Moderna concepção

Só teoria privatística permite desistência de MS

Autor

  • Pablo Bezerra Luciano

    é presidente da Associação Nacional dos Procuradores do Banco Central do Brasil e diretor de comunicação do Forvm Nacional da Advocacia Pública Federal.

28 de julho de 2013, 9h14

Desde que há pelo menos um século se observou a derrocada da teoria civilista da ação, não há dissenso na ciência jurídica quanto à integração do direito processual ao ramo do direito público.

As normas que regem o exercício do poder estatal pela via jurisdicional, a formulação da ação e da defesa e o modo de ser do processo são normalmente cogentes, isto é, insuscetíveis de modificação pela vontade das partes. A jurisdição, a ação, a defesa, e o processo não emanam do direito material das partes nem, muito menos, do direito civil. Por meio do processo, o Estado busca a concretização de escopos sociais, políticos e jurídicos seus, que transcendem os interesses mais imediatos das partes, e que confirmam sua natureza essencialmente pública.

Em nada perturba a qualificação da natureza pública do processo a percepção de que sua instauração depende na quase totalidade dos casos de iniciativa da parte (artigos 2º e 262 do CPC). A ação, como poder constitucionalmente deferido às pessoas de colocar o Judiciário em movimento para a tutela de seus interesses (artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição), ainda que exercida de acordo com critérios de conveniência individuais, não determina uma natureza privada do processo. A iniciativa da parte é apenas uma exigência da instauração do processo, mas não determina, por si só, seu resultado nem mesmo seu o desenvolvimento.

Entretanto, a exemplo do que ocorreu durante o julgamento pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal do Recurso Extraordinário 669.367/RJ, na sessão de 2 de maio de 2013, na física dos tribunais brasileiros nem sempre se tem a exata compreensão de que o processo não é um negócio privado em família (Liebman), no qual a figura do magistrado é a de mero expectador. Na ocasião, em acórdão ainda não publicado, contra os votos vencidos dos ministros Luiz Fux (relator) e Marco Aurélio, a maioria dos membros da Corte Suprema, a partir da divergência inaugurada pela ministra Rosa Weber, considerou ser possível a desistência de mandado de segurança, independentemente de já ter havido decisão de mérito, favorável ou desfavorável ao impetrante.

De acordo com notícia veiculada no Informativo de Jurisprudência 704, publicado em 17 de maio de 2013, a solução propugnada pelo STF no RE 669.367/RJ partiu da não aplicação da norma do parágrafo 4º do artigo 267 do Código de Processo Civil, que coloca limites no exercício da desistência, nos seguintes termos “depois de decorrido o prazo para a resposta, o autor não poderá, sem o consentimento do réu, desistir da ação”. A autoridade coatora, no entender da maioria do STF, não seria equiparável a “réu” e, por consequência, não teria direito a obstar a desistência. O mandado de segurança, nos termos do Informativo, “não se revestiria de lide, em sentido material”.

No voto vencido do relator, de acordo com notícia publicada no sítio eletrônico do STF , constou a conclusão de que seria inviável a desistência da ação quando já houvesse decisão de mérito, pois “a parte não pode ter o domínio de, depois que o Estado se desincumbiu da prestação judicial, desistir de tudo aquilo quanto induzira o Estado”.

A decisão proferida no RE 669.367/RJ, que não configura um viragem jurisprudencial, seguiu a mesma linha dos seguintes julgados: RE 167263 ED-EDv, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2004, DJ 10-12-2004; RE 287978 AgR, Relator(a):  Min. CARLOS BRITTO, Primeira Turma, julgado em 09/09/2003, DJ 05-03-2004; RE 255837 AgR, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 22/08/2000; RE 167224 AgR, Relator(a):  Min. NÉRI DA SILVEIRA, Segunda Turma, julgado em 21/03/2000; RE 165712 ED, Relator(a):  Min. SYDNEY SANCHES, Primeira Turma, julgado em 02/04/1996.

De fato, a jurisprudência do STF tem entendido que o exercício da desistência no mandado de segurança pode ocorrer a qualquer momento, até mesmo durante o trâmite de recursos extraordinários, não se condicionando ao assentimento do réu . Essa intelecção, a exemplo do que constou do voto do Min. Celso de Mello, no RE 255.837, partiu de excerto da doutrina de Hely Lopes Meirelles, segundo a qual a desistência no mandado de segurança poderia ocorrer “a qualquer tempo, independentemente de consentimento do impetrado”. 

