O dever de mitigar a perda nos contratos de M&A
8 de setembro de 2020, 11h07
O dever de mitigar a perda (duty to mitigate the loss) é um antigo instituto com origem no sistema da common law e aplicação no Direito dos contratos e responsabilidade civil. O momento histórico do surgimento do instituto é motivo de dissenso no mundo jurídico, mas há quem defenda remontar ao século XVII, de um caso julgado pela corte inglesa (Vertue v. Bird, 1677), tendo sido aperfeiçoado seu conceito e aplicação ao longo dos anos nos países que adotam a common law, tais como Inglaterra, Estados Unidos, Canadá, e outros que herdaram o sistema jurídico inglês.
Sua adoção no Direito brasileiro é relativamente recente, fruto da construção doutrinária e jurisprudencial, com fundamento no princípio da função social do contrato, da boa-fé objetiva, do dever de cooperação das partes e repressão ao abuso de direito, que norteiam o direito das obrigações e seus reflexos na responsabilidade civil.
A problemática surge quando se verifica que a lei não traz conceitos objetivos para sua efetiva aplicação pelo Poder Judiciário brasileiro. Ainda que o propósito deste instituto esteja estampado nos princípios mencionados acima, reforçados pela novel Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/19), que traz explícita a liberdade dos contratantes e interpretação dos negócios jurídicos à luz das expectativas das partes após razoável investigação de seu comportamento e sua racionalidade econômica quando da celebração do contrato, fato é que sua aplicação demanda conceitos objetivos acerca da causalidade e de critérios positivos e negativos, os quais não estão positivados na lei. Talvez esse seja o motivo de sua aplicação corrente nos países do sistema da common law, em que os cases (jurisprudência) são efetivos norteadores e vinculam as cortes de julgamento para casos análogos.
Um desafio ainda que vem sendo enfrentado pelo Poder Judiciário e que não conta com entendimento pacificado na doutrina estrangeira e pátria é o próprio conceito do "dever" da parte a ser indenizada. Alguns defendem que não se trataria de uma obrigação ou dever da parte, na medida em que inexistiria direito correlato titularizado pela outra parte. Estar-se-ia diante de uma limitação da obrigação de indenizar, haja vista que a vítima não estaria incorrendo em responsabilidade pela não adoção de medidas mitigadoras, mas perderia o direito de obter ressarcimento da porção não mitigada.
No Brasil, somam-se aos fundamentos legais para aplicação do instituto o princípio da vedação de comportamento contraditório (venire contra factum proprium), da culpa concorrente, e da atenuação dos efetivos do processo executivo contra o devedor (artigo 805 do Código de Processo Civil). De todo modo, a verificação do que seria o "esforço" razoável da parte a ser indenizada em uma hipótese concreta e a correlação de sua ausência com o dano adicional gerado (causalidade) são elementos que ainda carecem de precisão e discussão técnica e econômica, impondo um desafio deveras significativo aos magistrados pela sua natural limitação à aplicação da lei, mais ainda porque a discussão pode adentrar em análise econômica do Direito para aferição do efetivo dano que deveria ser mitigado.
Nos contratos de M&A (compra e venda de empresas — mergers and acquisitions), verifica-se uma tendência dos consultores das partes em inserir cláusulas do dever de mitigar riscos, em especial, aqueles cujo dever de indenizar caiba aos vendedores e são a ele alocados, mas, em função do negócio jurídico, são sentidos pela empresa, e pelo novo comprador, de modo a atenuar, dentro de um esforço razoável e legitimamente esperado, a responsabilidade dos vendedores que já não se encontram mais com poderes de mitigá-los diretamente, porque afastados do negócio/business.
A cláusula inserida em contratos desta natureza parece bastante apropriada e coerente com os mencionados princípios regentes do contrato, compilados no ordenamento jurídico pátrio. Ocorre que, na hipótese concreta de estar-se diante de um prejuízo que, sob a ótica de uma parte, poderia ser mitigado, adviria, para análise do tema pelo Poder Judiciário ou Tribunal Arbitral, perquirir o conceito do instituto (dever x expectativa), bem como sua modulação na perspectiva do que seria esperado, dentro do contexto do que as partes discutiram e riscos que efetivamente assumiram quando da celebração do contrato.
Para uma análise aprofundada sobre o tema, imprescindível seria trazer a análise econômica do Direito e a racionalidade do contrato em termos financeiros e econômicos, mais do que simplesmente jurídicos, e não parece que estamos maduros para tanto, haja vista que o Poder Judiciário atualmente duela com a carga absurda de processos, das mais diversas naturezas, havendo também, não se ignore, um descompasso da lei com a dinâmica das empresas e sua avaliação.
Assim, dadas as diversas facetas da aplicação do instituto no Brasil, e desafios que geram, ainda é tempo de discussão técnica do tema, que ainda não se encontra sedimentado e pacificado para que a inserção da cláusula de duty do mitigate the loss possa efetivamente representar uma garantia às partes de que o risco a elas alocado e por si assumidos são àqueles a que se obrigaram e que lhes confortaram quando da celebração do contrato.
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