos aos beneficiários de uma nova política pública de apoio à educação. A proposta desse texto é ir além da aversão leiga, apontando as razões jurídicas contrárias à benesse em questão.

Com o intuito de assegurar a independência dos membros do Poder Judiciário, o Texto Constitucional assegurou, a título de garantia, a irredutibilidade de subsídio. Não pode, portanto, o magistrado ter diminuído o valor nominal da verba remuneratória percebida, que possui natureza de parcela única. Há, no entanto, uma exceção, as indenizações, que se justificam na vedação ao enriquecimento ilícito.

E é nesse instante que o auxílio educação não passa pelo filtro da constitucionalidade, pois não se verifica qualquer causa de indenização na sua instituição. Os conceitos não podem depender da vontade do sujeito, ou seja, em um cenário dito democrático não há espaço para o solipsismo do intérprete do direito[2].

Não pode uma garantia voltada para a independência dos magistrados servir, por meio de mera manobra semântica, como um instrumento de violação do próprio Texto Constitucional.

A criatividade humana, caso reconhecido o gasto com a educação como indenização, poderá se mostrar infinita para a criação de diferentes auxílios, até quem sabe chegar o dia da postulação do auxílio ao auxílio.

Mas, não é só! A justificativa para a instituição do auxílio educação é aferida na busca por uma isonomia com a realidade já existente no Ministério Público fluminense[3]. Conforme o dito popular, um erro não pode justiçar outro. Assim como se verifica para os magistrados, a disciplina remuneratória do MP não comporta pagamento de verbas não-indenizatórias fora do subsídio. A apontada busca pela isonomia é, portanto, putativa.

Nesse caso, o uso meramente retórico do princípio da isonomia serve unicamente para escamotear um privilégio odioso, uma postura que não guarda a mínima afinidade com o espírito republicano[4]. A coisa pública, o que inclui o orçamento público, é um bem a serviço de todos, e não algo que pode ser passível de apropriação exclusiva de interesses corporativos. E que não se invoque o fato de o auxílio educação ser financiado pelo Fundo do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, pois referido fundo não perde a sua natureza pública e é constituído pelas custas judiciais, o que demonstra, em último caso, a possibilidade de tornar o acesso à justiça mais barato.

Quanto à violação da isonomia, há, ainda, um outro aspecto crítico e que se relaciona com a resistência ideológica em que são submetidos os direitos econômicos, sociais e culturais. O senso comum teórico aponta para os custos na efetivação desses direitos, ao contrário do que supostamente se sucederia com os direitos civis e políticos. Logo, ainda segundo um discurso dominante, os direitos econômicos, sociais e culturais são regidos pela lógica da progressiva efetivação, que deverá observar o argumento da reserva do possível. Ora, se é verdadeira essa assertiva, e aqui não se está a questionar o uso performático da reserva do possível pela Fazenda Pública, apesar da relevância do direito à educação, o Estado não poderia se voltar para àqueles que se encontram em posições socioeconômicas consolidadas e, principalmente, seguras. Ao contrário, os gastos com a educação deveriam ser priorizados com aqueles que mais precisam. Se o Poder Judiciário não tem competência para criar políticas públicas, que o auxílio educação no seu âmbito, caso observada a isonomia material, fosse instituído somente para os servidores com menor remuneração. Porém, é uma isonomia às avessas na sua proposta de implementação.

O derradeiro argumento contrário ao auxílio educação se pauta no fato do referido benefício se inserir em uma lógica de cooptação, que atenta contra a independência do Poder Judiciário. Alexandre Morais da Rosa, com lastro no pensamento de Gramsci, aponta para a razão da ausência de crítica do magistrado, que deixa de se preocupar com a efetivação da Constituição para se focar única e exclusivamente na luta por maiores ganhos[5]. Não pode existir risco à independência de qualquer poder estatal, ainda mais daquele que tem por missão fazer cumprir a Constituição nos casos de omissão dos demais poderes.

