Eficácia constitucional

Ordenamento jurídico não acolhe sentido prático da Súmula 5

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20 de maio de 2008, 0h01

Súmula Vinculante tornou-se a palavra-chave para resolver o problema da lentidão do Poder Judiciário. A idéia era simples: se há muitos conflitos semelhantes, que recebem sempre uma decisão mais ou menos padrão ou que são objeto de decisões divergentes, bastaria a edição de uma súmula pelo Supremo Tribunal Federal, que todos os casos poderiam ser decididos, daí em diante, sem necessidade de longos processos.

A súmula (que é um enunciado breve, que resume os termos da decisão) seria vinculante para todos os juízes e tribunais, sob pena de anulação de decisão contrária e de responsabilização de quem a contrariasse. É o que estabelece a Constituição, no artigo 103-A (Emenda 45 de 12/2004), regulamentado pela Lei 11.417/2006. O tema provocou muita discussão e dissensão, havendo quem entendesse mesmo que a idéia de uma súmula vinculante viria a ser incompatível com o primado da lei e subverteria a separação de poderes, por conceder ao judiciário o poder de legislar, com força até superior à do legislativo.

Mas o que desejo discutir agora é apenas o caso particular de uma recente Súmula Vinculante, a de número 5, que exemplifica bem os males da adoção do instituto em nosso ordenamento jurídico. O site do STF publicou, em 8 de maio, notícia com a seguinte chamada: “Súmula Vinculante 5: STF assegura legalidade das mais de 1.700 demissões no serviço público desde 2003”.

O fato de o Supremo Tribunal Federal anunciar a nova súmula em tais termos já é preocupante: como pode um enunciado que vincula apenas as decisões futuras assegurar a legalidade de algo que ocorreu no passado e em tais proporções? A notícia acentua: “um tema que envolve mais de 25 mil processos”, “ao manter o entendimento de que a ausência de defesa em Processo Administrativo Disciplinar não é ilegal, os ministros do STF evitaram 1.711 processos já concluídos em diversos órgãos públicos”.

A súmula vinculante 5 diz: “A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”. Processo administrativo disciplinar é utilizado pela administração pública para apurar supostas irregularidades de servidor público, podendo resultar em punição, inclusive a perda do cargo, cujo procedimento é regulado pela Lei 8.112/1990.

A defesa técnica é desenvolvida por um especialista, no caso um advogado, função que a Constituição Federal considera “essencial à administração da justiça”, de atuação “imprescindível” (artigo 133) à realização de uma série de princípios fundamentais de um processo justo e legal (due process of law): obrigatoriedade de controle pelo poder judiciário, exercício da ampla defesa e do contraditório (artigo 5º). Isto são avanços da civilização democrática, indiscutíveis sobretudo nos casos de defesa em processos que podem levar a uma punição, à perda ou restrição de direitos. Tais princípios constituem o que se chama de garantias fundamentais no Estado de Direito.

O ordenamento jurídico, ao qual o poder judiciário deve servir (rule of law), não acolhe, portanto, o sentido supostamente prático da Súmula 5. Desconheço quais sejam, mas se de fato houve processos, nos quais podem ter sido violadas garantias constitucionais de defesa, não deve o poder judiciário se eximir de os examinar um a um, descobrir em quais deles irregularidades efetivamente ocorreu, fazendo adequar as decisões aos princípios e regras constitucionais, reconhecer sua invalidade ou ineficácia, porque prevalece a Constituição em relação a qualquer outra regra ou decisão administrativa.

A súmula, dizendo interpretar, em verdade contraria frontalmente a Constituição: não cabe à súmula restringir a eficácia de uma garantia constitucional, gerando insegurança. A Constituição de 1988 ampliou as garantias do devido processo legal, antes restritas apenas (e muito mal, em um regime ditatorial) ao processo penal (artigo 153, parágrafo 15 da Emenda Constitucional 1/1969). Ao tornar objeto de discussão e restrição uma garantia, o STF retrocede. Não cabe ao Supremo modular a eficácia da Constituição, para dar solução supostamente prática a sérias questões democráticas. Foi-se o tempo do chamado poder moderador (artigo 98 da Constituição Imperial), que, dizendo harmonizar, colocava-se acima da nação, dos demais poderes, do controle e da responsabilidade. O precedente é lamentável.

Ora, a democracia, que está amadurecendo em nosso país, não deveria estar amarrada aos critérios do STF para aprovar súmulas e ao conteúdo das súmulas que edita, sobretudo se incondicionadas, fora dos limites da autorização constitucional. Teria sido esse o modo que o nosso mais importante Tribunal encontrou para abrir as comemorações dos vinte anos da Constituição Cidadã? É bom lembrar aos mais jovens que a Constituição de 1988 pôs fim a mais um de tantos períodos ditatoriais em nosso País, exatamente enunciando com gravidade, segurança e raro comprometimento a superioridade dos diretos e garantias fundamentais, contra uma infindável história de violação aos mais básicos princípios de convivência.

Tenho certeza de que prevalecerá o bom senso, numa reação saudável da sociedade, proporcionando os órgãos referidos na Lei 11.417 o cancelamento da infeliz súmula, por sua notável negação aos avanços da prática democrática e fugida aos prudentes critérios da Ciência do Direito.

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