Risco irremediável

Admissão de recursos novo CPC exige reforma de norma do STF

Autores

  • Dierle Nunes

    é advogado doutor em Direito Processual professor adjunto na PUC Minas e na UFMG e sócio do escritório Camara Rodrigues Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia). Membro da Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do Novo Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados.

  • Thomas da Rosa de Bustamante

    é professor Adjunto de Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da UFMG.

  • Ana Luísa de Navarro Moreira

    é professora substituta da Universidade Federal de Minas Gerais. Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.

16 de maio de 2014, 7h01

O Brasil, após a Constituição de 1988, apresentou um movimento generalizado de busca por um sistema processual igualmente acessível a todos. O acesso à justiça se tornou requisito basilar de um sistema jurídico processual democrático, sendo reconhecido como direito fundamental.[1]

A busca pela implementação de direitos fundamentais proporcionou uma supervalorização do Poder Judiciário. Concomitantemente, a enraizada concepção de instrumentalidade do processo e a crise das instituições cooperaram para o crescimento vertiginoso das demandas.

O Poder Judiciário, então, agigantou-se, de modo que o sistema jurisdicional vivenciou um reconhecimento da autoridade da atuação dos tribunais superiores quando do proferimento de decisões dotadas de vinculatividade.

Nesse sentido, a discussão sobre o papel desses tribunais é recorrente, seja pela mudança qualitativa e quantitativa dos litígios, seja pela importância que as suas decisões vêm obtendo como fundamento para novos e inúmeros provimentos judiciais, principalmente no que diz respeito aos Recursos excepcionais.

No entanto, tal papel vem sendo pauperizado e promovendo decisões, em muitos casos, superficiais pelo aumento exponencial de demandas e, consequentemente, de recursos, que, impõem, assim, uma reanálise constante pelos órgãos dos tribunais de origem acerca da (in)admissibilidade de Recursos Extraordinários (Especiais no STJ e Extraordinários espécie no STF).

Isto se dá porque na atualidade o juízo de admissibilidade dos referidos recursos de estrito direito é dividido entre o órgão a quo (TJs e TRFs) e os órgãos ad quem (tribunais superiores).

Com o advento da reforma da lei 12.322/2010, o agravo contra a inadmissibilidade dos recursos extraordinários na origem é apresentado nos autos já existentes do processo, sem a necessidade de cópias para que seja protocolado separadamente, sendo que dois trabalhos sempre são realizados, a (in)admissibilidade no juízo a quo e um Segundo juízo no Tribunal destinatário, em face do mecanismo formal (ausência de peças obrigatórias) para análise do agravo.

Ao se perceber esta situação, o CPC projetado[2] em sua redação final na Câmara dos Deputados traz uma importante inovação no juízo de admissibilidade destes Recursos Extraordinários.

Em redação amplamente discutida, especialmente com vários ministros dos referidos tribunais superiores, propõe-se uma modificação do atual quadro (uma admissibilidade provisória no tribunal de origem e outra no Superior) em face da constatação de que após a reforma do agravo de admissão do artigo 544, CPC (com a redação dada pela lei 12.322/2010) boa parte dos recursos acabam desaguando indistintamente no Superior Tribunal de Justiça ou Supremo Tribunal Federal para (re)análise da admissibilidade.

A proposta regulamentada no novo artigo 1.043 projetado[3], determina que caberá tão somente ao Tribunal Superior promover tal juízo. Tal inovação parece agradar a grande maioria de teóricos e práticos, mas, certamente encontrará detratores.

No entanto, quando vislumbramos o atual trato da temática da admissibilidade desses recursos, principalmente no Supremo Tribunal Federal e em especial na análise da repercussão geral (dos recursos repetitivos) e de seu uso de “temas” para tal situação,[4] precisamos ter muita cautela. Assim, pretende-se fomentar uma “preocupação científica de consolidação da utilização dessa técnica”[5]

Em verdade, se projetarmos o uso da nova norma necessitaríamos pontuar a necessidade urgente de reformulação dos regimentos internos daqueles Tribunais e a imediata revogação da odiosa Portaria 138 de 2009.[6] Vejamos.

