Guerra dos poderes

Especialistas defendem papel do STF no equilíbrio de poderes

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30 de novembro de 2005, 15h52

Os congressistas brasileiros parecem imaginar que a imunidade parlamentar os coloca acima da lei e os exime de cumprir a Constituição. Este sentimento é a base da onda de maledicências da classe política contra o Supremo Tribunal Federal, acusado de interferir no Poder Legislativo. Tudo porque repetidas decisões do STF têm obrigado os fazedores de Lei a refazer procedimentos de CPIs e do Conselho de Ética para se ater aos termos da Lei e ao que determina a Constituição.

Houve muita grita antes do julgamento desta quarta-feira (30/11) no Supremo, que deu liminar para mandar suprimir os trechos do depoimento da testemunha de acusação Kátia Rabello no processo por quebra de decoro parlamentar contra o deputado José Dirceu. A última queixa, em tom de falsa indignação, tem como autor o deputado Ricardo Izar (PTB-SP), que também é presidente do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar na Câmara dos Deputados.

Em artigo na Folha de S. Paulo, o presidente do Conselho de Ética dispara: “A tentativa de transladar do âmbito do Conselho de Ética da Câmara dos Deputados para a Corte Constitucional os julgamentos políticos ‘interna corporis’ do colegiado e procedimentos protelatórios, sutilezas astuciosas e outros ardis, quando aceitos pelo Supremo, representa uma intromissão indesejável de um Poder sobre o outro, um desserviço à Justiça e um endosso institucional à impunidade”.

Os políticos em geral, e o presidente do Conselho de Ética em particular, parecem não se conformar com as decisões da Justiça em geral e do STF em particular que, segundo eles, têm interferido no bom funcionamento de CPIs e do próprio Conselho da Câmara.

O principal alvo da ira dos legisladores é a acolhida do STF a supostos recursos protelatórios da defesa do ex-ministro José Dirceu, que sofre processo disciplinar que pode resultar na cassação de seu mandato. Também relutam em aceitar as decisões do Supremo contra quebra de sigilos de empresas e pessoas investigadas em CPIs. Sentem calafrios quando têm de interrogar em intermináveis sessões das Comissões pessoas que “chegam às CPIs munidos de habeas-corpus do Supremo Tribunal Federal – uma licença para mentir” (as aspas são do artigo do deputado Izar).

É um modo de ver o mundo, e não é uma maneira propriamente jurídica. Assim como o julgamento no Conselho de Ética é de natureza política, como bem lembra Ricardo Izar, não se pode esquecer que o Supremo, em seu papel de controlador da constitucionalidade, desempenha também um papel político. Mas no caso específico a Corte tem se comportado de maneira absolutamente técnica e na estrita defesa da ordem constitucional.

Para Pedro Estevam Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC de São Paulo, confundir a atuação do Supremo com interferência de poderes é demonstração de ignorância e de autoritarismo. “Não há interferência nenhuma de poder”, diz o professor. “O Legislativo é um Poder constituído e submetido à Constituição e portanto ao controle de constitucionalidade que é exercido pelo Supremo Tribunal Federal”.

Processo legal

Como lembra o senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT), insuspeitamente de oposição ao governo federal a cujos interesses serviriam as decisões do STF, em artigo no Blog do Noblat: “No caso de José Dirceu, a determinação do STF para que o processo seja modificado não caracteriza interferência indevida em assuntos internos da Câmara, como alegam alguns. Trata-se, isso sim, de assegurar um julgamento justo, dentro das normas da democracia e do direito”.

No caso de José Dirceu, o STF acolheu três pedidos de Mandado de Segurança da defesa do deputado e mandou sanar falhas processuais cometidas pelos nobres deputados em suas funções judicantes. Numa oportunidade, o Supremo ordenou que não fossem consideradas provas estranhas ao processo, já que produzidas para a CPI dos Bingos. No outro, ordenou que seja respeitado o direito de a defesa dar a última palavra no processo. Por isso mandou retirar do processo o depoimento de uma testemunha de acusação ouvida sem respeitar o rito processual.