Não é difícil de divisar, todavia, profunda incompatibilidade dessa orientação com a assertiva de que o processo é um instituto de direito público e um meio do qual se utiliza o Estado para a realização de escopos que são seus. Nascida de uma interpretação a contrario sensu da norma do parágrafo 4º do artigo 267 do CPC e numa aplicação extensiva dos dizeres de Hely Lopes Meirelles, na prática, a jurisprudência comentada admite que um ato unilateral de vontade da parte autora no mandado de segurança tenha a propriedade de rescindir um ato estatal imperativo emanado pelo Judiciário.

A jurisprudência consagrada não se apercebeu que o texto da norma do parágrafo 4º do artigo 267 do CPC se relacionava intensamente com o disposto na redação originária do artigo 463, segundo o qual “ao publicar a sentença de mérito, o juiz cumpre e acaba o ofício jurisdicional”. Ora, se o ofício jurisdicional se considerava completado com a publicação da sentença, é esse ato o marco temporal para que a parte autora ofereça o requerimento de desistência, pois no momento posterior, não poderá o juiz inovar, exceto nos estritíssimos casos de correção de inexatidão material ou em razão da oposição de embargos de declaração. 

Ainda que revogada a norma do artigo 463 do CPC pela Lei 11.232, de 2005, outra não poderia ser a conclusão extraível diretamente do Código. É que o ordenamento processual vigente não admite que o Judiciário, após a sentença, inove no processo sem uma provocação adequada. Tirante a possibilidade de correção de inexatidões materiais pelo próprio juízo que profere a decisão, é pela esteira recursal que são passíveis de alteração as sentenças e acórdãos. 

Proferida a sentença, é, em regra, pela via recursal que as partes podem modificar o resultado da prestação jurisdicional. É claro que pode o recorrente desistir do recurso apresentado, caso, por qualquer motivo, mostre-se desinteressado na alteração do julgado (artigo 501 do CPC). Em tal caso, prevalecerá a decisão judicial já proferida. Porém, não pode a parte autora desistir da ação, ainda que com o consentimento do réu, após a sentença proferida, seja de improcedência, seja de procedência. É preciso dizer: o processo, em qualquer de suas modalidades, não é uma propriedade do autor.

Com efeito, não há qualquer norma que autorize a que atos de vontades das partes sejam determinantes do desfecho dos processos quando esses já dispõem de uma decisão imperativa estatal. Assim, na generalidade dos processos, assim nos mandados de segurança, e com maior razão nesses. 

Não é demais lembrar que, por meio de mandado de segurança, o cidadão coloca à apreciação do Judiciário lesão ou ameaça a direito líquido e certo promovida pelo Poder Público (artigo 5º, LXIX, da Constituição). O objeto de mandado de segurança é justamente a licitude do proceder estatal, o que reforça ainda mais a natureza essencialmente pública desse tipo de processo judicial.

Então, se na generalidade dos casos, não pode a parte autora desistir da demanda após a sentença, com maior razão, nos mandados de segurança essa assertiva deve prevalecer. É que, nessa modalidade de procedimento, o direito controvertido relaciona-se necessariamente a uma atividade estatal, e não a um mero ato negocial privado, de modo que é de interesse da sociedade que o exercício do poder jurisdicional a respeito da higidez ou da ilegalidade do ato da autoridade administrativa não seja nulificado por um ato de vontade do impetrante.

Não se está a dizer que não possa o impetrante desistir do mandado de segurança; nem que o impetrante esteja impedido de abdicar concretamente da fruição do bem da vida assegurado pela decisão judicial. Tampouco se está a dizer que seja indispensável a anuência da autoridade coatora para que a desistência seja homologada. Bem ao contrário, reavaliando a conveniência da impetração, pode a parte autora desistir da demanda, mas só até a prolação da sentença. Afinal, se o próprio interessado imediato no processo não se mostra mais convicto da necessidade da prestação jurisdicional, seja porque haja se convencido da legalidade do ato praticado, seja porque não tem mais interesse no bem da vida concretamente postulado, não se justifica a não desoneração do judiciário do dever de decidir. 

Da premissa da legitimidade da desistência do mandado de segurança não se segue a conclusão de que o impetrante possa tungar um ato estatal que não é seu (sentença). É aberrante admitir-se que, pronunciando-se o Judiciário sobre a legalidade ou ilegalidade do ato estatal objeto do mandado de segurança, possa a parte autora, posteriormente, por meio da desistência da ação, afastar do mundo jurídico um ato estatal. 

Como se nota, a postura jurisprudencial que confere à parte autora o poder de vida e de morte sobre processo por meio da desistência após a publicação da sentença em mandado de segurança, como se o processo fosse sua propriedade, é fruto de um atavismo privatístico da teoria civilista da ação que é inteiramente incompatível com a moderna percepção do processo como um instrumento público à consecução de fins que transcendem aos interesses imediatos das partes. 

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