Senso Incomum

E a professora disse: "Você é um positivista"

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23 de agosto de 2012, 8h00

Spacca
“Positivismo”: a algaravia
Participava de uma banca de mestrado em que um aluno defendia uma dissertação sobre hermenêutica. Uma importante professora, também convidada para a arguição, no entremeio de uma discussão em que eu defendia a aplicação do artigo 212 do Código de Processo Penal (eu cheguei à “ousadia” de invocar a “literalidade” do dispositivo), aparteou-me dizendo: “mas você está sendo positivista, ao defender a aplicação da ‘letra da lei’.”). Fiquei impressionado com a “admoestação”.

Já explicitei, em outros textos e obras, a trajetória do positivismo, do século XIX ao século XXI. Portanto, nitidamente a professora, ao acusar-me de “positivista” — o que, em si, não representaria maior problema —, falava do positivismo primevo-legalista (o paleojuspositismo tão criticado por Ferrajoli). Escrevi um texto com um título que é uma pergunta: “Aplicar a letra da lei é uma atitude positivista?”, em que alerto para a confusão que é feita quando os juristas tratam da temática “o positivismo jurídico”. Utilizei o exemplo do artigo 212 do Código de Processo Penal[1], que estabeleceu uma nova forma de inquirição de testemunhas. Enfim, pela nova redação, institucionalizou-se, pelo menos em parte, o tão reclamado “sistema acusatório”. Portanto, um considerável avanço produzido pela legislação.

Ocorre que os juízes e Tribunais da República, incluindo parte do STF e parte do STJ, decidiram que a nova redação, muito embora determine que o juiz somente possa fazer perguntas complementares — sim, senhoras e senhores juízes e promotores, somente perguntas complementares! — essa “letra da lei” não deve ser entendida desse modo. Demonstro: o STJ, por sua 6ª Turma (HC 121.215), decidiu que a inovação do artigo 212 não alterou o sistema inicial de inquirição, podendo o juiz seguir fazendo “como de praxe”, verbis: “Tal inovação [do art. 212 do CPP], entretanto, não altera o sistema inicial de inquirição, vale dizer, quem começa a ouvir a testemunha é o juiz, como de praxe e agindo como presidente dos trabalhos e da colheita da prova. Nada se alterou nesse sentido. (…) Nota-se, pois, que absolutamente nenhuma modificação foi introduzida no tradicional método de inquirição sempre iniciado pelo magistrado.

Contrariando ao que diz o STJ, tenho a dizer que “onde está escrito que o juiz somente fará perguntas complementares”, deve-se ler “o juiz somente fará perguntas complementares”. E não somente por isso. Em “si mesma”, a regra poderia dizer pouco; mas, entendida no âmbito de um processo penal democrático e do princípio acusatório, a alteração semântica tem importância, sim. E muita! Temos, pois, pontos de vista diferentes.

Já o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus 103.525, entendeu que a desobediência do novo procedimento constituía tão somente uma nulidade relativa (sic), aplicando, destarte, o vetusto princípio (geral do Direito) pás de nullité sans grief. Incrível como o STF pode invocar princípios gerais do Direito contra princípios constitucionais e contra regras votadas democraticamente. Sim. Na prática, a ministra Cármen Lúcia disse que o (velho) pás de nullité sans grief vale mais do que o (novo) princípio acusatório.

No caso desse Habeas Corpus, nossa Suprema Corte deu mais valor a um axioma do século XIX que a um princípio do século XXI (depois dizem que os princípios são normas…; pois é!). Na verdade, o STF está deixando de aplicar um artigo do CPP votado e aprovado democraticamente, sem qualquer fundamento constitucional para invalidar o referido dispositivo (relembro que o Judiciário somente pode deixar de aplicar uma lei em seis hipóteses, conforme explicitado em Leis que aborrecem devem ser inquinadas de inconstitucionais!).

Minha resposta
Invoquei, na discussão com a professora — e continuo invocando — os limites da jurisdição. Para ser mais simples: em nome de que e com base em que é possível ignorar ou “passar por cima” de uma inovação legislativa aprovada democraticamente? É possível fazer isso sem lançar mão da jurisdição constitucional?

