Senso incomum

O Direito Eleitoral e a livre apreciação da prova

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12 de março de 2020, 8h00

Spacca
O Brasil – e me refiro, aqui, à comunidade jurídica – é prodigo em se acostumar com autoritarismos. Acostumou-se com a livre apreciação da prova e com o livre convencimento (mas é “motivado”, diz parcela dos processualistas). Veja-se o artigo 156 do CPP, ainda hoje defendido por parte da comunidade jurídica. Estamos tentando alterar esse quadro com o projeto Anastasia-Streck, esculpido em carrara a partir do CPP alemão, no CPP austríaco, na jurisprudência norte-americana e italiana. Afora outros lugares. Mas, confesso, não está sendo fácil. Há adversários de todos os lados.

Um dos monumentos antidemocráticos a desafiar a nossa inteligência é o artigo 23 da LC 64 e trago de novo isso à baila em ano eleitoral. Veja-se:

O Tribunal formará sua convicção pela livre apreciação dos fatos públicos e notórios, dos indícios e presunções e prova produzida, atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral.

Há tempos, sem grandes alardes, o Supremo Tribunal Federal julgou constitucional o referido dispositivo (ADI 1082). Nas – para mim, surpreendentes e equivocadas – palavras do relator, ministro Marco Aurélio (Regras que permitem produção de provas por juiz eleitoral são válidas),

A possibilidade de o juiz formular presunções mediante raciocínios indutivos feitos a partir da prova indiciária, e fatos publicamente conhecidos ou das regras de experiência não afronta o devido processo legal, porquanto as premissas da decisão devem ser estampadas no pronunciamento, o qual está sujeito aos recursos inerentes à legislação processual.

Eis a questão. Quer dizer: exame de prova ilícita e coisas do gênero são despiciendas. Se houver presunções e se os fatos são publicamente conhecidos, o devido processo legal é desnecessário. O que é prova indiciária suficiente? O que são regras de experiência?

Pergunto:

Primeiro, pode, na democracia, o juiz formular presunções mediante raciocínios indutivos feitos a partir da prova indiciária? E por livre apreciação?

Segundo, se a apreciação é livre, as presunções também são as dele, juiz.

Terceiro, presunção, aliás, nem pode resultar de livre apreciação.

Quarto, a redação do dispositivo é um emaranhado de contradições.

Quinto, é um dispositivo autoritário.

Sexto, impressiona que, mesmo com o advento do CPC 2015 essa questão tenha suscitado pouco debate.[1]

Qual é o problema de induções e julgamentos por presunções? Um não. Vários. O principal deles é que, em julgamentos por presunções, o cidadão-candidato não pode provar o contrário. Ele é culpado de plano, só porque só-podia-ser-ele e que “todo-mundo-sabe-que-foi-assim”.

O dispositivo também faz menção ao “interesse público de lisura eleitoral”. Trata-se de um conceito vago, impreciso, capaz de albergar os mais diversos designativos. Quem dirá o que interessa ao público? Vejam a fragilidade normativa de um dispositivo desse tipo.

Se o juiz está autorizado a decidir com base em indícios e presunções, e se é ele mesmo quem decide como e quando deve fazê-lo, estamos simplesmente dependentes não de uma estrutura e, sim, de um olhar individual. Isso é o que se chama “instrumentalismo processual-eleitoral”.

É a antiteoria da decisão jurídica. Sem querer irritar os setores do Direito – que ainda defendem o livre convencimento e coisas do gênero porque continuam a atrelar o conceito à substituição da prova tarifada, como se “livre convencimento” não tivesse relação direta com o paradigma filosófico da filosofia da consciência (subjetivismo) – afirmo que uma decisão assim, sustentada no artigo 23 da LC 64, não é produzida no ambiente democrático do processo, mas no terreno solitário da mente judicial.

