Mercado ambiental

Crédito de carbono favorece mais mercado do que ambiente

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24 de dezembro de 2004, 10h35

Os chamados créditos de carbono são um instrumento que dizem mais respeito ao mercado financeiro do que à demandas ecológicas. “Parece que os economistas pensam que o mercado e a especulação financeira têm poder para filtrar as emissões de gás carbônico”.

A opinião é de Joaquim Francisco de Carvalho, ex-coordenador do setor industrial do Ministério do Planejamento, diretor da Nuclen, engenheiro da Cesp, em entrevista ao jornal Correio da Cidadania. Na entrevista, Carvalho, um dos maiores especialistas brasileiros em energia, comenta também as possibilidades do Brasil frente à exploração da energia nuclear.

Leia a entrevista

Alguns analistas financeiros calculam que o mercado mundial dos chamados ‘créditos de carbono’ deverá movimentar algo em torno de US$ 10 bilhões até 2012. Do ponto de vista da efetiva redução do efeito estufa, os créditos de carbono são mesmo eficazes?

Os chamados créditos de carbono consubstanciam mais um mecanismo do mercado financeiro. Na verdade, os créditos de carbono são apenas papéis, transacionados de um lado para o outro, enquanto os grandes poluidores continuam a lançar na atmosfera, diariamente, milhões de toneladas de gás carbônico e outros gases de estufa. Por outras palavras, mediante o chamado ‘Mecanismo de Desenvolvimento Limpo’, a compra de créditos de carbono confere aos países desenvolvidos e densamente industrializados o direito de poluir e continuar poluindo, mas o que é urgente é que a poluição seja drasticamente reduzida. Em termos concretos, o efeito desse mecanismo será apenas sobre emissões incrementais de gás carbônico, não sobre o que já está sendo emitido, que é excessivo e deve ser reduzido drasticamente. Se isso não for feito a curto prazo, a vida no planeta ficará seriamente ameaçada.

Técnicos da Confederação Nacional da Indústria (CNI) prevêem que o Protocolo de Kioto, ao fixar regras claras para o mercado de carbono, favorecerá um aumento do fluxo de investimentos de países industrializados em países em desenvolvimento. O que o senhor acha disso?

Parece que os economistas acreditam que o mercado, os marcos regulatórios e as especulações financeiras têm o condão de ‘filtrar’ as emissões de gases de estufa. Para eles, o mercado resolve tudo, mas a experiência concreta, isto é, os fatos, têm demonstrado que os grandes favorecidos pelo ‘deus mercado’ são os intermediários financeiros, os rentistas e os especuladores de todo tipo.

Os defensores da energia nuclear dizem que as hidrelétricas também liberam CO2 na atmosfera. Isto é verdade?

Em parte sim, pois toda matéria orgânica em decomposição libera, entre outros, o gás metano, que, sendo semi-opaco às radiações infravermelhas, exerce o papel de estufa. Esse fenômeno ocorre com qualquer matéria orgânica, inclusive com os resíduos de culturas agrícolas como arroz, feijão, soja etc., que permanecem no terreno após as colheitas. Não é diferente com a vegetação inundada pelos reservatórios hidrelétricos, cuja decomposição também emite metano. Só que aí as emissões só duram enquanto houver material em decomposição. Depois de algum tempo, com o ecossistema já estabilizado, o reservatório assume as características de uma lagoa natural. E no caso de hidrelétricas a fio d’água, nas quais os reservatórios são muito pequenos em relação à potência instalada, as emissões de gases de efeito estufa são mínimas. Isso é o que acontece, por exemplo, em Itaipu, a maior hidrelétrica do mundo.

As usinas de Angra I e II garantem o domínio da tecnologia nuclear? O sistema elétrico precisa de usinas nucleares? A construção de Angra III viabilizaria o ciclo do combustível nuclear?

Penso que não teríamos muita vantagem insistindo no programa de geração eletronuclear baseado em usinas de grande porte, do tipo das de Angra dos Reis. Para gerar eletricidade, podemos ainda contar durante várias décadas com o potencial hidroelétrico. Isso nos dará tempo para desenvolver, com esforço próprio, sistemas eletronucleares intrinsecamente seguros, de concepção mais avançada que os de Angra. Todo país que dispõe de potencial hidrelétrico significativo, explora-o ao máximo e só então parte para alternativas termoelétricas convencionais ou nucleares. Isso é assim porque a geração hidrelétrica é muito mais barata e incomparavelmente menos poluidora do que todas as outras. Até o presente, o Brasil aproveitou apenas 25% de seu potencial hidrelétrico. Renunciar ao restante, só para satisfazer a lobistas de termoelétricas, seria grande estupidez. Quanto ao ciclo do combustível nuclear, considerando sua importância estratégica, não tem sentido falar em viabilidade econômica, mas sim em compatibilidade entre as escalas de produção das diversas unidades que o compõem. Assim, para que se compatibilize a escala de produção da unidade de enriquecimento com o restante do ciclo, basta que o governo compre parte de sua produção e acumule um estoque estratégico de urânio enriquecido, para usar mais tarde, quando estiverem desenvolvidos as usinas eletronucleares intrinsecamente seguras (ou de terceira geração), que são as que convêm ao Brasil, para atender a sistemas isolados cuja ligação ao sistema nacional interligado seja, aí sim, economicamente inviável ou, então, inconveniente por motivos ambientais. Essa história de que a construção de Angra III viabilizaria o ciclo do combustível nuclear é apenas um ‘argumento de venda’ de firmas de engenharia, empreiteiros e vendedores de equipamentos, que têm interesse imediato na construção da usina, sem pensar no que é mais interessante para o sistema elétrico brasileiro.

