O juiz Dredd, dos quadrinhos, e os devaneios da crítica (vazia) do Direito
8 de novembro de 2014, 7h01
Após a leitura da revista, fui pesquisar para saber um pouco mais sobre a tal história em quadrinhos. Criado no final da década de 70, por John Wagner e Carlos Ezquerra, Juiz Dredd foi lançado no segundo número da revista britânica 2000 AD e publicado por mais de uma década. Em 1995, houve a adaptação dos quadrinhos para o cinema, cujo filme foi estrelado por Sylvester Stallone (no Brasil, o título ficou O Juiz) e ainda para os jogos eletrônicos.
Para quem não conhece, Dredd é o juiz mais famoso das ruas de Mega-City One. Suas histórias ocorrem num futuro distópico, em que a cidade é governada pelos juízes. A eles compete manter a ordem e, para isto, acumulam todos os poderes atinente às funções de policial, acusador, julgador e executor. Seu rosto nunca é mostrado inteiramente, pois a Justiça não tem face.
Na primeira história, ainda em preto-e-branco, publicada originalmente em 1987, um grupo de quatro militantes da Tendência Democrática invade uma empresa de televisão e, antes de ser exterminado pelo Juiz Dredd e seus colegas transite sua mensagem, convocando o povo para uma manifestação pacífica contra a tirania do governo dos juízes. Com a morte dos revolucionários, martirizados, ganha força o Movimento pelo Estatuto Democrático, ao qual aderem os líderes da Fundação Hester Hyman, Filhos das Constituição e Liga pela Liberdade, Vontade Democrática e Comitê pela Restauração das Liberdades. Todos decidem marchar até o Supremo Tribunal de Justiça para exigirem, pacificamente, que o poder seja devolvido ao povo.
Ocorre que, desde a Guerra do Apocalipse, a democracia é considerada um conceito perigoso, a maior ameaça à cidade. Sob as ordens e os poderes ilimitados concedidos pelo Juiz-Chefe Silver, Dredd captura um a um dos líderes e a eles imputa acusações falsas ou forjadas capazes de desmoralizá-los perante seus pares. Outros são coagidos a se retratarem publicamente e desestimularem a manifestação. Por fim, Dredd infiltra juízes camuflados junto aos manifestantes que incitam a violência e legitimam o uso da força pelo Departamento de Justiça para pôr fim à passeata, prendendo/processando/condenando uma multidão e pessoas. Finda a manifestação, o juiz-chefe faz seu pronunciamento aos cidadãos:
“Cidadãos, não é frequente um juiz admitir que estava errado. Agora eu tenho que admitir. Contra os meus princípios, permiti que a manifestação de hoje fosse realizada. Se os incidentes repugnantes que testemunhamos são um exemplo da democracia em ação, penso que todos aprendemos uma valiosa lição. Liberdade é um belo ideal, mas liberdade demais é uma coisa perigosa. Sim, nossas leis são rigorosas. Sim, nossas liberdades estão sujeitas a diversas restrições. Não porque queremos, mas porque é preciso. Os eventos desta tarde demonstram claramente o que acontece quando relaxamos nosso rígido controle. Não fosse a reação imediata dos meus juízes, seria impossível avaliar a devastação provocada na cidade em nome da democracia. Assim sendo, não quero ouvir mais protestos. Não quero mais ouvir vozes erguidas contra nós. Em vez disso, façam-me ouvir elogios aos verdadeiros guardiões da nossa liberdade… os dedicados filhos e filhas do Departamento de Justiça. E, acima de tudo, não quero mais ouvir conversa nenhuma sobre a democracia. A democracia está morta. A revolução terminou!”
“Vocês vão dar meia-volta e retornar calmamente às suas casas. Todos vocês. E eu explico por quê. Nós não fraudamos nada. O plebiscito foi honesto. As pessoas votaram nos juízes porque confiam em nós… porque sabem o que esperar. Não precisamos de fraude. Democracia não serve para as pessoas… Não porque estamos dizendo, mas porque elas não querem. Vocês são sonhadores. Isso é bom para algumas coisas, mas não quando precisam governar… Impor a lei na cidade. Porque aqui eu sou a lei”.
Dupre reconhece que o juiz Dredd é a lei e que, no fundo, ele tem razão. Fim das histórias.
É possível alguém desenvolver uma crítica ao direito brasileiro a partir destas histórias em quadrinhos? É possível afirmar que o Judiciário brasileiro atua como os juízes de Mega-City One? Ou ainda dizer, genericamente, que o juiz brasileiro é como Dredd?
Lamento, mas a resposta a estas perguntas é negativa, por mais instigante que seja a literatura. Não obstante todas as críticas que já dirigi ao Poder Judiciário, especialmente em razão de minhas pesquisas sobre o protagonismo e o ativismo judicial, o fato de ter encontrado uma revista de origem anglo-saxã sobre a figura do Juiz Dredd não me autoriza a falar qualquer coisa sobre ela e tampouco a transpor, livremente, a ficção para a realidade ou mesmo confundi-las.
Afinal, o que significa fazer crítica do Direito hoje? No fundo, esta foi a pergunta que me fiz após ler o artigo O Judiciário sou Eu — o juiz Rei Sol e seu escraviários, escrito pelo professor Salah Hassan Khaled Júnior. No texto, o autor propõe que se imagine um juiz que não quer ter contato com os processos e, para tanto, utiliza-se de seus escraviários. Trata-se, com efeito, daquele que denomina juiz Rei Sol. Nas palavras do autor: “O Judiciário está repleto dessas tristes caricaturas de gente, que para o infortúnio de todos nós, estão travestidos de juízes. Aliás, parece que o Judiciário está fadado a isso”. Ao final do texto, o professor Khaled Jr. revela que a história é verídica.
Sem adentrar no mérito, penso que devemos cuidar para não confundir a realidade das ficções com as ficções da realidade, sob pena da crítica se tornar mero devaneio, para não dizer puro delírio jurídico. Como afirmar que o Judiciário está fadado ao que foi relatado?
Assim como não é possível fazer uma crítica consistente e responsável ao Poder Judiciário brasileiro a partir da figura do juiz Dredd, também não acredito ser possível levar a sério a “crítica” formulada por Khaled. Se o juiz não pode dizer “qualquer coisa sobre qualquer coisa”, seja nos autos seja fora deles, também parece ser recomendável que o doutrinador deva ter certo cuidado na formulação de seus enunciados. Não arriscaria dizer que o Judiciário está fadado a ter o comportamento descrito no caso narrado. Mais: se acreditasse nisso, mudaria de área/profissão.
Imaginem se os juízes resolvessem criticar os advogados com base naquilo que ouvem, diariamente, nas salas de audiência; ou, então, se decidissem criticar os professores com base naquilo que lhe dizem e escrevem seus estagiários. Imaginem se um juiz dissesse: “a advocacia está fada à burrice”; “a academia está condenada à mediocridade”.
Luis Alberto Warat — talvez o jurista mais crítico que já tenha pisado no Brasil — sempre alertava para o fato de que, primeiro, a crítica não substitui a dogmática jurídica e suas práticas. Segundo, a crítica não pode ser autofágica, pois, como na fábula Pedro e o lobo, quem quer ser iconoclasta o tempo todo cai em um abismo de ausência de sentidos. Haverá um momento em que, de fato, o lobo virá… E Pedro gritará: “é o lobo, é o lobo!”. Mas ninguém dará mais bola. É preciso mais cuidado. No vazio, não há sons.
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