Justiça que legisla

Entrevista: Armando Castellar Pinheiro, economista

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27 de outubro de 2007, 23h00

Armando Castellar Pinheiro - por SpaccaSpacca" data-GUID="armando_castellar_pinheiro.png">Três quartos das leis brasileiras submetidas ao crivo do Supremo Tribunal Federal em 2006 foram consideradas inconstitucionais. O número estrondoso — que faz parte do levantamento do Anuário da Justiça 2007 — comprova o que é comentado pelos quatro cantos do país: a qualidade das leis produzidas no Brasil é sofrível.

Para o economista Armando Castellar Pinheiro, a má qualidade da produção legislativa e da regulamentação do Executivo são as principais responsáveis pela insegurança jurídica no país. O Legislativo faz leis ambíguas, o Executivo muda as regras quando bem entende e o Judiciário fica com a tarefa de quase escrever a lei.

Um dos poucos pesquisadores que se debruçou seriamente sobre o impacto da Justiça sobre a Economia, Castellar observa que assim são criadas as políticas do país: caso a caso. O Judiciário vai decidindo cada processo que chega às suas mãos e a soma disso gera o que teria de ser um planejamento. “O Judiciário tem ocupado o campo de regulação por falta de trabalho dos outros dois Poderes.”

No final da década de 1990, o economista mergulhou em uma pesquisa para saber de que maneira o Judiciário influenciava na Economia. Descobriu que, se a Justiça fosse célere e previsível, o país poderia crescer 0,8% a mais por ano.

Mas não há segurança jurídica ou previsibilidade no Brasil. E, sem isso, não há investidor que não pense duas vezes antes de se arriscar. Há, isso sim, empresários que usam da morosidade judicial e da baixa taxa de juros cobrada pelo Judiciário para fazer da Justiça ferramenta do planejamento tributário. Sabem que vão perder a causa e terão de pagar a dívida, mas durante os longos anos de tramitação do processo, investem o dinheiro e obtém lucros maiores do que os juros que serão cobrados depois pela Justiça.

Em entrevista à Consultor Jurídico, Castellar apontou os problemas da Justiça sob a ótica da Economia e apresentou possíveis soluções. Veja a entrevista.

ConJur — Qual o impacto do Judiciário sobre a economia?

Armando Castellar Pinheiro — Comecei a estudar esse impacto em 1997, quando não existia nenhum estudo sobre isso. Depois de fazer pesquisa com centenas de empresas, a conclusão é de que a taxa de crescimento do PIB seria 0,8% maior se o Judiciário fosse eficiente, o que significa: previsível, imparcial e célere. Pode parecer um número pequeno, mas não é se considerarmos um período longo. Lógico que o Judiciário não é o grande limitador que impede o Brasil de se transformar em uma China em termos de crescimento, mas a Justiça poderia dar uma contribuição importante para o crescimento mais rápido do país.

ConJur — Mas como o senhor chegou a esse número?

Castellar — Com base em questionários feitos com centenas de empresas que tinham, pelo menos, 50 empregados. Foram feitas perguntas diversas para entender como era o relacionamento das empresas com o Judiciário. A idéia era descobrir como as empresas reagiriam se o Judiciário melhorasse: como mudaria a decisão de contratar mão-de-obra, de produzir, de negociar com o setor público, de investir em outros estados, de terceirizar as atividades.

ConJur — Qual foi o principal problema do Judiciário apontado pelos empresários?

Castellar — A falta de celeridade. No entanto, em algumas áreas do Direito, como na trabalhista, cerca de um quarto das empresas considera positiva a lentidão da Justiça.

ConJur — A percepção é a de que a maior parte dos empresários prefere ter uma decisão rápida, ainda que não seja favorável?

Castellar — Minha avaliação é a de que depende muito do lado em que se está. Na área tributária, por exemplo, muitos empresários usam o Judiciário como instrumento de planejamento tributário. Na área trabalhista, a lentidão da Justiça é usada como poder de barganha para forçar o trabalhador a fazer um acordo. Na área comercial, quando o Cade barra uma fusão, interessa para as empresas que a Justiça seja lenta. Enquanto o Judiciário não decide, a fusão se efetiva. Depois, fica impossível reverter aquilo.

ConJur — Quando, então, a lentidão prejudica os empresários?

Castellar — A morosidade da Justiça é um problema sério nos casos de concessões públicas. Lembro-me de um caso que aconteceu há vários anos. Na concessão da ponte Rio-Niterói, a empresa que perdeu recorreu à Justiça para tentar forçar algum tipo de acordo com a empresa que ganhou. Nesse caso, por exemplo, interessa uma solução rápida.

ConJur — A arbitragem é uma solução boa para os casos que precisam de decisão rápida?


Castellar — A arbitragem não é fácil para as empresas. Há três grandes vantagens: velocidade, sigilo e especialização do árbitro. Mas é muito cara. Ela só é procurada nos grandes processos. Não dá para resolver o dia a dia com arbitragem. Para as empresas, também pesa o fato de que não há recurso de decisão arbitral. Enfim, a arbitragem é uma solução muito boa para casos muito grandes, que envolvem muito dinheiro, assunto muito técnico e necessidade de sigilo. Não é alternativa para o dia a dia.

