Prescrição de pedidos

Danos morais decorrentes da ditadura levantam dúvidas

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5 de janeiro de 2012, 13h48

No ano passado, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região, que atende aos estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo, confirmou, em abril, sentença que garantia indenização de R$ 150 mil a um ex-padre, preso por subversão e torturado em 1968 por dar abrigo, na igreja, a militantes que combatiam o governo militar. Sobre a mesa, a questão: pedidos de indenização por prisão durante o regime militar prescrevem em cinco anos? Se no caso do ex-padre — hoje advogado — a corte entendeu que não, em outubro, ao analisar caso semelhante de uma advogada, decidiu de forma diferente. A 6ª Turma da corte — a mesma que confirmou a indenização ao clérigo — entendeu que qualquer pretensão contra a Fazenda Pública prescreve em cinco anos.

A questão sobre a imprescritibilidade ainda não foi respondida definitivamente. A última palavra até agora foi do Superior Tribunal de Justiça, que em outubro julgou imprescritíveis crimes contra direitos fundamentais, em um Recurso Especial do ex-padre. De acordo com o ministro Herman Benjamin, relator do caso, essas violações não decaem, “principalmente quando ocorreram durante o Regime Militar, época na qual os jurisdicionados não podiam deduzir a contento as suas pretensões”.

Da batina à toga
Gerson da Conceição, ex-padre autor da ação analisada pelo TRF-2, tinha 33 anos quando foi preso pelo regime. Era então pároco de Sant’Anna de Japuíba, no município de Cacheira de Macacu, cidade de pouco mais de 50 mil habitantes, na região serrana do Rio de Janeiro. A acusação era de que teria dado guarida a dissidentes que estariam se preparando para lutar na Guerrilha do Araguaia, dissidência armada do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), que intentava iniciar no campo uma revolução socialista, nos moldes da Revolução Cubana.

Segundo ele, na década de 1960 os conflitos eram comuns na zona rural de Cachoeiras de Macacu. As disputas na área, que então recebia um grande número de migrantes nordestinos, seriam causadas, principalmente, pelas constantes invasões de terras: “Eu comecei a organizar os lavradores politicamente, fazendo com que desenvolvessem o senso de comunidade, organizassem as lavouras, produzissem e vendessem seus produtos em Duque de Caxias, que era o mercado mais próximo”, relata.

Em 2006, desvencilhado dos votos, o já advogado ajuizou ação por danos morais contra o governo federal. A União alegou prescrição do direito, uma vez que o processo foi ajuizado 38 anos depois dos fatos. Afirmou também que o ex-padre jamais havia sido incluído na lista de anistiados políticos do Ministério da Justiça.

Para o relator do processo, o juiz federal convocado Leopoldo Muylaert, as ações de indenização por danos causados por atos de tortura ocorridos durante o regime militar são imprescritíveis. Ele também declarou que há muitas provas nos autos comprovando que o ex-padre, que passou cerca de dois anos na cadeia, foi vítima de perseguição política: "Registre-se que a cópia dos processos instaurados contra o autor nos tribunais militares e de exceção da época, não deixam dúvidas dos fatos alegados pelo apelado, sendo verdadeiras peças históricas de uma época em que o país passava por uma fase conturbada", pontuou.

Na decisão, o juiz federal citou o trecho da Declaração Universal dos Direitos do Homem que diz que “toda pessoa tem direito a receber dos tributos nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei”.

De acordo com Muylaert, em casos como esse, é preciso levar em conta outros valores individuais e sociais, além do que diz a lei: "O rigor formal da norma, principalmente da norma processual, deve ser temperado com os direitos fundamentais postos em discussão nos autos", concluiu.

Virada jurisprudencial
Em outubro, a advogada Joselice Aleluia Cerqueira de Jesus não teve a mesma sorte. Presa por dois meses nas dependências do DOI-CODI, na década de 1970, quando ainda era estudante de Direito, Joselice participava de movimento estudantil e era membro do Partido Comunista do Brasil. Depois de ser liberada, foi mantida em liberdade vigiada e respondeu a processo, sendo absolvida pelo Superior Tribunal Militar. Segundo argumentou no processo, enfrentou dificuldades para concluir o curso de Direito, já que teve de fazer as provas finais em segunda chamada, e sofreu discriminação, ao ser socialmente considerada “persona non grata”. Disse, ainda, que foi impossibilitada de prestar concurso público e de se habilitar para empregos na iniciativa privada porque, na folha de antecedentes, constava o processo militar.

Já a União Federal levantou a tese da prescrição. Também afirmou que não havia interesse de agir, já que há procedimento administrativo para cuidar do assunto, através da Comissão de Anistia. Como a advogada não entrou com qualquer pedido no Ministério da Justiça para obter o ressarcimento, não havia justificativa para atuação judicial.

Em primeira instância, a juíza Maria Amelia Senos de Carvalho, da 23ª Vara Federal do Rio de Janeiro, condenou a União a pagar R$ 100 mil de indenização por danos morais. Citando jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, afastou a prescrição no caso.

No Tribunal, porém, a senteça foi revertida. A juíza convocada Maria Alice Paim Lyard, relatora, disse aplicar-se ao caso o artigo 1º do Decreto-Lei 20.910/1932, que estabelece prescrição de cinco anos para qualquer demanda contra a Fazenda. Como a ação da advogada foi proposta em agosto de 2008, envolvendo fatos que aconteceram em 1970, a juíza entendeu que a pretensão já havia prescrito. “O ideal sempre é a punição dos repressores, mas no Brasil isto foi transformado em questão pecuniária, na qual o custo é arcado pela população (com impostos indiretos, que atingem até e especialmente os mais pobres, devido à carga regressiva)”, criticou a juíza convocada na decisão. “Todos reconhecem o problema, os constrangimentos e a injustiça que muitos tiveram, no regime fechado. Como até hoje muitos e muitos têm, com miséria, falta de esgoto, moradia, boas escolas e assim por diante. Mas isso, por si só, não é o suficiente a justificar a indenização.” Vencido, o desembargador Frederico Gueiros discordou. "Em tempos de perseguição política, era impossível ao torturado buscar seus direitos", entendeu. Com informações da assessoria de imprensa do TRF-2.

Processo: 2006.51.01.006690-1

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