Cláusula de barreira

Limitar o funcionamento dos partidos viola a democracia

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9 de outubro de 2006, 18h25

O raciocínio da mídia nacional a respeito da cláusula de barreira tem sido uníssono no sentido de que o número de partidos deve ser reduzido. Alguns editoriais, artigos e reportagens sustentam, inclusive, que o número ideal seria o de duas ou três agremiações na medida em que não existem na sociedade brasileira tantas vertentes ideológicas.

Chegou-se ao ponto de tentar constranger o ministro Marco Aurélio, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, a desautorizar o resultado veiculado pelo site do TSE, dando conta de que dez partidos teriam cumprido a cláusula de barreira, contrariando assim o resultado que vinha sendo unanimemente veiculado nos meios de comunicação, como verdade incontestável, onde se dá como certo que apenas sete partidos teriam cumprido as exigências Lei Eleitoral.

No entanto, uma exegese equilibrada, justa e despojada de preconceitos da chamada cláusula de barreira leva à conclusão bem diversa daquela que vem sendo veiculada como verdadeira pelos meios de comunicação.

Primeiro, é preciso dizer que todo aquele que deseja interpretar um dispositivo legal tão importante deve ter cuidado com a pressa e compreender que o sistema jurídico em vigor é um corpo interligado por princípios que emanam da própria carta magna.

A respeito dos partidos políticos, a Constituição Federal, no seu artigo 17, consagra como princípio elementar, básico e fundamental que é livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e os seus incisos e parágrafos estabelecem os requisitos a serem observados pelas agremiações partidárias.

O primeiro requisito é que os partidos políticos devem ter caráter nacional. Ou seja, o sistema em vigor não admite a existência de partidos municipais e estaduais, por exemplo.

A partir daí, a carta magna impõe que os partidos terão funcionamento parlamentar, acesso aos recursos do fundo partidário e acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma da lei (Constituição Federal, artigo 17, inciso IV, e parágrafo 3º).

Ou seja, toda regra infraconstitucional que venha a pretexto de regulamentar o dispositivo constitucional não poderá restringir mais que o próprio texto constitucional já restringe e jamais poderá se afastar do preceito basilar de que a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos é livre.

O bom intérprete sabe que a exegese moderna ensina que as regras restritivas de direito devem ser interpretadas restritivamente, ou seja, não se pode interpretá-las de modo amplo e aberto para ampliar ainda mais a restrição.

Então, o pressuposto primário e que se sobrepõe é que deve prevalecer a liberdade nas agremiações partidárias, para nascer, viver e morrer, sempre sujeitando-se a exigência de que deve ter caráter nacional (inciso I, artigo 17, CF).

O que é uma agremiação partidária de caráter nacional? O texto constitucional não define, não conceitua e nem quantifica o que é caráter nacional do partido político.

Vem o legislador infraconstitucional e, no vácuo deixado pelo constituinte, preceitua o requisito a ser preenchido pela agremiação partidária para ganhar o status de partido de caráter nacional, fazendo-o por meio do artigo 13, da Lei 9.096/95.

O texto desse artigo 13, da Lei 9.096/95, exprime que só tem direito a funcionamento parlamentar nas casas legislativas o partido que, em cada eleição para a Câmara dos Deputados, obtenha o apoio de, no mínimo, 5% dos votos apurados, não computados os brancos e os nulos, distribuídos em, pelo menos, um terço dos estados, com um mínimo de 2% do total de cada um deles.

Ou seja, no conceito do legislador infraconstitucional, é nacional toda aquela agremiação que obtenha em, pelo menos, um terço dos estados, o mínimo de 5% dos votos para a Câmara dos Deputados, sendo que nesse universo de estados deve atingir, no mínimo, 2% do total dos votos em cada um deles, também para a Câmara dos Deputados.

Não pode persistir dúvida de que, para preencher o requisito da chamada cláusula de barreira e ganhar o status de partido nacional, a agremiação deve obter 5% dos votos em nove estados e em cada um deles deve atingir, no mínimo, 2% do total dos votos para a Câmara Federal.

A idéia largamente difundida, especialmente nos meios de comunicação, de que o partido deve obter 5% dos votos para a Câmara dos Deputados em todo o país resulta de uma interpretação brutalmente restritiva e distorcida do artigo 13, da Lei 9.096/95, que não encontra amparo na boa exegese da regra e nem mesmo no seu texto literal.

Também convém lembrar que o artigo 17, da Constituição Federal, não obriga o partido ser ideológico. E não se conhece nenhum regramento legal que também crie tal obrigação. Além disso, o mundo atual tornou essa exigência um anacronismo, na medida em que surgiram agremiações partidárias com propósito de defesa do meio ambiente, minorias, religiosos, independência de territórios e outros objetivos, sem ter necessariamente um compromisso com esta ou aquela ideologia.

Aliás, sobre o tema, na esteira do princípio da liberdade de organização partidária, o STF já disse que a carta de 1988 reconheceu claramente a legitimidade da representação dos diversos segmentos sociais, inclusive os que formam dentre as minorias (ADI 958/RJ. Tribunal Pleno. Relator Ministro Marco Aurélio).

Deve valer o conceito de que o cumprimento da lei é requisito fundamental da democracia, razão pela qual o resultado veiculado no site do TSE de que dez partidos cumpriram os requisitos da cláusula de barreira é legal, justo, absolutamente legítimo, democrático e inatacável.

Inviabilizar o livre funcionamento de partidos políticos, democrática e legitimamente constituídos, aprovados nas urnas segundo os critérios da lei é que configura manobra espúria e que deve merecer o repúdio de todos aqueles que têm a democracia e o Estado de Direito como valores fundamentais.

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