Supremacia dos interesses

Premiar antiguidade na promoção por mérito não é privilégio

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10 de janeiro de 2008, 12h54

Já se disse em múltiplos foros que a carreira judicial é uma autêntica “moeda de troca” entre grupos que se polarizam nos Tribunais do país, e até fora deles, em decorrência de velhos expedientes corporativistas e também políticos que datam dos tempos imperiais e até bem antes disso.

Em fins do Século XVII, D. João VI enfrentou enormes dificuldades para arregimentar 10 (dez) bacharéis coimbrãos a fim de que, juntos, instalassem, na Bahia, o primeiro tribunal da Relação do Reino Unido do Brasil. Somente a peso de ouro, literalmente, além das indefectíveis comendas reais que decorriam do então regime prebendário, é que vieram ao além-mar e, sendo aqui, estabeleceram a Relação. Suas vidas pessoais, no entanto, não foram muito edificantes. Com a honrosa exceção do Desembargador João da Rocha Pitta, o qual veio a falecer modestamente, os demais estiveram envolvidos em espetaculosos cenários dos quais ainda hoje conhecemos, guardadas as devidas proporções de modo, tempo e lugar. É o que consta em: Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial, de Dauril Alden.

Embora pareça injusto enquadrar o Poder Judiciário brasileiro hodierno, enquanto Instituição, nesse modelo antiquado, é precisamente nesse tipo de contexto que os incômodos particularistas vão sendo traduzidos em conduta funcional que não encontram, nada obstante e por isso mesmo, justificação jurídica adequada. O argumento, no entanto, serve como explicação sociológica para muitos desacertos e imperfeições que se vêm observando ao longo de sua história, haja vista os influxos sombrios que jamais deveriam preencher, por perversão, temor ou alguma outra forma de conveniência de momento, as lacunas da convicção judicial. Realmente, não é raro que as leis e os princípios sejam afetados por interpretações cavilosas cujo propósito é evitar tais incômodos e não realizar efetivamente os modelos normativos que eles preconizam. Afinal, nem sempre a inteligência se põe a serviço da razão que o Direito Positivo intenta estruturar e comunicar através de seus preceitos.

Com efeito, a tirania, a chantagem, o “tapinha nas costas”, a difamação, as concessões, as promessas e as alianças, as dádivas, as vaidades exacerbadas, enfim, tantos outros expedientes que agasalham a vilania podem, de algum modo mais ou menos eficiente e a depender da capacidade de resistência do operador e da qualificação política da sociedade, orientar negativamente determinada tomada de decisão jurídica, degradando, pois, a arte de julgar. Foi o que acentuei, após exaustiva pesquisa antropológica, em: O problema da razoabilidade e a questão judicial.

Em sociedades de economia periférica como a nossa, essa equação se torna cada vez mais ostensiva e pouco dissimulada. Enquanto a Constituição Federal institui um modelo, vive-se como se ele não existisse, porque a pusilanimidade parece ocupar um lugar de destaque nessas estruturas sociais que insistem em procurar elaborar, em vão, os mais malabarísticos planos de conciliação entre ordens inconciliáveis.

Foi para vencer o excesso discricionário que beira o arbítrio e transforma Tribunais em agências políticas (às vezes partidária) bem como justificar melhor a expectativa nas carreiras da Magistratura entre nós, que a Carta estabeleceu a regra do art. 93, inc. II, al. ”b”, segundo a qual não serão elegíveis às promoções pelo critério de merecimento os juízes que não figurarem na primeira quinta parte da respectiva lista de antiguidade.

Ora bem, esse paradigma evoca uma secular percepção institucional que descreve a antiguidade como posto em carreiras verticalizadas e hierarquizadas como é o caso da magistratura e também da carreira militar, dentre outras.

Nada obstante, os Tribunais Regionais Federais têm tido uma postura no mínimo paradoxal em relação a essa disciplina, porque supõem que estão libertos dessa adstringência constitucional por acreditarem, suas composições, em maioria, que o princípio em comentário estaria excluído da carreira da magistratura federal comum, haja vista o que preceitua o artigo 107, inciso II, da própria Constituição.

Ocorre que esse entendimento subverte inteiramente o sentido teleológico e sistemático da norma constitucional porque, estando o artigo 107 topografado na seção que trata, especificamente, dos órgãos da Justiça Federal comum no cenário do Poder Judiciário brasileiro, não exclui, evidentemente, a incidência da regra do artigo 93 em todos os seus incisos e alíneas, porque se tratam de princípios aplicáveis ao Poder Judiciário como um todo e não a partes dele. Como acentua textualmente o artigo 93: “Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios…”

E o que é principiológico resulta auto-aplicável, haja vista o recepcionamento da Loman, de 1977, em tudo o quanto não divirja da própria Constituição Federal.

Todos os que exercemos a missão de judicar, admitindo ou não, nos sentimos civicamente incomodados com essa “tendência” involutiva de parte de alguns grupos que ainda insistem em sufragar, às vezes sem esconder as marcas da resistência subjetiva que a Carta também proíbe (artigo 37), nomes de personagens judiciais em vias de elevação funcional que, nada obstante, não agradam ou são, em última análise, realmente independentes.

