Direito Comparado

As linhas que dividem amor e Direito nas constituições

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

27 de dezembro de 2012, 9h31

O amor está ausente da maior parte das legislações estrangeiras, ao menos aquelas com vínculos históricos ou com maior influência no Direito brasileiro. Desse modo, é perceptível a eloquente ausência do amor nos códigos civis de Portugal, Espanha, Alemanha, Itália, França, Bélgica e Argentina. Os modernos códigos de Quebec, da Holanda (versão em inglês) e do Equador também nada dizem sobre essa palavra tão especial. Muito menos as codificações da Venezuela, do Paraguai e do México. A Califórnia, que possui um Código de Família, não refere o amor em seus artigos. É idêntica a situação da Lei sobre Matrimônio da Noruega (versão em inglês), do Family Law Act de 2011, da Colúmbia Britânica, no Canadá, e do Family Law Reform Act de 1969, do Reino Unido.

No entanto, o Código Civil da Louisiana, um enclave de civil law no território de common law, em seu artigo 134, ao tratar do princípio do melhor interesse da criança, afirma que a Corte deverá considerar todos os relevantes fatores necessários a sua determinação, de entre esses “O amor, o afeto e outros vínculos emocionais entre cada parte e a criança” (The love, affection, and other emotional ties between each party and the child). Além da capacidade e da disposição de cada um dos envolvidos em dar à criança amor, afeto e orientação espiritual (artigo 134, 2). Os tribunais da Louisiana utilizam à larga o artigo 134, itens 1 e 2, do Código Civil, especialmente em disputas judiciais sobre a guarda de crianças. Há decisão, por exemplo, que negou a guarda compartilhada de uma criança a um “pai não-biológico”, utilizando-se como fundamento esse dispositivo.[1]

Se forem pesquisados alguns textos constitucionais, como os da Alemanha, da Itália, de Espanha ou da África do Sul, o resultado também será infrutífero. Note-se que a Lei Fundamental alemã menciona a palavra “liberdade”, associada ou não a outros conceitos (de expressão, de reunião, de escolha profissional), mais de trinta vezes. A Constituição da África do Sul, em seu preâmbulo, pede que Deus proteja o povo daquele país, enquanto sua homóloga italiana silencia sobre o Todo-Poderoso, ainda que reconheça a independência e a soberania da Igreja Católica (artigo 7º) e a liberdade de culto (artigo 8º).

Ao contrário do que muitos imaginam, Deus não é mencionado na Constituição norte-americana, posto que a Primeira Emenda garanta a liberdade de culto e de religião. Nem Deus, muito menos a felicidade ou o amor, são mencionados na Constituição da República Portuguesa, que, todavia, define ser uma tarefa fundamental do Estado promover a “qualidade de vida do povo” (artigo 9º, alínea “d”). A belíssima Constituição espanhola de 1978 não alude ao amor. Deus não está em seus dispositivos, da mesma maneira que nela não se encontram palavras como felicidade ou afeto. Os russos não trazem o amor em sua Constituição (na versão em inglês).

Os húngaros, no governo do primeiro-ministro Viktor Orban, heróico líder estudantil na luta contra o comunismo, aprovaram uma polêmica constituição em 2011. Em seu preâmbulo, na tradução inglesa, o amor é expressamente citado: “Nós sustentamos que a família e a nação constituem a base estrutural de nossa coexistência e que os valores fundamentais de coesão consistem na fidelidade, na fé e no amor”. A Constituição húngara é repleta de inusitadas invocações de valores espirituais, como o reconhecimento de que a nação assenta-se na herança da coroa do rei Santo Estevão, que edificou o Estado em “sólidas bases e fez de nosso país parte da Europa cristã há mil anos”, sendo que é reconhecido o papel do Cristianismo na preservação da nacionalidade húngara. A União Europeia já determinou fosse revista a constituição húngara, por entender que alguns de seus artigos afrontam a Carta de Direitos Humanos da Europa.

