Mudança de mentalidade

Fim do segundo mês de férias de magistrados não viola direitos

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11 de abril de 2014, 7h50

A temática “férias de dois meses” costuma despertar manifestações extremas, seja na tentativa de defendê-la ou atacá-la, geralmente com uma retórica retumbante e com tons emotivos ou passionais. Os defensores, costumeiramente as entidades profissionais, defendem ardorosamente referido direito, usando argumentações jurídicas, sociais e biológicas. Os detratores baseiam-se em critérios isonômicos e, em muitos casos, partem para o ataque pessoal, demonstrando algum grau de rancor para com as carreiras.

Apesar de ser um tema muito secundário no debate jurídico nacional, a questão ganha magnitude por envolver opiniões e debates do mais humilde cidadão até a cúpula dos tribunais brasileiros. Os magistrados tornaram-se verdadeiras “genis” das frustrações nacionais, sempre sendo os principais culpados por todas as mazelas sociais e jurídicas, ainda que o processo não dependa única e exclusivamente deles.

Outro ponto a ser realçado é que o senso comum associa imediatamente férias de dois meses aos magistrados, esquecendo-se completamente que há outras carreiras com o mesmo direito/privilégio. Para as demais carreiras chega a ser interessante essa amnésia seletiva, visto que não precisam argumentar perante a mídia e opinião pública (ou fazê-las de uma maneira mais simples) sobre a necessidade das férias de dois meses.

Na CRFB não encontramos menção acerca das férias de dois meses para as carreiras jurídicas. Há menção ao fato de as férias deverem ser remuneradas com um terço a mais do que o salário normal. Na Lei 8112/90 (estatuto dos servidores federais) menciona-se que as férias serão de 30 dias. Em relação aos servidores estaduais e municipais, as leis seguem o padrão de férias 30 dias.

No que tange aos magistrados, enquanto a lei complementar de iniciativa do STF não está em vigor, vige a LC 35/79. A LC 35/79 possui inúmeros trechos em contradição com a atual CRFB ou que não se aplicam mais. Assim, o CNJ vem ganhando papel de referência ao “atualizar” a lei, bem como diversos tribunais, administrativamente, acabam por regular alguns aspectos (gerando cizânias judiciais). Nessa lei, no artigo 66, aduz-que as férias serão de sessenta dias.

Com relação aos membros do parquet, a Lei 8625/93 versa que as férias serão iguais aos dos magistrados. Por sua vez, a Lei Complementar 75/93 (organiza o Ministério Público da União), no Art. 220, dispõe expressamente que as férias dos integrantes do MPU serão de sessenta dias.

Com relação aos defensores públicos, o Art. 134, §1º, da CRFB menciona que

§ 1º Lei complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos, na classe inicial, mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais.

A Lei Complementar 80/94 foi editada em obediência ao comando constitucional. É importante esclarecer que a referida lei organiza a Defensoria Pública da União e normas gerais para as defensorias públicas estaduais. É curioso verificar que há estados em que os defensores possuem férias de sessenta dias e, no estado ao lado, não há esse direito. Claramente verifica-se uma situação esdrúxula, pois uma mesma função possui “prerrogativas” distintas.

No que se refere à advocacia pública, no plano federal há a Advocacia Geral da União e nos estados que nos estados há as procuradorias. Os membros da AGU possuem trinta dias de férias. Em semelhança às defensorias, é possível que estados vizinhos concedam períodos de férias distintos para seus advogados públicos.

As férias possuem um objetivo social e outro físico: este serve para que a pessoa possa “esquecer”, ainda que minimamente, as tarefas e obrigações do seu labor, enquanto que aquele serve para a pessoa poder reforçar seus laços sociais, realizar uma viagem, dedicar-se mais a atividades acadêmicas ou simplesmente gozar o ócio. A essencialidade das férias é tão latente que a CLT proíbe que sua totalidade seja “vendida” pelo trabalhador, de modo a tentar preservar a saúde do mesmo. No plano público, a grande massa de servidores e empregados públicos possuem direito a férias remuneradas de trinta dias, não importando o fato de sua função ser a de um mero “carimbador” em alguma repartição ou a de um piloto de caça da força aérea brasileira.

Contudo, por diversas razões, há inúmeros casos em que o servidor não goza as férias por inúmeros períodos e, posteriormente, requer a conversão desse período em pecúnia. É uma maneira mínima de reparar uma lesão causada pelo ente estatal que impediu ou dificultou o gozo desse sagrado direito constitucional.