A exigência da repercussão geral, pressuposto de admissibilidade recursal instituído pela Emenda Constitucional 45/2004 e regulamentado pelo Código de Processo Civil e Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, tem por finalidade delimitar o julgamento dos Recursos Extraordinários em espécies às questões constitucionais de relevância social, política, econômica ou jurídica que transcendam os interesses subjetivos da lide.[7]

Assim, a partir do reconhecimento desses temas, as decisões proferidas promovem uma uniformização da interpretação constitucional, que se consolida pela vinculatividade das decisões aos inúmeros casos reconhecidos como idênticos, uma vez que apresentam a mesma questão constitucional. Dessa forma, a repercussão geral inserem-se na “tendência técnica de criação de mecanismos de padronização decisória para a resolução quantitativa das demandas seriais”[8] dentro de um panorama de limitação à prestação jurisdicional, movimento contrario ao anterior de expansão da atuação dos Tribunais.

Ocorre que a verificação da existência dessa preliminar formal de repercussão geral da questão constitucional suscitada é atualmente de competência concorrente[9] dos Tribunais (TJs e TRFs) e do Supremo Tribunal Federal (como já explicitada a ocorrência de constante (re)análise da admissibilidade), ao passo que, a análise material e o legítimo reconhecimento do tema como sendo de repercussão geral é de competência exclusiva do STF.

A referida Portaria 138 de 2009, por sua vez, delega poderes decisórios a servidores do STF, que, sem promover qualquer análise adequada dos casos, “julgam” a admissibilidade desses Recursos Extraordinários pela via de Carimbos que simplesmente apõem números de temas, sem mostrar em que medida o caso se adequa àquela hipótese jurídica. Veja-se:

Assim, os recursos identificados como em desacordo com o § 1º do artigo 543-B do CPC (ou seja, em número além do considerado como necessário para representar a controvérsia) sequer são distribuídos aos gabinetes pela Secretaria Judiciaria, e esta se torna a responsável pelo imediato sobrestamento dos recursos nos quais o STF já tenha se pronunciado em relação à repercussão geral do assunto debatido em outro recurso interposto.

De forma ainda mais grave, a Portaria, na prática, tem atribuído aos servidores responsáveis pela distribuição dos processos no STF uma competência jurisdicional para aplicar o § 3º do artigo 543-B do CPC, uma vez que lhes dá atribuição para determinar o reenvio do processo à instância de origem a fim de que o órgão prolator da decisão recorrida promova o rejulgamento do caso. Nos casos em que o servidor responsável pela distribuição está convencido de que o recurso é de matéria “idêntica” a um tema de repercussão geral já julgado pelo STF, ele pode simplesmente bater um carimbo e preencher à mão o número do referido, remetendo o processo à origem sem com que qualquer ministro, juiz, ou mesmo um assessor tenha assumido formalmente a responsabilidade por esta decisão.

Na prática, pudemos observar, ao realizar pesquisa empírica em 10 tribunais brasileiros, financiada pelo CNJ, que diuturnamente um número expressivo de recursos são remetidos à origem com uma determinação para que os tribunais promovam um novo julgamento, sem com que qualquer análise minimamente técnica tenha sido realizada por um órgão jurisdicional: processos são devolvidos com indicação de temas estranhos à lide dos autos, sem fundamentação; recursos intempestivos, sem preparo, ou com graves vícios formais se tornam eficazes para obrigar o tribunal de origem a “ajustar” a sua jurisprudência à orientação do STF.[10]

A Portaria, então, institucionaliza a Secretaria Judiciária como órgão “competente” e institucionaliza os seus servidores como aqueles responsáveis pela identificação, sobrestamento e/ou, posterior devolução desses recursos e respectivos agravos aos Tribunais de origem.

Dois graves problemas surgem a partir do reconhecimento institucional dessas decisões proferidas pela Secretaria Judicial. O primeiro remete a uma questão de competência (legalidade), enquanto que o segundo a uma questão de fundamentação (legitimidade).

A Constituição da Republica estabelece no arigo. 102, III, §3º, da CF/88, a competência do Supremo Tribunal Federal para analise do instituto da repercussão geral nos Recursos Extraordinários, utilizando inclusive a palavra Tribunal, com T maiúsculo para demonstrar que o reconhecimento da repercussão geral é exclusivo do órgão máximo do STF. Desse modo, compete, ao presidente do STF e, ainda, ao relator sorteado, a teor do artigo 327, do RISTF, realizar o juízo de admissibilidade. No entanto, espantosamente, tal ato decisório se concentra agora nas mãos de servidores, e não de ministros. O próprio servidor assina, carimba e realiza o juízo de admissibilidade, como demonstrado.