A felicidade, ou melhor, a “busca da felicidade” (pursuit of happiness), é outra famosa expressão, que deita suas origens na Declaração de Independência dos Estados Unidos de 1776. O texto de Filadélfia é muito conhecido: "Consideramos essas verdades como axiomáticas, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que estão de entre esses a vida, a liberdade e a busca da felicidade”. Há quem defenda que a “pursuit of happiness” substituiu o “direito à propriedade”. Só se poderia ser feliz com a posse de bens materiais. É um reflexo das teorias kantianas, conforme certos estudiosos defendem. Embora por caminhos diversos, a teoria do patrimônio mínimo chega a resultados muito aproximados.

Amor, felicidade e Deus. O leitor deve-se perguntar se a coluna não perdeu o foco, afinal, desde a semana passada [clique aqui para ler], está-se em uma verdadeira “busca pelo amor” nos ordenamentos jurídicos. Bem, antes de prosseguir, é necessário reconhecer que a pesquisa no Direito estrangeiro não produziu resultados muito diferentes da investigação no Direito nacional.

A referência conjunta a Deus, à felicidade e ao amor tem razão de ser. No Senado Federal, tramita uma proposta de emenda à Constituição (mais conhecida como PEC da felicidade) que daria a seguinte redação ao artigo 6º: “São direitos sociais, essenciais à busca da felicidade, a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

Muitos acreditam que Deus é amor, inspirados na palavra do evangelista (“Aquele que não ama não conhece a Deus; porque Deus é amor” — Primeira Epístola de S. João, IV:8). Com o avanço do laicismo nas sociedades ocidentais, o que se percebe claramente pela retirada de Deus dos textos jurídicos, a procura por algum tipo de conexão do Direito com os elementos metajurídicos é, embora disfarçada, bastante comum em discursos doutrinários e jurisprudenciais. Dito de outro modo, a felicidade ou o amor são excelentes companheiros de qualquer argumento retórico, ainda que revestido de caráter jurídico. Como no passado argumentar com ou contra Deus seria algo perigoso ou indefensável, cercar-se do amor (ou sentimento equivalente) pode muito bem representar um salvo-conduto contra refutações puramente técnicas. Não teria a dignidade humana, a eminente e conspícua dignidade humana, entrado também por esse caminho tão obscuro?

Na última coluna, colocaram-se duas questões: (1) o amor é susceptível de se juridicizar?; (2) o amor é utilizável como fundamento no discurso jurídico, qualquer que seja ele, dogmático, legislativo ou jurisprudencial?

É o caso de voltar para esses problemas.

Há uma fotografia da Primeira Guerra Mundial, que retrata uma missa celebrada por um capelão do Exército Real e Imperial da Áustria-Hungria, pouco antes de uma das mais sangrentas batalhas daquele horrendo conflito, prestes a completar um século. O capelão está coberto por suas vestes sacerdotais, mas se percebe que ele está de uniforme. Todos estão ajoelhados, com ar de profunda compunção, enquanto o padre eleva a hóstia na consagração. A maior parte daqueles homens morreria horas depois, posto que sinceramente acreditassem na proteção de Deus. Eram leões liderados por cordeiros, para se roubar uma metáfora alemã. Do outro lado, estavam os russos. Provavelmente, abençoados por um capelão ortodoxo, que também rogara a(o mesmo) Deus que trucidasse os inimigos do czar Nicolau II.

Ambos os lados acreditavam que Deus estava de seu lado. Era uma crença. E há poucas coisas tão insusceptíveis de controle racional do que a fé. Os textos sagrados e a sabedoria popular assim o confirmam, pois a “fé remove montanhas” e “tudo é possível àquele que crê”. Se, no plano religioso, essas são afirmações que não se discutem, é possível transpor esse modelo para um campo tão aberto a conflitos quanto o Direito? Em cada processo, há um combatente. Se trocarmos Deus pelo Amor, não estaríamos agindo à semelhança daqueles pobres oficiais e soldados austro-húngaros?

A deusa pagã Thémis, símbolo de uma religião que nada mais diz ao homem ocidental, ao menos desde Juliano, o apóstata, ocupa posição privilegiada em nossos tribunais. A estátua da deusa vendada é a representação da Justiça. Alf Ross, em uma célebre frase, afirmou que invocar a justiça é como resolver uma questão jurídica com um soco na mesa. Ele, a despeito das restrições que se tenha a seu pensamento positivista, desejou alertar para os riscos do vazio argumentativo de quem imagina poder encerrar conflitos e “dar a cada um o que é seu” com a invocação de conceitos que, ao mesmo tempo, tudo e nada significam para os seres humanos. Se, em relação à Justiça, como defende o Jusnaturalismo, há o exemplo de Antígona, clamando pela prevalência de algo superior e antecedente ao Direito positivo, no que se refere ao “amor”, a situação é diferente.