ConJur — Qual é o caminho para que o Judiciário deixe de ser empecilho para o crescimento do país?

Castellar — O mais importante é a previsibilidade. A maior parte dos conflitos na sociedade não é resolvida pela Justiça. A sociedade sabe quais são as regras. Por exemplo, em uma batida de carro, todos sabem que quem bateu atrás é quem tem de pagar. Não precisa da Justiça para dizer isso. Quanto mais previsível for a Justiça, menor será a necessidade de ela ser acionada.

ConJur — A Justiça no Brasil é previsível?

Castellar — Não. É extremamente imprevisível. O desfecho de um caso depende do juiz que irá julgá-lo. Já peguei depoimento de advogados que contam como eles ficam levando e retirando causas da Justiça até cair na mão de determinado juiz, onde eles sabem que vão ganhar. Há, às vezes, diversas decisões diferentes sobre um tema que supostamente está pacificado.

ConJur — O senhor disse que há empresas que se beneficiam com a morosidade do Judiciário. Ou seja, elas próprias são uma barreira para tornar a Justiça célere. Como resolver isso?

Castellar — Uma das minhas sugestões é cobrar uma taxa de juros de mora parecida com a Selic. Aí, o Judiciário deixaria de ser uma boa aplicação financeira. Hoje, recorrer ao Judiciário é um bom negócio porque o rendimento no mercado financeiro é muito mais alto do que os juros que incidem sobre a dívida discutida na Justiça. Chamo isso de arbitragem financeira. A empresa tem uma dívida, sabe que vai ter de pagar, mas recorre à Justiça. Aplica o dinheiro e, quando tem de pagar, terá ganhado um montante maior do que o valor da dívida com os juros de mora.

ConJur — Há outra maneira de acabar com essa arbitragem financeira?

Armando Castellar — Há uma movimentação infraconstitucional para isso. Há a multa para quem age com má-fé na Justiça, por exemplo. Singapura fez algo que eu considero radical demais e não defendo. A Suprema Corte de lá decidiu que o primeiro dia do processo na Justiça era de graça. A partir do segundo, a parte começa a pagar. A partir daí, todo mundo passou a ter interesse em fazer o processo ter uma solução rápida. A atitude é radical, mas o espírito vale. Outra mudança que ajudaria a desestimular a arbitragem financeira é as decisões do Supremo Tribunal Federal valerem para todo mundo. Como muitas delas não valem, entram na Justiça não com a esperança de mudar o entendimento do STF, mas para protelar o pagamento.

ConJur — Judiciário e economia têm tempos diferentes. Um é mais lento até por questão de segurança, a outra, dinâmica. Como conciliar isso?

Castellar — Eu me insurjo muito contra esse tempo da Justiça. Não há nenhuma evidência de que as decisões mais lentas são as que têm mais qualidade. As decisões demoram porque os processos ficam na gaveta. Havia processo no Tribunal de Justiça de São Paulo que demorava cinco anos para ser distribuído. Isso não tem a ver com segurança jurídica. O tempo gasto é tempo morto, na gaveta. Não é que o juiz gasta dias analisando o processo até chegar à melhor decisão. E esse tempo não é de graça. A parte que tem razão paga por isso.

ConJur — Ou seja, a lentidão custa caro?

Castellar — Há uma má compreensão do que significa a lentidão. É errada a idéia de que reclamar da lentidão é puro capricho da economia, que tem pressa enquanto o Direito se preocupa com a segurança jurídica. Não é nada disso. Defende-se a lentidão e a quantidade de recursos protelatórios com o argumento de que se está privilegiando um amplo e irrestrito direito de defesa. Não é verdade. Isso impede a defesa daquele cidadão que teve seu direito prejudicado.

ConJur — O Judiciário tem ficado cada vez mais importante para a economia?

Castellar — O Judiciário é mais importante hoje do que há 20 anos. Ele se tornou importante a partir do processo de redemocratização do país. Antes, tudo era decidido nos gabinetes do Executivo, e não na Justiça. O processo de privatização foi importante por isso. Como dar crédito para uma empresa pública se não há garantia de que ela vai pagar? Daí a necessidade de privatizar para poder ter garantia. Hoje, os juízes precisam compreender o quão importantes são para a economia.


ConJur — E os juízes têm consciência dessa importância?

Castellar — Eu acho que não percebem corretamente. Nas escolas de Direito é passado um conhecimento imperfeito do quão importante o Judiciário é para a economia. A maior prova disso é o pouco caso com a lentidão e essa idéia de que a segurança jurídica não tem preço. Ela tem preço sim e é um preço caro.

ConJur — A maior parcela da responsabilidade de o Brasil não crescer como poderia pode ser atribuída a qual dos três poderes?