É sempre importante realizar uma distinção entre prerrogativa funcional e privilégio. A prerrogativa funcional decorre da necessidade do próprio cargo público e não se confunde com a pessoa. Ela é uma proteção ao cargo, à pessoa e à sociedade, pois garante um patamar ideal para o exercício do mister. O privilégio, que pode vir travestido legalmente de “prerrogativa” e de todo um discurso pomposo em sua defesa, é algo concedido não pelo cargo em si, mas por conta da pessoa, da posição política ou jurídica.

Certamente há uma zona cinzenta em alguns casos e a prerrogativa pode ser vista como privilégio, a depender, por exemplo, de alguma posição política ou do próprio caso concreto. As férias de dois meses são vistas como privilégio ou prerrogativa, a depender da “posição” do combate.

Tristemente, o debate acerca do período de férias acaba por descambar em um embate, deixando a razão de lado. Virulentos ataques pessoais, ironias, ofensas e reclamações genéricas e generalizantes reinam. Com certeza esta não é a melhor forma de debate e análise. Passionalismos e catastrofismos não são úteis e pouco acrescentam ao debate.

Uma situação costumeiramente vislumbrada nas notícias de diversos meios de comunicação são as férias de dois meses dos magistrados. Estes se tornaram alvo de todos os tipos de críticas, inclusive quanto à atuação profissional (celeridade e/ou qualidade das decisões, por exemplo), por conta do privilégio/prerrogativa. É praticamente impossível que em um quadro gigantesco de magistrados não haja uma parcela que não atue conforme a dignidade da profissão exige.

O mesmo ocorre na classe dos defensores e advogados públicos (e privados), membros do ministério público e servidores em geral. Assim, proferir críticas rasas contra toda uma carreira porque determinado juiz ou desembargador desagrada de alguma maneira é algo infantil e tolo.

“Há previsão legal das férias de sessenta dias”… Essa “saída” argumentativa é das mais paupérrimas, haja vista que o processo legislativo sofre influências do momento político de sua elaboração e, com isso, engloba-se o lobby das associações representativas, posições pessoais dos congressistas e suas naturais atecnias e a disposição do poder político dominante em negociar (e o limite da negociação). Assim, prender-se a uma oportuna legalidade estrita é pretender retornar aos tempos do juiz boca da lei.

Um ponto interessante é que a interpretação escudada simplesmente na literalidade da lei é uma faca de dois gumes, visto que em determinado momento ela poderá ser prejudicial. Como o sistema jurídico deve ser coerente, não é crível que um meio interpretativo seja extremado em um momento e, casuisticamente, sofra uma flexibilização (ainda que em nome do vulgarizado princípio da dignidade humana).

Merece destaque o fato de que não é porque algo “está na lei” que instantaneamente cria-se um dogma. Não se nega que determinadas matérias, por conta de sua magnitude e por garantirem direitos e condições mínimas para o funcionamento do Estado não são tão maleáveis pelos legisladores. As cláusulas pétreas não podem ser abolidas ou extintas, mas é aceito em parcela da doutrina e das cortes nacionais que elas podem sofrer mitigações.

Férias são um direito essencial à pessoa e, por tal razão, o referido direito não pode ser extinto. Contudo, a duração das mesmas, a possibilidade de parcelamento e de “venda” e demais aspectos que gravitam em volta do referido direito podem ser alvo legislativo. Daí ser possível concluir que o fim do segundo mês de férias não violaria tal instituto jurídico, haja vista que existiria um período de trinta dias para descanso da pessoa (não se vulneraria frontalmente o direito).

Tampouco feriria a dignidade humana, haja vista que se aceitarmos a linha interpretativa de que a redução de um mês de férias afetaria o fundamento constitucional acima mencionado, atestar-se-ia que praticamente todos os trabalhadores, públicos ou privados, são costumeiramente violados em sua dignidade por parte do Estado e dos empregadores.

Não se nega a importância para o cenário nacional dos atores jurídicos, como também não se pode negar a importância dos demais ofícios, desde o pequeno empresário, um gari e um executivo de uma multinacional. Lamentavelmente, diversos membros do cenário jurídico possuem patologias no órgão humano mais sensível: a vaidade. Com isso, por terem logrado êxito em um concurso muito disputado e talvez pelo fato de determinadas funções possuírem um “status”, tornam-se vaidosos e arrogantes.

Os diversos ofícios possuem sua importância para todos e também possuem suas peculiaridades. As restrições e prerrogativas de um magistrado não podem ser as mesmas impostas a um técnico em edificações. O mesmo se aplica a administradores de sociedades e a microempresários. Por essa razão, impõem-se restrições ou criam-se prerrogativas. Essa linha de raciocínio justifica a existência de vedações a diversos membros das carreiras jurídicas, bem como justifica também as prerrogativas e direitos inerentes.[1]

Logo, não é viável querer igualar a atuação de caminhoneiros com defensores públicos, mas também não é crível que o segundo ofício seja visto como “melhor” ou “mais importante”. Estabelecidas as diferenças, o questionamento é se as férias de sessenta dias seriam uma prerrogativa ou privilégio?