Este é o ponto. Sabemos, hoje cada vez mais, que – basta olharmos as redes sociais – que existe uma politização do judiciário e do Ministério Público. Assim, como é possível deixar ao alvedrio do juiz eleitoral ou do tribunal a definição e o preenchimento desses termos ocos e opacos, como os constantes no artigo 23?

O fato de a decisão poder ser submetida “aos recursos inerentes à legislação processual” não é o suficiente para salvá-la. Aliás, sabe-se bem a jurisprudência defensiva que se formou ao longo dos anos.

Deve-se dar ao processo jurisdicional a dimensão de controle do exercício do poder de decidir. Decisão judicial é algo muito importante para ficar ao sabor de livre apreciação e de indícios e presunções.

Assim, é possível dizer que, na ADI 1082, o que o STF fez foi interpretar a Constituição de acordo com a lei eleitoral. Alvissareiro ouvir, ainda que em obiter dictum, no julgamento da chapa Dilma-Temer no TSE, o ministro Gilmar Mendes, quem havia votado favoravelmente à constitucionalidade do artigo 23, dar mostras de que repensaria o assunto. A ver.

Numa palavra final: Quantos candidatos são prejudicados porque contra eles militam presunções ou “fatos públicos”? Mas como isso é possível se a Constituição garante que a única presunção possível é aquela usada a favor do cidadão?

Para ilustrar, peço que leiam a decisão abaixo e me digam se tenho ou não razão sobre a inconstitucionalidade do artigo 23 da LC 64: Ei-la:

"Cumpre ressaltar a dicção do art. 23 da Lei Complementar no 64/1990, que autoriza o julgador a formar sua convicção ‘pela livre apreciação dos fatos’… (e faz a descrição do art. 23).

Em sintonia com este comando legal, saliento que esta julgadora estava diuturnamente presente na Comarca e, acompanhou de perto todo o pleito eleitoral de 2012, presenciando a dificuldade dos investigantes, para comprovar os ilícitos praticados pelos investigados, durante todo o período eleitoral, demonstrado com a propositura de várias ações cautelares. (…)[2]

Pronto: autoexplicativo.

Para fechar: O decidir “livremente” e o Chancellor’s foot (o pé do Chanceler)

Vejam como essa discussão é antiga. Há um aforismo que é atribuído a John Selden (morto em 1654), contado por Van Caenegem.

Jurista erudito, Selden era opositor do absolutismo. Criticando o poder do juízo de equidade da Court of Chancery, que era uma Court of conscience, ele dizia que o uso da consciência era um mau negócio, porque o direito é uma medida pela qual sabemos a que nos atermos.

O juízo de equidade, ao contrário, depende da consciência daquele que é chanceler, e, como esta pode ser mais larga ou mais estreita, o mesmo acontece com a equidade.

E complementava: é como se a medida de cumprimento, que chamamos “um pé”, dependesse do cumprimento do pé do chanceler. Que medida incerta seria: um chanceler tem um pé grande, outro um pé pequeno e um terceiro um pé médio. A situação é a mesma com a consciência do Chanceler.

Pronto!

Uma boa inconstitucionalidade a todos.


[1] Boa exceção – nessa linha de análise – está na bela tese doutorado de Alexandre Nogueira, intitulada A (in)compatibilidade do processo eleitoral com os novos paradigmas da decisão judicial no processo civil brasileiro: Reconstruindo a interpretação teleológica na jurisprudência eleitoralista à luz da integridade da coerência e da integridade” e da dissertação de mestrado da hoje deputada federal Margarete Coelho, A democracia na encruzilhada: reflexões acerca da legitimidade democrática da justiça eleitoral para a cassação de mandatos eletivos, ambos meus alunos. Também interessante texto foi publicado por Fernando Faria (aqui), no qual faz um apanhado doutrinário.

[2] O processo versava sobre irregularidades do candidato e então prefeito de um município da Bahia, que acabou não se elegendo por uma diferença de 96 votos. Autos no 396-31.2012.6.05.0091 e no 394-61.2012.6.05.0091.

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