Além disso, quando o STF identifica determinado tema como sendo de repercussão geral, delimita a partir da ratio decidendi daquela matéria constitucional a questão dotada de vinculatividade, de modo que, quando, destaque-se, a Secretaria Judiciária analisa o Recurso (Extraordinário em espécie ou Agravo) a mesma necessariamente realiza ou um juízo reconhecimento de identidade (determinando o sobrestamento) entre os casos ou de diferenciação(distinguishing).

O distinguishing e a aplicação de um precedente vinculante, na prática, são realizados sem que, reitere-se, o processo tenha sido sequer distribuído a um juiz, e pior, sem qualquer fundamentação, já que a decisão de “remessa” consiste apenas em uma assinatura sob um carimbo genérico com um espaço em branco para preenchimento do número do tema ao qual o recurso sub judice se vincularia.

O processo argumentativo seguido para a extensão do tema de repercussão geral anteriormente reconhecido, assim como, os ônus argumentativos que se impõem para o comportamento dissonante àquele tema é totalmente desrespeitado pela ausência de fundamentação do ato, que se limita ao Carimbo com o número de identificação do paradigma representativo. O ato se torna um “comando inexorável”.[11] Nesse aspecto, a busca por uma eficiência quantitativa de produção generalizada de decisões modelos, sem a previsão de métodos adequados de impugnação e em total desrespeito à Constituição fere diretamente todo o processo decisório democrático.

Além disso, o ato, que não apresenta nenhuma fundamentação sobre a adequação àquele tema identificado, padece de legitimidade discursiva e interpretativa rompendo com os adequados "discursos de aplicação" – é dizer, discursos sobre a adequabilidade da norma ao caso.[12] A devolução ou o sobrestamento, então, do Recurso ocorre em total descumprimento ao princípio da “vinculação ao caso concreto” (Mootness Principle),[13] o que dificulta sobremaneira a individualização do Direito e a justiça no caso individual, que reclama o esgotamento discursivo dos aspectos relevantes ao caso.[14]

Dessa forma, há um risco irremediável em se reconhecer a proposta regulamentada do novo artigo 1.043 projetado sem questionarmos profundamente as determinações da Portaria 138 de 2009 do STF. A técnica de utilização do instituto da repercussão geral necessita de um procedimento que atenda, ao mesmo tempo, ao conjunto de princípios processuais constitucionais, às exigências de efetividade normativa do ordenamento e à geração de resultados úteis, dentro de uma perspectiva procedimental de Estado Democrático de Direito.[15]

Portanto, além de se reconhecer, imediatamente, a inconstitucionalidade da Portaria 138/2009, da Presidência do Supremo Tribunal Federal, há que se ampliar o entendimento sobre a racionalidade dessa prática jurídica, a fim de refletirmos sobre uma compreensão adequada dos riscos e dos problemas de legalidade e legitimidade que os aplicadores do Direito estão enfrentando. Deve-se questionar o impacto dessa boa norma do Código de Processo Civil Projetado sobre esses fatores, diante do atual cenário do Poder Judiciário Brasileiro e promover o debate sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal e o seu dever de julgar e fundamentar adequadamente suas decisões em um contexto de integridade da pratica judiciária.

Por fim, apesar de reiterarmos a inconstitucionalidade da referida Portaria na atualidade, há de se perceber a imposição de sua revogação imediata a partir do advento do CPC Projetado e de seu artigo 1.043, seja pelas razões já indicadas, seja pela mesma não atender ao dever de fundamentação fortalecido pelo projeto (art. 499, Projetado), além de trazer evidente contrariedade às garantias de comparticipação/cooperação e do contraditório como garantia de influência e não surpresa (art. 10, Projetado).

 


* Este ensaio aborda algumas conclusões da Pesquisa Judiciária intitulada “A força normativa do direito judicial: uma análise da aplicação prática do precedente no direito brasileiro e dos seus desafios para a legitimação da autoridade do Poder Judiciário”, financiada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), administrada pela Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa (FUNDEP/UFMG), e concebida e executada por Grupo de Pesquisa ligado à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sob a coordenação do Prof. Dr. Thomas da Rosa de Bustamante (Contrato de n. 17/2013) com participação dos Profs. Drs. Dierle Nunes, Misabel Derzi entre inúmeros outros pesquisadores. O relatório final da pesquisa se encontra em fase de redação.