Defende-se que sessenta dias de férias seriam uma forma de atrair candidatos aos concursos públicos. Com isso, gera-se um questionamento: afinal, as férias seriam uma prerrogativa institucional ou um modo de atrair candidatos? Se as férias são prerrogativas, o argumento de “atrativo para a carreira” cai por terra. Isso ocorreria porque sendo um “atrativo”, o raciocínio de que elas seriam imperiosas à atividade deixa de existir, revelando o mero interesse corporativo.

Geralmente, os vencimentos da área pública são maiores que os pagos na área privada, verificando-se um aumento brusco de pessoas pretendendo adentrar no serviço público. Os concursos da área jurídica são muito disputados e difíceis, sendo que os , salários costumam ser bem atrativos. O mercado de trabalho da advocacia está inchado e bem tormentoso e os salários sofrem um achatamento por conta do “inchaço”. As exigências da profissão, a costumeira ausência de jornada definida e tempos de descanso são fatores que contribuem para o desânimo de diversos advogados, novos ou não. Dificilmente algum candidato opta por determinada carreira jurídica tendo por base a questão das férias. Vocação, preferência e, principalmente, a remuneração são fatores de atração.

Não se nega que o trabalho das carreiras jurídicas possui uma forte carga de estresse emocional, ainda mais por lidar com pessoas, direta ou indiretamente. Diversas decisões repercutirão com força na sociedade e, caso não haja análise acurada, os danos podem ser incalculáveis. Não se nega também que diversos outros ofícios também possuem uma forte carga estressante. Basta pensar em bombeiros e policiais militares, plantonistas de emergências hospitalares… Mesmo nesses ofícios mais estressantes não se verifica a existência legal de férias de sessenta.

Dentro das carreiras jurídicas nota-se a existência de lotações mais estressantes que outras por inúmeros fatores: estrutura de trabalho e da localização, volume de trabalho… É impossível crer que os integrantes de uma carreira jurídica trabalhem igualitariamente, pois há diversas variáveis em jogo, especialmente no setor público, que possui inúmeros fatores que podem “travar” a atuação do mesmo.

Alegar o estresse como fator necessário para a existência de férias de sessenta dias não é saudável, especialmente se for considerado que há diversas defensorias públicas e procuradores estaduais que gozam de apenas trinta dias de descanso, mesmo enfrentando questões idênticas a dos profissionais que atuam em um estado que garanta férias maiores. Quando se faz a mesma comparação com a iniciativa privada, a probabilidade de esse período a mais de descanso ser visto como um privilégio inconcebível é imensa.

Justamente para compensar as naturais intercorrências da carreira é que há regramento específico. O mesmo pensamento vale para a existência de direitos e prerrogativas. A mudança de mentalidade da sociedade é um fator a ser levado em conta, haja vista que, se no passado não soava mal a existência de um período maior de férias, atualmente vê-se que a noção vigente é de mostrar que a área pública não deve ser vista como um fim, mas tendo funcionalidade ao país.

Além do período maior de férias, há também o recesso de final de ano. Ainda que haja escala de plantão em ambos os períodos, especialmente no recesso a atividade judiciária é bem menor. Não se defende que os membros das carreiras não possam gozar das referidas festividades, mas apenas demonstra-se que é mais um período de interrupção, ainda que parcial, das atividades forenses que, somadas às férias maiores, soam indiscutivelmente ruim à sociedade.

Alegar que há falta de profissionais é razoável e justo, mas isso um fato praticamente unânime no serviço público, tendo em conta que as atividades estatais são múltiplas e o tamanho das administrações exige uma multiplicidade pessoas.

Uma última questão a ser ressaltada é a possibilidade de venda das férias. Se o referido período é usado para atualização profissional ou descanso, é contraditório que possa existir a possibilidade de venda e o consequente recebimento em pecúnia. Privilégio ou atrativo para a carreira? Se é possível realizar a venda, então observa-se que trinta dias bastam para a atualização profissional (que pode ser feita durante o período em que se trabalha) ou recuperação da saúde.


[1] É ingenuidade crer que todas as prerrogativas ou direitos decorrem pura e simplesmente da necessidade de garantir condições mínimas para o exercício da função. A pressão das entidades de classe, o reconhecimento social e dependência do poder político podem ajudar ou atrapalhar na busca por mais direitos travestidos de prerrogativas.

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