Parece que, no Brasil, compreendemos de forma inadequada o sentido da produção democrática do Direito e o papel da jurisdição constitucional (embora tanto escrevamos sobre isso!). Tenho ouvido em palestras e seminários que “hoje possuímos dois tipos de juízes” (sic): aquele que se “apega” à letra fria (sic) da lei (e esse deve “desaparecer”, segundo essa “crítica”) e aquele que julga conforme os “princípios” (esse é o juiz que traduziria os “valores” — sic — da sociedade, que estariam “por debaixo” da “letra fria da lei”). Por isso, pergunto: cumprir princípios significa descumprir a lei? Cumprir a lei significa descumprir princípios? Existem regras (leis ou dispositivos legais) desindexados de princípios?

Daí o meu brado:
a) Que os juristas não repitam a velha história de que “cumprir a letra ‘fria’ (sic) da lei” é assumir uma postura positivista…!
b) Aliás, o que seria essa “letra fria da lei”?! Haveria um sentido em-si-mesmo da lei? Ou um “sentido não-frio”?

Na verdade, confundem-se conceitos. Tenho a convicção de que isso se deve a um motivo muito simples: a tradição continental, pelo menos até o segundo pós-guerra, não havia conhecido uma Constituição normativa (Ferrajoli, Hesse e Canotilho), invasora da legalidade (vejam a profundidade da expressão “invasora da legalidade”) e fundadora do espaço público democrático. Isso tem consequências drásticas para a concepção do Direito como um todo!

Então, o que quero dizer é que saltamos de um legalismo rasteiro-pedestre, que reduzia o elemento central do Direito ora a um conceito estrito de lei (como no caso dos códigos oitocentistas, base para o positivismo primitivo), ora a um conceito abstrato-universalizante de norma (que se encontra plasmado na ideia de Direito presente no positivismo normativista), para uma concepção da legalidade que só se constitui sob o manto da constitucionalidade.

Afinal — e me recordo sempre de Elías Díaz —, não seríamos capazes, nesta quadra da história, de admitir uma legalidade inconstitucional. Isso deveria ser evidente. Óbvio (embora este, o óbvio, esteja sempre no anonimato, sendo necessário retirar o véu que lhe encobre)!

Incorporando a discussão
Não devemos confundir “alhos” com “bugalhos”. “Cumprir a letra [sic] da lei” significa, sim, nos marcos de um regime democrático como o nosso, um avanço considerável. A isso, deve-se agregar a seguinte consequência:
a) É positivista tanto aquele que diz que texto e norma (também “vigência e validade”) são a mesma coisa — portanto, igualam “Direito e lei”;
b) como aquele que diz que “texto e norma estão descolados” (no caso, as posturas axiologistas, realistas, pragmaticistas, etc.), hipótese em que o intérprete se permite atribuir “qualquer norma a qualquer texto”.

Tentando dizer isso de forma mais simples: Kelsen, Hart e Ross foram todos, cada um ao seu modo, positivistas. E disso todos sabemos as consequências.

Ou seja:
a) Apegar-se à letra da lei pode ser uma atitude positivista… ou pode não ser;
b) Do mesmo modo, não apegar-se à letra da lei pode caracterizar uma atitude positivista ou antipositivista (ou, se quisermos, pós-positivista);
c) Por vezes, “trabalhar” com princípios (e aqui vai, mais uma vez, meu libelo contra o pan-principiologismo que tomou conta do “campo” jurídico de terrae brasilis) pode representar uma atitude (deveras) positivista;
d) Utilizar os princípios para contornar a Constituição ou ignorar dispositivos legais — sem lançar mão da jurisdição constitucional (difusa ou concentrada) ou de uma interpretação que guarde fidelidade à Constituição — é uma forma de prestigiar tanto a irracionalidade constante no oitavo capítulo da TPD de Kelsen, quanto homenagear, tardiamente, o positivismo discricionário de Herbert Hart (e de seus sucedâneos mais radicais, como os “neoconstitucionalismos” — e aqui no Brasil há uma proliferação de neoconstitucionalismos que usam a ponderação como um álibi interpretativo).[2] Não é desse modo, pois, que escapa(re)mos do positivismo.