As pequenas hidrelétricas não seriam uma solução mais adequada?

As pequenas hidrelétricas são excelentes, mas, precisamente por serem pequenas, resolvem só uma pequena parte do problema. De resto, a construção de pequenas hidrelétricas é perfeitamente compatível com a construção das grandes.

O que há de realista na matéria publicada há poucas semanas pela revista Science, dizendo que o Brasil poderia exportar urânio enriquecido para fabricação de bombas atômicas em países problemáticos, ou ‘politicamente instáveis’?

Nada de realista. Não sei o que levou uma revista conceituada como a Science a publicar tal absurdo.

As centrífugas de Resende escondem algum segredo de valor comercial?

Não há grande segredo. Em resumo, as tecnologias realmente importantes estão nos rotores apoiados em mancais magnéticos, rigorosamente balanceados, desenvolvidos pelo Ipen em colaboração com a Marinha. Também importante foi a escolha dos materiais usados na construção das centrífugas. Foram experimentados diversos materiais, como as fibras de carbono, o Kevlar etc., para que se chegasse ao de resistência e leveza adequadas, para que as centrífugas possam atingir as altíssimas velocidades de rotação necessárias. Seria ingenuidade imaginar que os Estados Unidos, que desenvolveram tecnologia para mandar homens à lua e trazê-los de volta, não possam desenvolver centrífugas como as nossas. Aliás, já desenvolveram e usam-nas em pequena escala. Só que, há muitos anos, investiram bilhões em usinas de enriquecimento por difusão gasosa e agora seria para eles antieconômico sucatear essas usinas e mudar tudo para a ultracentrifugação. Na verdade, o valor comercial está mesmo é no urânio enriquecido. A meu ver é possível que toda essa ‘onda’ que se faz em relação à usina de Resende tenha por objetivo ‘melar’ o nosso projeto de auto-suficiência num setor de indiscutível importância estratégica.

O mercado de urânio enriquecido tem tanto valor que justifique essa reação dos concorrentes?

Só ano passado, o mercado de urânio enriquecido movimentou algo em torno de US$ 20 bilhões! Como se vê, é sempre o mercado que comanda…

O hidrogênio tem sido objeto de um grande interesse por ser uma fonte de energia abundante e limpa. Alguns dizem mesmo que o hidrogênio será a principal fonte de energia, no futuro. Qual sua opinião a esse respeito?

Hidrogênio não é uma fonte de energia, mas sim um vetor energético. Juntamente com a eletricidade, o hidrogênio poderá tornar mais eficientes e menos poluidores os sistemas de transporte coletivo nas grandes cidades e os sistemas de geração distribuída de energia elétrica. Para isso, entretanto, devem ser resolvidos alguns problemas fundamentais relativos à produção de hidrogênio em larga escala. Nisso, o Brasil beneficia-se de uma importantíssima vantagem relativa, que é a possibilidade de produzir hidrogênio por reforma de etanol, isto é, de forma renovável e não poluidora. Os Estados Unidos, o Japão e os países europeus produzem hidrogênio por reforma de carvão ou de gás natural, que são combustíveis fósseis e, portanto, poluidores e não renováveis. Na época do Proálcool, desenvolvemos tecnologia e acumulamos experiência para usar etanol na frota de veículos. Assim, a meu ver, seria estrategicamente mais interessante para o Brasil, voltar transitoriamente ao etanol, com o objetivo de ganhar tempo para desenvolver as tecnologias e infra-estruturas necessárias para o hidrogênio. Como o melhor caminho para se produzir hidrogênio em larga escala parece ser o da reforma do etanol, se voltássemos transitoriamente a este combustível, contornaríamos, de saída, os problemas do transporte e da estocagem de hidrogênio, que são os mais críticos. Bastaria transportar e estocar etanol e, para isso, já temos experiência. Temos agora que investir no desenvolvimento de tecnologias de produção de hidrogênio por reforma de etanol just in time, para alimentar células a combustível em veículos de transporte coletivo urbano e em sistemas de geração elétrica distribuída. Esta seria, em meu entender, a estratégia que convém ao Brasil. O mal é que ninguém por aqui está pensando em planejamento estratégico. Tudo é feito ao sabor das ‘forças do mercado’. E estas forças querem que compremos tecnologias estrangeiras para produzir etanol de gás natural e para fabricar células a combustível para usar em automóveis de passeio!

Entrevista publicada no jornal Correio da Cidadania

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