Como dito na semana passada, fazer justiça é cometer injustiça. O perdedor em um processo dificilmente dirá que Thémis lhe sorriu. Nessa hipótese, contudo, está-se no plano das baixezas humanas. A invocação de Deus, ao menos em Estados laicos, é irrelevante, o que não significa que Ele possa agir em outros planos. Mas, crentes e não crentes, ao menos para o Direito, são iguais perante a norma e é assim que o diz a Constituição.

O “amor”, e é bom que se volte a ele, definitivamente, não é jurídico. Sua juridicização pode até ocorrer, o que realmente se deu em casos excepcionais na legislação nacional e estrangeira. Assim, em resposta ao problema (1), tem-se que as fronteiras do amor e do Direito devem ser mantidas, ainda que exceções sirvam apenas para confirmar a diferença de planos. O “amor” não pode ser o novo “deus” laico. Ele é sublime demais para se conspurcar com o Direito, que só é nobre quando seus realizadores conseguem sê-lo. No entanto, os homens guardamos em nós mesmos o gérmen da destruição, da imperfeição e da incompletude.

Aqui cabe voltar um pouco a fundamentos menos metafísicos: de acordo com a teoria egológica de Carlos Cossio, o ato humano é necessariamente um ato jurídico, por se colocar nos campos da licitude ou da ilicitude. Hans Kelsen, que com ele debateu em sua viagem à América Latina, [2] tal como referido pelo ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior, teria assim se pronunciado: “Kelsen, reptado por Cossio, o criador da teoria egológica, perante a congregação da Universidade de Buenos Aires, a citar um exemplo de relação interssubjetiva que estivesse fora do âmbito do Direito, não demorou para responder: ‘Oui, monsieur, l’amour’. E assim é, na verdade, pois o Direito não regula os sentimentos”.[3]

Mesmo se buscarmos respostas na religião, essas diferenças essenciais entre uma relação jurídica e uma relação amorosa tornar-se-ão igualmente nítidas. Na famosa parábola do Bom Samaritano, descrita no Evangelho de S. Lucas (X:30-37), Jesus fala do “amor ao próximo” e eis que um doutor da lei indaga-lhe: “E quem é meu próximo?” A resposta é assim fornecida:

“30. Prosseguindo Jesus, disse: Um homem descia de Jerusalém a Jericó, e caiu nas mãos de salteadores que, depois de o despirem e espancarem, se retiraram, deixando-o meio morto. 31. Por uma coincidência descia por aquele caminho um sacerdote; quando o viu, passou de largo. 32. Do mesmo modo também um levita, chegando ao lugar e vendo-o, passou de largo. 33. Um samaritano, porém, que ia de viagem, aproximou-se do homem e, vendo-o, teve compaixão dele. 34. Chegando-se, atou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho e, pondo-o sobre o seu animal, levou-o para uma hospedaria e tratou-o. 35. No dia seguinte tirou dois denários, deu-os ao hospedeiro e disse: Trata-o e quanto gastares de mais, na volta eu to pagarei. 36. Qual destes três te parece ter sido o próximo daquele que caiu nas mãos dos salteadores? 37. Respondeu o doutor da lei: Aquele que usou de misericórdia para com ele. Disse-lhe Jesus: Vai-te, e faze tu o mesmo”.

Até o momento em que o samaritano cuidou das feridas e levou o doente à hospedaria, ele nada mais fez do que cumprir uma obrigação jurídica. Lembram-se da gestão de negócios? Ou da omissão de socorro? Ao dizer ao estalajadeiro “trata-o”, o samaritano também não agiu por “amor”, mas obrigado pelas relações jurídicas estabelecidas pelo contato social. Mas, quando ele completou a frase, dizendo “e quanto gastares de mais, na volta eu to pagarei”, ali entrou a luz do amor ao próximo. Fez-se o marco divisor entre os dois planos. O Direito, como sempre, é envergonhado pela magnanimidade do amor. Assim tem de ser, porquanto se o amor se converte em obrigação, ele deixa de sê-lo.[4] A separação entre o amor e o Direito é tão importante quanto foi uma conquista histórica a distinção entre religião e Direito, a qual já se encontrava prevista na própria Bíblia (“Daí a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” — Mateus XXII:21).

