Diário de classe

Anti-intelectualismo e a fusão da paixão do ódio com a ignorância

Autor

  • André Del Negri

    é pós-doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) doutor em Direito Processual pela PUC Minas mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

2 de novembro de 2019, 8h00

O psicanalista Jacques Lacan mostrou que existem três paixões fundamentais no homem, que são o amor, o ódio e a ignorância.[1] Mas o que dizer da ignorância? Consideremos o seguinte: atrás do nosso desconhecimento há sempre uma organização de afirmações, e se o sujeito não começa a se colocar na posição de saber o que é e o que não é, estaciona-se na posição daquele que ignora. E nesse equilíbrio tênue entre as três paixões fundamentais – que nos falou Lacan –, o amor pode se tornar ódio e o ódio é indissociável da ignorância. E daí? Em que a psicanálise pode contribuir? Ora, em muitos pontos: a começar de uma questão que se exterioriza no divã e se manifesta na polis (ou cidade).

É que cada vez mais tem sido cansativo conversar com pessoas que deixam o argumento de lado para, no lugar, desfilar subjetividades (juízos morais). E é desgastante porque há pessoas que não sabem ouvir; não discutem o assunto, e o diálogo vira o que ela acha que é (ou deve ser) e ponto. Partem logo para as conclusões sem uma criteriologia mínima de objetividade.

Em linhas gerais, cada vez mais esses tipos de disfunções se tornam comum na contemporaneidade, pois em tempos de internet, universo digital de massificação de subjetividades, que influencia o nosso processamento cognitivo, novas formas de produção do discurso e formas de sentido podem ser detectadas.[2]

Vivemos numa sociedade imersa na cultura digital e como sempre disse Lenio Streck, “os grupos de WhatsApp são o ninho preferido para o desenvolvimento de todo e qualquer tipo de ataques a teorias” (aqui). O ponto a ser destacado – ainda seguindo Lenio – é que “tanta gente estudou, pesquisou, ganhou prêmio Nobel… para que qualquer pessoa, em uma rede social, diga: ah, isso não é bem assim”.

É que no campo da pesquisa, as dificuldades são imensas e cientistas só refutam teorias já apresentadas por outros cientistas quando possuem igual formação na área e após revisitarem as bases empíricas e conceituais testadas. O que hoje se vê de forma excessiva é o movimento contrário. Isto é: pessoas sem conhecimento mínimo do que falam, resolvem dizer que os cientistas estão errados. Simples e direto assim!

Pois bem… o assunto do anti-intelectualismo tem merecido as tintas na imprensa brasileira e mundo afora, temática que sempre vêm colada ao tema da pós-verdade, que leva à decadência do debate público porque argumentos e divergências não têm onde se ancorar.

Se quisermos compreender esse painel de questões, precisamos entender que a hostilidade ao intelecto é de cunho variado. Os alvos das investidas sempre são filósofos, sociólogos, psicanalistas, educadores, historiadores… (o dito marxismo cultural), tudo impulsionado pelo universo midiático para controlar massas, com posts que circulam pela internet explorando medos e preconceitos, com grupos adulterando elementos de informação (fake news). Tal como esclarece Lenio Streck, “o anti-intelectualismo está ancorado nas fake news” e assim “o obscurantismo sobrevive nessa era pós-verbo” (aqui), em que dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa é usual. E pronto! Temos uma tempestade perfeita…

E nessa algazarra – que não é de hoje – sucede um bloco de perplexidades, como as repreensões a pesquisas que denunciam o aquecimento global, porque para os anti-intelectuais defender esse tema é produzir conspirações. Ou crenças, tais, de coisas como o terraplanismo ou desconfianças de que os cubanos do programa Mais Médicos não eram médicos, mas “militares e agentes infiltrados”, e até mesmo mentiras sobre a presunção da inocência. Os exemplos vão se multiplicando, e, então, modelam a opinião pública e levam a ideia de pós-verdade às últimas consequências.