Convém observar que uma lei sociológica declara que a independência radicalizada no espírito do julgador desserve, naturalmente, à causa corporativa e pode representar risco ao establishment; porque o operador jurídico, quando revestido de tal arcabouço moral, atua inter-grupalmente e o seu móvel é a ferramenta universal de trabalho, a norma legitimamente interpretada, com que produz suas decisões inteiramente à revelia dos planos de momento que evidenciam, quase sempre, propósitos conspiratórios da Ordem, para mais ou para menos.

Decidir, portanto, em bases diversas da regra constante do artigo 93, inciso II, alínea b, da Constituição Federal, é conspirar objetivamente contra a ordem jurídica e desdizer os fundamentos com que são instituídos os tribunais em sua liberdade de decisão, mesmo administrativa.

É claro que um jovem magistrado, mesmo privado da mais sólida e longeva experiência, pode ter uma excelente performance judicial. Diversos têm demonstrado, na prática, essa relação positiva. Por isso mesmo a Constituição permite, excepcionalmente, que os mais modernos possam figurar nessas promoções, desde que não haja quem tenha se habilitado com os requisitos reclamados constitucionalmente (parte final, alínea b, inciso II, artigo 93).

O maior problema está em que se a exceção virar regra, então, não vai sobrar estímulo na carreira da magistratura e o mérito, sim, resultará inteiramente desmoralizado. Na seqüência, esse problema passa a traduzir uma crise institucional de proporção incalculável. Outrossim, é natural, mas não justificável, que todos aqueles, sem os requisitos exigidos pela Constituição para concorrerem legitimamente nas carreiras da magistratura pelo critério de merecimento, estejam animados a fazer “campanha” para os que podem ser comparados em tempo de serviço com eles mesmos. A psicologia explica esse quadro como sendo a própria socialização do inconsciente. O indivíduo procura sempre os iguais para poder com eles se relacionar bem, livre dos refreios e das temibilidades que decorrem das diferenças. Abre-se, então, um espaço fecundo a outros tipos de proselitismo nos tribunais e isto é, como visto, degenerativo.

Se não há restrições de ordem objetiva e/ou ética à atuação dos magistrados mais antigos, não é correto que se prefiram aos mais jovens nas carreiras da magistratura e sem exceção de quadros institucionais.

O mais triste de todo esse enredo é o que resulta da observância de que homens e mulheres de grande estatura intelectual se animem, freqüentemente, a realimentar esse processo que prestigia, na verdade, um quadro de desprestígio da própria magistratura nacional.

Sobre isto, parece sintomático que o CNJ haja instituído a Resolução 6/2005, em cujo artigo 2º está reproduzido o princípio constitucional em debate, mas não tenha sido capaz, até aqui, de lhe dar efetividade em relação à carreira da Magistratura Federal comum. A última vez em que provocado a se pronunciar sobre o assunto, declinou de seu papel constitucional (art. 104-B, § 4º), sob o argumento de que a mesma matéria estava sendo debatida no STF ( Clique para ler).

Que forças seriam essas que, dos bastidores da Justiça, acabam cristalizando condições à perpetuação de velhos estratagemas de dominação e arbítrio, enquanto sufoquem o florescimento do Direito reconhecido pelo próprio Estado? Não é muito o que se pede: apenas atender, em toda sua extensão, às rotinas do devido processo legal por forma a divisar-se em favor de quem milita o direito discutido e sobre se o Supremo ou o CNJ, em sedes respectivas (jurisdicional e administrativa), confirmam ou reformulam, nos limites de suas atribuições funcionais, o entendimento estabelecido pela Constituição Federal (artigo 93, inciso II, alínea b) e pela Resolução 6/2005-CNJ (artigo 2º).

Enquanto isso, o STF, há meses chamado a se pronunciar em diversas oportunidades (MS 26.661; MS 26.662; Rcl 5.298; AR 2.027), ainda não teve a chance de realizar um desejável controle jurisdicional colegiado do caso, conforme a expectativa de tantos anônimos cujo silêncio fala por si mesmo, diante da prepotência de uma Justiça hermética, corporativa e patrimonialista. Aliás, contra esse perfil de Justiça sequer as Associações de Classe parecem produzir algo realmente eficaz, arriscado, no sentido de sua remodelagem substancialmente transformadora. Afinal, também ali se cultiva a carreira da magistratura e os tribunais ainda detém a prerrogativa constitucional para formar as composições que darão ensejo às listas de merecimento, as quais serão levadas, em segunda etapa, à consideração do Poder Executivo, em caso de promoção aos seus próprios quadros.

Por tudo, é curial deduzir que premiar a quinta parte mais antiga dentre os juízes habilitados às promoções pelo critério de merecimento não traduz privilégio algum, mas um paradigma que visa garantir o melhor funcionamento da máquina judiciária no Brasil e depurá-la de quantos procedimentos ameacem, no cotidiano da vida forense, a incolumidade da regra constante do art. 37, da Constituição Federal.

É, pois, de auto-respeito institucional que se cogita. O compromisso para com a história da administração da Justiça da qual são atores os próprios Juízes, importa admitir que não adianta olhar para as mazelas alheias, até por dever de ofício, quando não somos capazes de eliminar outras tantas que nos dizem de perto.

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