Governo de SP invadiu seara alheia na questão de emolumentos
8 de fevereiro de 2005, 8h54
Conforme publicado na Revista eletrônica “Consultor Jurídico” de 2 de fevereiro, o Poder Executivo do Estado de São Paulo tenta descumprir a Constituição e arrancar o repasse de verba dos emolumentos de cartórios devidos ao Poder Judiciário, nos termos da Constituição Federal e Emenda 45.
A resolução nº 196 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo nada mais fez do que ler a Emenda 45 e tomar providências no sentido de fazer valer o princípio introduzido no artigo 98 da Constituição que é a celeridade processual. Esta resolução é que motivou a Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pelo Governador.
Afinal, parodiando Rui Barbosa, a “Justiça atrasada é injustiça qualificada”. Nosso Poder Judiciário Estadual é, sem dúvida, muitíssimo mais célere do que o paquiderme irmão Federal.
Nenhum operador do direito tem coragem de falar que as ações naquela Justiça tramitam mais rapidamente do que na Justiça Estadual.
E tal paradigma deve ser mantido. O “argumento” do chefe do Executivo Estadual de que não há lei que autorize não resiste à analise de que a Constituição Federal ( emenda 45) autoriza. O que a Constituição autoriza não necessita de autorização legal. Ademais o outro “argumento” segundo o qual serviços de educação, saúde e segurança estariam comprometidos, perguntaríamos; dá para piorar? Ou para sermos francos; quando terão início tais serviços? Só estes são importantes e o serviço jurisdicional pode aguardar eternamente?
A reforma Constitucional estabeleceu o efetivo acesso à jurisdição ao estabelecer no artigo 98 parágrafo 2º da Constituição Federal a regra de que “as custas e emolumentos serão destinados ao custeio dos serviços afetos às atividades específicas da Justiça”. O sofisma do Poder Executivo consiste em dizer que cartórios exercem serviços “extrajudiciais” e não “judiciais”.
Perguntaria, o serviço de cartório é de atribuição do Poder Executivo? Obviamente que não. É do Poder Legislativo? Menos razoável, ainda, se afigura a resposta afirmativa. As atividades de cartório são do Poder Judiciário, ainda que exercidas mediante delegação ao particular através de concurso público.
A terminologia “extrajudicial” tem o sentido de “paralela e complementar” às atividades judiciais e não o sentido de “não judicial”. Aliás só realiza “hora-extra” o empregado que trabalha o horário regulamentar. Não existe “hora-extra” de quem não é funcionário. Da mesma forma “extrajudicial” pressupõe o judicial. A obviedade é ululante.
Na tripartição dos poderes Montesquieu preconizou o governo em que três formas de governo estivessem, em conjunto, controlando-se mutuamente num sistema de “freios e contrapesos”.
Pois bem. O poder Executivo ao adentrar ao “serviço auxiliar” do poder Judiciário está invadindo seara que não lhe diz respeito. Não é função típica nem atípica do poder Executivo imiscuir-se em questões referentes a cartórios. A função essencial do recolhimento destes serviços é conferir autonomia financeira ao poder Judiciário e, sobrando verbas, contribuir para o poder Executivo que, em tese, realiza outros serviços públicos.
Aliás, nos termos do artigo 96, I, “b” da Constituição Federal é da competência privativa dos tribunais organizar seus serviços auxiliares. Da mesma forma, o artigo 99 deixa claro como a luz do sol que o poder Judiciário deve ter “autonomia financeira”. Portanto, tenta o poder Executivo a satisfação de sua sanha pecuniária desmedida invadindo competência privativa do poder Judiciário e inviabilizando o efetivo acesso à jurisdição.
Assim como não pode o Poder Judiciário estabelecer secretarias e departamentos do Poder Executivo, da mesma forma, não pode o Executivo invadir a competência privativa, a autonomia do Poder Judiciário tampouco seu dever de dar efetividade à jurisdição.
O Estado — e principalmente o Poder Executivo — tornou-se verdadeiro instrumento de opressão institucionalizada. Os governantes — deliberadamente — confundem “interesse público” com “interesse pecuniário”.
Aliás, confundir valores ( que são de interesse público por excelência) com preços ( o interesse estritamente pecuniário) é prostituir o Estado e transforma-lo em monstro de arrecadação. Valores e preços são coisas distintas e o Estado deve zelar, primeiro pelos valores, depois pelos preços que, aliás, deveriam estar subordinados aos valores.
Nesse diapasão o professor Ives Gandra da Silva Martins em texto publicado no periódico Folha de S. Paulo do dia 27 de janeiro de 2005, página A-3, intitulado Tributos e benesses do poder afirma que “…a verdadeira função do tributo é a manutenção dos detentores do poder e atender às benesses oficiais, aos privilégios que os cidadãos de primeira categoria (governantes) têm em relação aos de segunda categoria ( o povo em geral).”
Não há dúvida de que o sempre brilhante professor Gandra tem razão, a casta política brasileira só busca a manutenção no poder e a defesa do interesse pecuniário como se este fosse o único interesse público e não mera modalidade secundária e instrumental que deveria ser.
Aliás, o atual governador mostra ter insensibilidade paquidérmica ao invadir a seara do Poder Judiciário e tentar garantir o suposto “interesse público” em detrimento do efetivo acesso à jurisdição.
Se há necessidade de que mais do vil metal pecuniário entupa os cofres públicos, por que não propor uma emenda constitucional que reduza o número de deputados, secretarias do executivo e, principalmente de cargos de confiança do legislativo e do Executivo? Posso garantir seu respaldo em relação ao povo que trabalha e paga impostos e nunca teve nenhum amigo da política.
O atual governador já teve a frieza de discordar do decreto estadual de 14 de Dezembro de 1999, assinado pelo saudoso Governador Mario Covas sob número 44.536 que mandou pagar os ex-proprietários da Escola Base. Mesmo contrariando opiniões dos juristas Ives Gandra Martins, Fabio Konder Comparatto e Benedicto Porto Neto, além dos Procuradores Marcio Sotelo Felipe (então procurador-geral do Estado), Flavia Piovesan (doutora pela Universidade Harvard) Marcelo de Aquino, Magali Cervantes Ghiseli, o governador insistiu na hermenêutica fria de confusão entre interesse público e interesse pecuniário. ( vide Folha de S. Paulo de 27 de Janeiro de 2003, pág. C-5)
Não é à toa que marginais do Rio de Janeiro e de outros locais já exercem poder paralelo e em pequenos tribunais de julgamento sumário e execução imediata. O motivo é simples: o Estado tornou-se — tanto quanto estes poderes paralelos — instrumento de manutenção de uma casta e não mecanismo de defesa do interesse público.
Não se sabe, ao certo, se os bandidos dos morros costumam descumprir sua palavra como — corriqueiramente — fazem os políticos em seus palanques e se, por tal diferença, não teriam mais respaldo estes do que aqueles.
Qual retorno político teria este ou outro Governador em dar cidadania ao povo com o acesso à Justiça? Só conseguiria mais celeridade nos jurássicos precatórios e mais prejuízo aos anseios pecuniários do monstro estatal.
Portanto, se serve de consolo a nossos eminentes desembargadores e ao Poder Judiciário paulista, o atual governador já confundiu noutra oportunidade valores e preços, interesse público com interesse pecuniário.
Desta vez foi o acesso à jurisdição que sofreu mais este atentado. Fiquem consolados! Pelo menos a maior injustiça da história de nossa país está no mesmo desconfortável banco que nos foi reservado pela frieza Antártida que pousou no Palácio dos Bandeirantes.
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