Duncan Kennedy e o pensamento jurídico crítico nos EUA
24 de fevereiro de 2013, 9h38
Duncan Kennedy afirmou que as faculdades de direito são locais de intensa prática política, nada obstante o fato de que se dissimulem intelectualmente despretensiosas, estéreis de ambição teórica ou de visão prática no que toca ao que a vida social deva ser[1]. O aluno de direito buscaria mobilidade social, e é raro que seus pais efetivamente desaprovem que seus filhos frequentem um curso jurídico, não importando a origem social das famílias[2].
O ambiente do curso de direito reproduziria convenções de poder, os professores são majoritariamente brancos, do sexo masculino, pretensamente corretos nas atitudes, com todos os maneirismos de classe média[3]. Para o professor de Harvard, a sala de aula de primeiro ano de uma faculdade de direito é culturalmente reacionária[4].
O curso de direito legitimaria o modelo hierárquico, promovendo a justificação para os modelos normativos que fermentam as relações de poder numa sociedade capitalista[5]. Há livro de vulgarização referente às tormentas que o primeiro ano do curso de direito provoca no aluno norte-americano, de autoria de Scott Turrow[6]. O texto de Kennedy sobre educação jurídica também circulou em forma de uma edição-panfleto, em cor vermelha[7], o que certamente guarda semelhanças com o livro vermelho da revolução cultural chinesa de Mao[8].
Sob pesada influência dos modelos historiográficos de Edward Palmer Thompson, historiador inglês de esquerda que estudara a questão agrária na Inglaterra medieval[9], a par da formação da classe operária inglesa, ativista, pacifista, Duncan Kennedy elaborou texto a propósito da estrutura dos comentários de William Blackstone. Redigidos entre 1756 a 1759, os aludidos comentários de Blackstone analisam as leis da Inglaterra, em mais de duas mil páginas, divididas em quatro volumes, dispostas em aparente lógica binária, com fragmentação em rights e wrongs[10].
Denuncia Kennedy que os comentários de Blackstone plasmavam um instrumento apologético, mistificando dominadores e dominados, convencendo-os da naturalidade, da liberdade, da racionalidade da condição do servo[11]. O método usado por Kennedy ao comentar Blackstone também nos remete ao modo estruturalista de análise, como encontrado nos trabalhos de Claude Lévi-Strauss[12].
Roll over Beethoven é texto-diálogo, altamente subversivo, a começar pelo título, que evoca nostálgico rock and roll gravado por Chuck Berry em 1956. Kennedy dá início à fala acusando Peter Gabel[13] de trair o projeto do movimento crítico do direito norte-americano ao tentar conceituá-lo[14]. Duncan Kennedy propõe um positivismo de combate, sugerindo que advogados progressistas ligados ao movimento crítico deveriam convencer juízes de que deveriam agir e de que lidavam com causas dependentes de decisões concretas[15].
Kennedy propõe atitudes prospectivas e de tal modo descaracteriza e desautoriza o niilismo que supostamente marcava o grupo. Otimista, Kennedy propunha que a luta para propiciar força liberatória no discurso político dominante poderia, em alguns casos, ser energizante[16]. O texto provocou reações ásperas, a ponto de um professor da universidade de Maryland ter reputado o excerto como um monte de lixo (a pile of crap)[17].
No livro A Critique of Adjudication, que é recente (de 1997) Duncan Kennedy reafirma o eixo temático crítico que vem desenvolvendo desde a conferência de Madison. Define o livro como um trabalho de teoria social escrito a partir de um ponto de vista de esquerda e modernista/pós-moderno[18].
Relativista, Kennedy admite que o papel do direito (the rule of law) exerce importante função nos vários modelos de governo e na ordem social de inúmeros países democráticos e capitalistas, embora não protagonizem o mesmo papel nos diferentes sistemas que menciona[19]. Toca em temas afetos ao marxismo clássico, citando o próprio filósofo de Trier, a propósito da alienação, e lembrando que há por parte das pessoas tendência à alienação dos próprios poderes[20].
Identifica as diversas tipologias atinentes à teoria da prestação jurisdicional; lembrando o binômio dedução e atividade legislativa do judiciário em Hart, a ideia robusta de julgamento enquanto atividade legislativa do judiciário em Mangabeira Unger, a concepção de dedução, coerência e percepção política pessoal em Dworkin, entre outras[21]. A própria definição de regras jurídicas (legal rules) suscita conflitos ideológicos, inseridos em sociedade ideologicamente dividida[22].
Kennedy assume a ideologia como uma universalização de interesses de grupo (universalization of group interests)[23]. E é a política que agindo como um cavalo de Tróia traduz a ideologia em regras jurídicas[24].
Um dos pontos mais elaborados do livro consiste nas abertas críticas que Duncan Kennedy fez a Ronald Dworkin, ao analisar o pensamento do juiz Hercules. Trata-se Hercules de figura metafórica engendrada por Dworkin; aparece no ensaio Hard Cases e é descrito como detentor de habilidades sobre-humanas, sabedoria, paciência e perspicácia[25].
O problema consiste em se entender concretamente os mecanismos que informam e que marcam a atividade judicial, no que toca ao trabalho artesanal do julgador, dúvida que persiste intrigando o pensamento jurídico ocidental. A problematização do fato, sem necessariamente apresentar-se soluções, é que consubstancia um ensaio discursivo, que matiza um plano de ação. Nominando o projeto de mpm (modernism/postmodernism) Duncan Kennedy antecipadamente responde aos críticos[26], insistindo que não há concepção niilista adjacente à ideia de se repensar os modelos de adjudicação (adjudication) no significado inglês da expressão, referente a protótipos de decisões judiciais.
Em 1993 Duncan Kennedy publicou ensaio sobre ações afirmativas e as projeções da questão em âmbito de academia jurídica[27]. Ações afirmativas são debatidas nas cortes americanas desde 1974 (caso DeFunnis), ganharam muita discussão em 1978 (caso Bakke)[28] e ainda hoje dividem a opinião pública dos Estados Unidos. Trata-se de reservas de cotas em universidades (por exemplo) para egressos de minorias (especialmente raciais); os prejudicados matizam as ações afirmativas com o nome de discriminações reversas. Kennedy assume que um princípio democrático geral diz-nos que as todas as pessoas devem possuir representação nas instituições que exercem poder e influência em suas vidas. Consequentemente, a diversidade cultural deve ser estimulada, e com isto se potencializa a qualidade e o valor dos estudos de direito[29].
Os estudos e a ação docente de Duncan Kennedy caracterizam seu trabalho como referencial em estudos movimento crítico nos Estados Unidos. Diferente, inovador, ousado, irreverente, Kennedy bem consubstancia atitude conceitual que insiste que direito é política.
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