“O STF está certo. Embora seja um órgão interno do Poder Legislativo e funcione com regras próprias, o Conselho de Ética tem o dever de seguir as normas do Código de Processo Penal, que manda ouvir primeiro as testemunhas de acusação e depois as de defesa”, escreve Antero Paes de Barros.

Não lhe foi perguntado e em nenhum momento o STF se manifestou sobre o mérito do processo contra Dirceu, sobre se ele é culpado, ou não. Mas quando foi acionado, constatou o desrespeito à lei e exigiu que fosse garantido o justo processo legal. “O Legislativo vem sistematicamente desrespeitando o direito de defesa em suas CPIs”, diz o professor Serrano. “A decisão do STF em relação ao processo do José Dirceu é um grande avanço para a ordem jurídica e para toda a sociedade”.

De novo com a palavra o senador Paes de Barros: “É da boa prática democrática e regra básica do direito que o acusado tem o direito de conhecer as denúncias e acusações que pesam contra ele para então buscar os meios e as testemunhas para se defender. Abrir espaço a novas acusações após o pronunciamento da defesa fere o direito do réu. Assim dispõe o Código de Processo Penal. A Câmara dos Deputados, que afinal aprovou o texto do Código em vigor, não pode desconhecê-lo e nem descumpri-lo”.

Direito de recorrer

O presidente da Ajufe — Associação de Juizes Federais, Jorge Maurique não vê, nem de longe interferência de poderes. O STF agiu porque foi solicitado a agir. “A Constituição garante a todo o cidadão o direito de recorrer ao Judiciário”, diz Maurique. “Se uma das partes entender que num processo administrativo teve seus direitos lesados, lhe é garantido o recurso à Justiça”.

Maurique lembra que quem reclama hoje age de maneira oportunista, já que aplaudiu o STF quando este decidiu a favor de seu interesse. “Ninguém reclamou do STF quando ele decidiu pela instalação da CPI do Bingos”, diz. Lembra também, que mesmo no caso de José Dirceu, o STF já tomou decisões desfavoráveis ao deputado e no caso mais notório houve decisão dividida. “Isso mostra que não há um pensamento único no STF, o que é natural e só engrandece o processo”.

Suas excelências chegam ao paroxismo principalmente em relação ao dispositivo constitucional que garante ao investigado de não se auto-incriminar. Toda vez que o STF atendeu aos pedidos de Habeas Corpus para garantir ao depoente de CPI o direito de se calar diante de perguntas inconvenientes a seus interesses sem correr o risco de ser preso, foi acusado de defender um suposto “direito de mentir” de criminosos. Maurique explica mais uma vez que é a própria Constituição que garante a todo acusado o direito de não fornecer informações que possam ser usadas contra si mesmo.

O professor Serrano observa que a obrigação de investigar é do Estado e o direito de não se incriminar é garantido tanto ao investigado quanto à testemunha. “Neste sentido é um atraso pensar que é necessário um Habeas Corpus para que um depoente não seja preso durante a sessão”. Para o professor, o depoente — investigado ou testemunha — não é obrigado a prestar informações contra si mesmo e, se mentir, só poderá ser punido por falso testemunho ao final do processo. “Prender depoente durante a sessão é circo!”

“Na verdade o que pode se perceber é uma certa dificuldade em entender o funcionamento e o papel de cada um dos poderes da República”, diz Maurique. Para Pedro Estevam Serrano não se pode estabelecer um império do Legislativo. “O que Montesquieu estabeleceu com a tripartição dos poderes foi uma situação de equilíbrio, na qual o Judiciário tem um papel de controle,” ensina.

Ricardo Izar começa seu artigo com uma ironia: “Então vamos combinar: o Poder Legislativo não concederá habeas-corpus nem liminares, não processará ações diretas de inconstitucionalidade (Adin), nem julgará as ações penais comuns de autoridade. O STF (Supremo Tribunal Federal), por sua vez, não assumirá o comando do processo político brasileiro, nem irá tutelar o funcionamento do Poder Legislativo e de seus órgãos internos”.

Faria melhor o deputado se simplesmente concluísse: “Fica combinado que o STF, o Poder Legislativo, bem como todos os cidadãos respeitarão as leis do país, a começar pela Constituição”.

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