Castellar — Há duas questões que impedem o crescimento: a bagunça fiscal e a insegurança jurídica. A segurança jurídica não é só responsabilidade do Judiciário. Envolve o Executivo, que muda as regras com uma facilidade muito grande e sacrifica a segurança por motivos políticos. Como fazer um investimento para ter retorno em dez anos se não dá para saber como estarão os impostos até lá? O Legislativo também é responsável pelo vácuo regulatório grande que existe no Brasil. Tudo isso faz com que o Judiciário substitua tanto Legislativo como o Executivo. Ou seja, o Judiciário tem ocupado o campo da regulação por falta de trabalho dos outros dois poderes. As decisões no Judiciário são tomadas caso a caso, não obedecem a uma política pública. Aí, cresce a insegurança jurídica. A política pública fica muito fragmentada porque se torna a soma de decisões judiciais independentes no lugar de um planejamento consciente.

ConJur — É possível calcular quanto o país perde com a paralisação de obras de infra-estrutura por decisões judiciais?

Castellar — Não tenho esses números, mas certamente eles são grandes. As obras de infra-estrutura têm repercussões ambientais importantes e não há leis claras tratando desses impactos. O Congresso Nacional hoje é muito fragmentado. Por isso, acabam sendo aprovadas leis ambíguas que agradam a todos. Com a produção legislativa de péssima qualidade, o juiz tem de decidir o conteúdo da lei e não apenas se a lei está sendo respeitada ou não. Em uma sociedade organizada, esse não deveria ser o papel do juiz, já que ele não está preparado para isso porque não tem a visão do todo.

ConJur — A sociedade deveria cobrar mais qualidade na elaboração das leis, então.

Castellar — A nossa sociedade não gosta de direitos de propriedade bem protegidos. Gosta dessa maneira mais fluída em que há margem para respeitar e margem para desrespeitar. Não existe um clamor social pela proteção dos direitos de propriedade, por uma lei mais rigorosa. A sociedade não percebeu ainda que tudo isso tem um custo e afeta o desempenho da economia. Esse é o trabalho difícil: fazer a sociedade entender o papel da segurança jurídica nos investimentos.

ConJur — Para o empresário, a morosidade da Justiça é agravada quando ele está lidando com o setor público. Aí, não basta ganhar no Judiciário, ele tem de esperar o poder público pagar o precatório. Isso influencia nos negócios, não?

Castellar — Eu não fiz nenhum levantamento sobre isso, mas acredito que sim. As PPPs não decolaram em parte porque não há uma garantia de poder executar o acordo caso o governo não cumpra a sua parte.

ConJur — Uma decisão do Cade questionada na Justiça leva anos para ser colocada em prática. Quando chega o momento de valer, ela já perdeu sua eficácia. Por exemplo, o Cade proíbe uma fusão. No entanto, as empresas recorrem à Justiça e, enquanto isso, executam a fusão. Depois, não dá mais para voltar atrás.

Castellar — Nestes casos, acho que o ônus da prova deveria ser revertido. Ou seja, se há uma decisão colegiada, seja do Cade ou de uma agência reguladora, ela deveria valer até o trânsito em julgado de um eventual processo no Judiciário. Se o Cade barra uma fusão, ela deveria ficar impedida de acontecer até uma decisão final da Justiça.

ConJur — Mas aí a questão do tempo prejudicaria as empresas porque uma fusão barrada hoje pode não ser mais viável daqui a cinco anos.

Castellar — Mas aí a empresa teria interesse em fazer o processo andar rápido. Ela vai ajudar a Justiça a ser rápida, e não desejar a demora.

ConJur — Se a maior parte das decisões do Cade acabam na Justiça, para que existir o Cade?

Castellar — O Cade foi criado devido à necessidade de resolver questões que exigem um conhecimento específico muito grande. As decisões do Cade podem ser questionadas na Justiça, mas precisam ser colocadas em prática enquanto a Justiça não decide. Senão, o Cade acaba virando só uma instância zero e tudo fica ainda mais lento. O Cade é um tribunal administrativo que tem todas as razões para estar isento. Por isso, o Judiciário tem de confiar nas suas decisões.

ConJur — A ampliação da atuação do Cade é uma maneira de diminuir o número de processos na Justiça?

Castellar — Não acredito que seja esse o caminho. A razão de existir do Cade é ser um tribunal especializado. Por isso, não acho que deveria se abrir para outros temas também. Acho que os Juizados Especiais têm um potencial grande para aliviar o Judiciário. Há cerca de um ano, vi um levantamento do Supremo que diz que 60% das causas dos Juizados são previdenciárias. Ou seja, são processos muito iguais. Ou seja, se houvesse uma decisão que valesse para todo mundo, a carga de trabalho poderia ser reduzida em 60%. Isso também torna a Justiça previsível. As pessoas sabem como a causa vai ser decidida e deixam de recorrer ao Judiciário.

ConJur — O senhor está trabalhando em outra pesquisa?

Castellar — Não. Mas ainda quero fazer uma pesquisa sobre o papel do Judiciário na regulação. A influência disso em áreas como saúde e ambiental.

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