Um dilema. Em terrae brasilis, é de se pensar: em que momento o direito legislado deve ser obedecido e quais as razões pelas quais fica tão fácil afastar até mesmo — quando interessa (axiologicamente) — a assim denominada “literalidade da lei”, mormente quando isso é feito com base em (vetustos) métodos de interpretação elaborados por Savigny (no caso da interpretação do artigo 212 em tela, foi o método sistemático) ainda no século XIX e para o direito privado.

Aliás, o que quero dizer quando afirmo, por vezes, a “literalidade da lei”? Aliás, não apenas eu, mas o Supremo Tribunal e todos os juristas, cotidianamente, sem se darem conta, apelam a essa “literalidade” (principalmente quando convém para alguns…)! Ora, por óbvio não sufrago nenhuma postura originalista (vejam o comentário em Verdade Consenso, 4ª. Ed, pp. 498, nota 45) e tampouco exegética (já escrevi demais sobre isso). E nem preciso replicar essa questão aqui, de novo.

Nessa linha, aliás, pergunto:
a) Será necessário lembrar que, desde o início do século XX a filosofia da linguagem e o neopositivismo lógico do círculo de Viena (que está na origem de teóricos do direito como Hans Kelsen), já haviam apontado para o problema da polissemia das palavras (por isso, inventaram a linguagem lógica…)?
b) Estaria a literalidade à disposição do intérprete, usando-a quando lhe aprouver?
c) Se as palavras são polissêmicas, se não há a possibilidade de cobrir completamente o sentido das afirmações contidas em um texto, quando é que se pode dizer que estamos diante de uma interpretação literal?

Ora, a literalidade, com ou sem comillas, é muito mais uma questão da compreensão e da inserção do intérprete no mundo, do que uma característica, por assim dizer, “natural” dos textos jurídicos. Além disso, não há textos sem contextos. O texto não (r)existe na sua “textitude”. Ele só “é” na sua norma. Mas essa norma tem limites. Muitos. E, por quê? Pela simples razão de que não se pode atribuir qualquer norma a um texto ou, o que já se transformou em bordão que inventei há algum tempo, “não se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa”.

Uma palavra, ainda: hermeneuticamente, a questão não está nem na literalidade ingênua, nem tampouco no discricionarismo solipsista. Na verdade, a questão é similar ao problema “realismo filosófico v.s. realismo jurídico”. O significado não brota “da coisa”. Todavia, também não é uma construção de uma consciência racional.[3] O significado é encontrado porque o ser humano é um ser-no-mundo. Não há uma ponte entre esses dois polos porque, como diz o Michell Inwood: o que precisa ficar estabelecido é que o ser humano se apresenta no centro do mundo, reunindo os fios deste. Esse ser humano (chamemo-lo de Dasein) traz consigo o mundo inteiro.

Para explicitar melhor. A partir da hermenêutica, é possível perceber que — quando se defende limites semânticos ou algo do gênero — não se está a afirmar uma volta ao exegetismo literalista… O sentido se dá em um a priori compartilhado. Esse processo não é arbitrário. E, ao mesmo tempo, não representa um processo de representação de um objeto (nem é a sua “fotografia”…). A questão se coloca a partir de um acontecer, que transcende o "sujeito" e o atira no mundo. Daí que, diante dos extremos positivistas ”literalidade-discricionariedade”, estamos situados no meio, ou seja, no sentido que se constitui no ser humano enquanto ser-no-mundo.

Um toque a mais
Não podemos admitir que, ainda nessa quadra da história, sejamos levados por argumentos que afastam o conteúdo de uma lei — democraticamente legitimada — com base numa suposta “superação” da literalidade do texto legal e sob o argumentodo “exegetismo”. Ou seja: bem sei que o Direito não cabe na lei (até Antígona sabia disso); mas, se às vezes cabe, qual é o problema? Heim?

Insisto: literalidade e ambiguidade são conceitos intercambiáveis que não são esclarecidos numa dimensão simplesmente abstrata de análise dos signos que compõem um enunciado. Tais questões sempre remetem a um plano de profundidade que carrega consigo o contexto no qual a enunciação tem sua origem. Esse é o problema hermenêutico que devemos enfrentar! Problema esse que, argumentos ilusórios como o mencionado, só fazem esconder e, o que é mais grave, com riscos de macular o pacto democrático.