A utilização do amor no discurso jurídico (questão 2), considerada a distinção entre relações, nos termos já apresentados, é de ser também objeto de fortes restrições. A invocação do “amor” para se restringir prerrogativas jurídicas é absolutamente contrária ao Direito, dado que se, nas palavras de Cossio, o Direito é liberdade e as normas são violáveis. Ora, o que se dizer de um sentimento como o amor? Se convertido em obrigação ou dever, pode-se chegar ao extremo de “fabricar” o amor para se evadir dos deveres jurídicos a ele imputados.

Alguns “elementos parcelares” do altruísmo foram historicamente juridicizados e convertidos em obrigações (ou deveres). O seguro social (que é universal) constitui-se num exemplo dessa conversão da caridade e da filantropia para com os inválidos por exercício de atividades profissionais em um dever jurídico. Os alimentos são outro notório (e bem sucedido) modelo de juridicização (com as vênias pelo uso reiterado desse neologismo) de uma conduta que outrora se radicava no campo da moral. O direito real de habitação é um resquício dos tempos de Justiniano, quando se procurou resguardar as viúvas, casadas pelo regime dotal, que ficavam sem teto, abandonadas pela cupidez e pela avareza de seus filhos. A gestão de negócios e a omissão de socorro são exemplos já citados. O Código Civil é repleto de fósseis da “civilização dos costumes”, que se operou pelos séculos dos séculos, graças à experiência humana.

O século XXI assiste ao embate da juridicização do amor nas relações parentais, como se nota, v.g., com a teoria do abandono afetivo. E isso se dá, paradoxalmente, em paralelo com a irrelevância crescente do casamento como instituição jurídica, cada vez mais equiparado a um mero negócio jurídico, no qual os “deveres” amorosos (que não estão presentes no rol do art. 1.566 do Código Civil)[5] são tidos como questão de foro íntimo, al heia ao Direito. Tenta-se construir uma interessante (e rica) diferenciação entre afeto e amor. Se o amor pode não mais existir (ou nunca ter existido), o afeto é susceptível de exigibilidade e conversão em reparação pecuniária..

Os legisladores ocidentais, em sua maioria, têm fugido da associação do amor a um dever (ou obrigação, conforme o caso) jurídico. As contradições humanas, mesmo em pleno laicismo, fazem com que a busca pelo sublime se haja transferido de Deus para outros elementos metafísicos. Corre-se sério risco se essa “busca pelo amor” terminar por vulgarizá-lo, como hoje parece ser o caminho de outros conceitos tão displicentemente recitados nos discursos jurídicos.


[1] La. Ct. App. 1st 2010, citado em: LOVETT, John A. Love, Loyalty and the Louisiana Civil Code: Rules, Standards and Hybrid Discretion in a Mixed Jurisdiction (August 21, 2012). 72 Louisiana Law Review 923 (2012).

[2] Para maiores detalhes dessa visita à América Latina, que também se estendeu ao Uruguai e ao Brasil: DIAS TOFFOLI, José Antono; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Hans Kelsen: o jurista e suas circunstâncias (Estudo introdutório à edição brasileira da “Autobiografia” de Hans Kelsen. In. KELSEN, Hans. Autobiografia de Hans Kelsen. Tradução de Gabriel Nogueira Dias e José Ignácio Coelho Mendes Neto. 4. ed. Rio de Janeiro :Forense, 2012. p. LIII e ss.

[3] Citação extraída do corpo do voto no REsp 148.897/MG, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, julgado em 10/02/1998, DJ 06/04/1998, p. 132.

[4] Devo esse exemplo a Antonio Junqueira de Azevedo, titular de Direito Civil da Universidade de São Paulo, modelo de professor e de brasileiro, precocemente falecido em 2009, meu orientador no curso de doutorado.

[5] “Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges: I – fidelidade recíproca; II – vida em comum, no domicílio conjugal; III – mútua assistência; IV – sustento, guarda e educação dos filhos; V – respeito e consideração mútuos”.

Autores

  • Brave

    é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).

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