E com isso há, sim, em boa parte, posts de “anti-conhecimento” que viralizam todos os dias. Ciência? Ora, não! O que se vê são palpites de “anti-ciência”. São “anti-intelectuais” atacando não a tese, mas sim a pessoa que expressa a tese, apenas para poder dar pontapés, vulgarizar e dizer que estão sempre certos, e não aceitam nada que negue as suas posições. Os que agem assim, satanizam as pessoas que pensam de modo diferente. Note-se, que nesses casos, o senso comum não é substituído por conhecimento objetivo, mas há uma insistência em “achações” ou opiniões da forma “Creio que…”.

Por isso Karl Popper orgulhava-se de não ser um filósofo de crença, mas um pensador interessado por teorias, porque a eliminação de erros corresponde a eliminação de teorias, não de pessoas.[3]

Dito isso, estamos diante de um desafio, a tal ponto, inclusive, de nisso se fundir a paixão do ódio com a paixão da ignorância. O revés, portanto, é o “outro” saber (o outro das nossas relações). É que se o outro sabe o que eu não sei, aí haverá o anúncio da minha falta e essa “falta” (esse furo) é a causa do “meu sofrimento”. E por que há riscos? Há riscos porque o perigo está no lado freudiano da pulsão de morte.

Por sua vez, o tema do anti-intelectualismo quando entra no circuito poder-política se fortalece na medida em que, atracado nas fake news, tem uma rampa de disparo de mensagens em massa mediante robôs calibrados por estrategistas políticos, com o propósito de agitar uma onda de movimento dirigido com o objetivo de persuadir pessoas com informações facciosas nas redes sociais.

Nesse sentido, a partir da relação ideologia-governabilidade o risco é assumir a autoria destruidora de qualquer oposição, ambiente favorável para se estudar aquilo que foi alcunhado de “guerra híbrida”, na medida em que enfrentamentos brutais são travados de forma tática em diversos espaços, a partir de concepções de “guerra ideológica” (movimento instituidor do ódio ao opositor político, que joga pessoas contra pessoas), ao lado de “guerra econômica” (desestabilização econômica de países), e, até, mediante “guerra jurídica”, com prisões ilegais de pessoas vítimas da camuflagem, da emboscada do Judiciário, com o propósito de instrumentalizar o Direito como arma política, guindando a ocorrência do que se convencionou chamar de lawfare.

No caso, o anti-intelectualismo é a mesma coisa que pôr milhares de pessoas num navio furado, em alto mar, e assistir o vagaroso naufrágio ao vivo pelas webcams. O assustador é que, apesar disso, muitos tripulantes vão imaginar estar num navio de cruzeiro em temporada de férias. Se a saída rápida desse lugar não acontece, as pessoas são tragadas por suas intersubjetividades pressupostas, algo capaz de aumentar a distância entre o afogado à ponta de uma corda.


[1] LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 1: os escritos técnicos de Freud (1953-1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009, p. 308-309.

[2] CONDE, Gustavo. “Sentidos da aniquilação”. In. Relações Obscenas. RAMOS FILHO, Wilson; NASSIF, Maria Inês; (Orgs.) Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2019, p. 43-50.

[3] POPPER, Karl. Conhecimento objetivo. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999, p. 35.


Referências

CONDE, Gustavo. “Sentidos da aniquilação”. In. Relações Obscenas. RAMOS FILHO, Wilson; NASSIF, Maria Inês; (Orgs.) Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2019, p. 43-50.

LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 1: os escritos técnicos de Freud (1953-1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009.

POPPER, Karl. Conhecimento objetivo. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999.

STRECK, Lenio. “O caso do STF e as fake news: por que temos de ser ortodoxos!”. Revista Eletrônica Consultor Jurídico – Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br. Acesso em 09 jun. 2019.

STRECK, Lenio. “Para você ganhar um milhão, uma pessoa deve morrer. Você aceita?”. Jornal O Sul. Disponível em: http://www.osul.com.br. Acesso em 03 ago. 2019.

Autores

  • é pós-doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), doutor em Direito Processual pela PUC Minas e mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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