Por exemplo, o mesmo STJ que nega a aplicação do artigo 212 do CPP, utiliza-se da literalidade do Código Penal para afastar a tese da possibilidade da pena aquém do mínimo. Por isso, indago:
Juristas críticos (pós-positivistas?) seriam (são?) aqueles que “buscam valores” que estariam (escondidos?) “debaixo” da “letra da lei” (sendo, assim, pós-exegéticos)?
a) Ou seriam aqueles que, baseados na Constituição, lançam mão de “literalidade da lei” para preservar direitos fundamentais?
b) A propósito: seria uma atitude “crítica” a manutenção de alguém preso, denegando-se a ordem de Habeas Corpus com “fundamento” no princípio (sic) da confiança do juiz da causa, ignorando os requisitos da prisão preventiva previstas na “literalidade” do artigo 312 do CPP? Boa pergunta, pois não? Os requisitos constantes na lei não valem nada? Não existe história institucional, tradição, coerência e integridade — enfim, aquilo que chamo de DNA do Direito — sustentando um determinado sentido? Os sentidos estão à disposição do intérprete? Ele, por ser pretensamente crítico, pode deles dispor? E a salvação da democracia estará no sentido que emerge de sua subjetividade, do seu solipsismo, enfim, como muitos gostam, da sua consciência?

Como se viu, é necessário compreender os limites e os compromissos hermenêuticos que exsurgem do paradigma do Estado democrático de Direito. O positivismo é bem mais complexo do que a antiga discussão “lei versus direito”… Nem tudo que parece, é…! Ou, como diz a mãe de um grande Amigo, nem tudo o que parece é; mas se é, parece…! Já se não é, o que se pode dizer?

E, assim, respondi a “acusação” (ou admoestação) da estimada Professora. Com muito respeito. E carinho.

E fechou-se a cortina, porque era “crepúsculo de jogo”, como dizia o grande Fiori Gigliotti (http://pt.wikipedia.org/wiki/Fiori_Gigliotti), que aprendi a admirar e imitar transmitindo jogos de futebol de botão lá no fundão em que eu nasci, onde, como já disse dia destes, imitando Guimarães Rosa, “o mato não tem fecho”…!  Eu queria mesmo é ter sido jogador de futebol (http://www.leniostreck.com.br/site/trajetoria/). Como me arrependo de não ter sido. Parece que estou ouvindo o Fiori dizendo “abrem-se as cortinas e começa o espetáculo…” (os jovens nem imaginam do que se trata!). E isso me emociona ainda hoje.


[1] O art. 212, alterado em 2008, passou a conter a determinação de que “as perguntas serão formuladas pelas partes, diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.” No parágrafo único fica claro que “sobre pontos não esclarecidos, é lícito ao magistrado complementar a inquirição”.

[2] Não há como escrever sobre uma crítica ao direito e sua operacionalidade sem fazer um eterno retorno aos fantasmas cotidianos que arrastam suas correntes no “campo dogmático” e até mesmo em alguns discursos sedizentes críticos (ou transdogmáticos). Por isso, em todo momento, temos que lembrar da “ponderação”, do “pan-principiologismo”, do “discricionarismo”, “do livre convencimento”, etc.

[3] Uma observação: o que se tem visto no plano das práticas jurídicas nem de longe chega a poder ser caracterizada como “filosofia da consciência”; trata-se de uma vulgata disso. Em meus textos, tenho falado que o solipsismo judicial, o protagonismo e a prática de discricionariedades se enquadram paradigmaticamente no “paradigma epistemológico da filosofia da consciência”. Advirto, porém, que é evidente que o modus decidendi não guarda estrita relação com o “sujeito da modernidade” ou até mesmo com o “solipsismo kantiano”. Esses são muito mais complexos. Aponto essas “aproximações” para, exatamente, poder fazer uma anamnese dos discursos, até porque não há discurso que esteja “em paradigma nenhum”, por mais sincrético que seja.

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