[1] Para uma análise crítica do tema cf. NUNES, Dierle; TEIXEIRA, Ludmila. Acesso à Justiça Democrático. Brasília: Gazeta Jurídica, 2013.

[2] Sobre o CPC Projetado cf. STRECK, Lenio. Por que agora dá para apostar no projeto do novo CPC. Acessível em: http://www.conjur.com.br/2013-out-21/lenio-streck-agora-apostar-projeto-cpc. NUNES, Dierle. Novo CPC consagra concepção dinâmica do contraditório. Acessível em: http://www.conjur.com.br/2013-out-08/dierle-nunes-cpc-consagra-concepcao-dinamica-contraditorio.

[3] “Art. 1.043. Recebida a petição do recurso pela secretaria do tribunal, o recorrido será intimado para apresentar contrarrazões no prazo de quinze dias. Parágrafo único. Findo esse prazo, serão os autos remetidos ao respectivo tribunal superior, independentemente de juízo de admissibilidade. Para acesso integral ao CPC Projetado em sua redação da Câmara acessar: https://www.academia.edu/6562468/Novo_CPC_-_Redacao_Final_Camara_-_26.03.14_-_Enviado_ao_Senado

[4] Cf. http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=publicacaoInformativoRG&pagina=BoletimdaRepercussaoGeral2013

[5] THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Breves considerações sobre a politização do Judiciário e sobre o panorama de aplicação no direito brasileiro: Análise da convergência entre o civil law e o common law e dos problemas da padronização decisória. Revista de Processo, São Paulo, v.35, n.189 , p.09-52, nov. 2010.

[6] “Art. 1o. Determinar à Secretaria Judiciária que devolva aos Tribunais, Turmas Recursais ou Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais os processos múltiplos ainda não distribuídos relativos a matérias submetidas a análise de repercussão geral pelo STF, os encaminhados em desacordo com o disposto no § 1º do art. 543-B, do Código de Processo Civil, bem como aqueles em que os Ministros tenham determinado sobrestamento ou devolução.”

[7] THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Litigiosidade em massa e repercussão geral no recurso extraordinário. Revista de Processo, São Paulo, v.34, n.177 , p.09-46, novembro 2009..

[8] THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Breves considerações sobre a politização do Judiciário e sobre o panorama de aplicação no direito brasileiro. cit.

[9] Competência por alguns questionada, uma vez que o Tribunal, ao realizar o exame material de fundo da repercussão geral colocada em debate, acabar por usurpar a competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal de interprete de questões constitucionais (art. 102, III, §3, CR/88).

[10] Os tribunais pesquisados são: TJRS, TJPA, TJMG, TJPB, TJDFT, TRF-1, TRF-4, TRF-5, STJ, STF. Foram encontradas pela equipe amostras de processos que confirmam empiricamente a hipótese afirmada neste ensaio. Foram feitas, também, entrevistas com Desembargadores, Juízes e servidores que expressaram uma preocupação genuína com o procedimento adotado no Supremo Tribunal Federal. Cabe ressaltar, no entanto, que este problema não foi encontrado ao se analisar decisões do Superior Tribunal de Justiça. Neste último tribunal, todos os agravos e recursos especiais são remetidos a um Relator, o qual prolata uma decisão fundamentada, registrada e autuada sobre a admissibilidade do recurso ou a sua remessa à instância de origem para sobrestamento ou eventual novo julgamento.

[11] THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Breves considerações sobre a politização do Judiciário e sobre o panorama de aplicação no direito brasileiro. cit.

[12] GÜNTHER, Klaus [1993]. [1993-b]. The Sense of Appropriateness – Application Discourses in Morality and in Law. Trad. de John Farrel. Albany, State University of New York Press.

[13] BUSTAMANTE, Thomas [2012-a]. Teoria do Precedente Judicial: A justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses. HARRIS, J. W. [1990]. “Towards principles of overruling – When should a final court of appeal second guess?”. Oxford Journal of Legal Studies 10/135-199.

[14] NUNES, Dierle José Coelho. O Brasil entre o civil law e o common law: a tendência de padrinizacao decisória (uso de precedentes) – Iter mínimo para a sua aplicação. de Diritto brasiliano. 07 de julho de 2011. Disponível em:

[15] NUNES, Dierle. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2008.

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