A limitação espacial determina a apresentação de uma conclusão. Não pode(ria) o Poder Judiciário fluminense se valer de uma garantia, a irredutibilidade de subsídio, para obter vantagem indevida por meio de jogos semânticos. O auxílio educação não é indenização e, por isso, não pode ser percebido por qualquer magistrado, ao menos enquanto subsistir a regra contida no artigo 95, inciso III, Constituição da República. E mesmo com a revogação do referido dispositivo, a benesse fere a isonomia material, despreza os objetivos fundamentais da República e permite somente a perpetuação de desigualdades. Ao dependente do magistrado poderá o Estado assegurar uma educação de melhor qualidade, ao passo que a qualquer outro brasileiro, aquele que não possui vínculo com a nova aristocracia, restará se contentar com a luta darwiniana para obter melhores condições de capacitação de sua prole. Há um nítido compromisso com a conservação do estado das coisas, ou seja, com um cenário de desigualdades que não pode ser mais tolerado. A luta por regalias remuneratórias coloca em risco a própria independência do Poder Judiciário, uma preocupação hedonista se coaduna perfeitamente com uma incapacidade crítica. E nada se mostra mais perigoso para uma incipiente democracia que se vê imersa em vários desafios a existência desse risco. Por fim, há, ainda, a vulneração ao valor republicano, que é materializado na tentativa de se apropriar de recursos públicos por motivos corporativos. Em suma, o auxílio educação é inconstitucional e seria salutar a sua rejeição pelo Legislativo fluminense.


[1]TJ REDUZ AUXÍLIO-EDUCAÇÃO PARA FILHOS DE MAGISTRADOS E SERVIDORES. Valor, que era de R$ 7.250, caiu para R$ 3.030.” disponível em: http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2014-09-15/tj-reduz-auxilio-educacao-para-filhos-de-magistrados-e-servidores.html. Acesso em 8/10/2014.

[2] Precisa é a lição de Lênio Streck: “(…) o direito não é (e não pode ser) aquilo que o intérprete quer que ele seja. Portanto, o direito não é aquilo que o Tribunal, no seu conjunto ou na individualidade de seus componentes, dizem que é.” (STRECK, Lênio. O que é isso – decido conforme minha consciência? 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 25)

[3]Mensagem nº 07/2014. (…) Tenho a honra de encaminhar PROJETO DE LEI que regula o auxílio educação devido aos servidores e magistrados do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro. O presente projeto de Lei Estadual permite dar tratamento isonômico assegurado em lei aos membros do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e os magistrados do Estado (…)”

[4] Sobre a necessária relação entre república e democracia. “A democracia, para existir, necessita de república. Isso que parece evidente, não é nada óbvio! Significa que para haver o acesso de todos aos bens, para satisfazer o desejo de ter, é preciso tomar o poder – e isso implica refrear o desejo de mandar (e com ele o de ter), compreender que, quando todos mandam, todos igualmente obedecem, e por conseguinte devem saber cumprir a lei que emana de sua própria vontade.” (RIBEIRO, Renato Janine. Democracia ‘versus’ república. A questão do desejo na lutas sociais. In: BIGNOTTO, Newton (organizador). Pensar a república. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2008. p. 22).

[5]O fundamental, neste contexto, é a aplicação das lições de Gramsci, a saber, era preciso cooptar os atores judiciais, e a melhor maneira de assim proceder é pagando bem. Diz o ditado popular que ‘pagando bem mal não tem’. E a sabedoria popular, no caso, pode ser invocada, porque com ela, entende-se o motivo de o subsídio dos magistrados ser o teto do funcionalismo. Assim, de um momento para o outro, sem alarde, a classe dos juízes, então pertencente ao que se denominava de média, ganhou um ‘up-grade’; passou a fazer parte da (Tropa de) Elite que consome e, então, passou a defender seus privilégios, os quais acabam se confundindo com os demais, ou seja, grande parte é ‘farinha do mesmo saco’. O lanche (subsídio e auxílio moradia), pois, não foi de graça! Pagou-se com a possibilidade do fim da Independência e da Democracia. O resultado efetivo foi um grande ‘cala a boca’ nos juízes que passaram, não raro, a adotar uma postura mais complacente, sem alardes, nem contestações …’de ver a banda passar cantando coisas de amor..’”. (ROSA, Alexandre Morais. O juiz veste Prada?: o sentido da deriva hermenêutica no pós CR/88.In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda et ali.Constituição & Ativismo judicial. Limites e possibilidades da norma constitucional e da decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 27)

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