Laudatio ao professor Alcides Tomasetti Jr.
25 de janeiro de 2021, 8h10
Senhoras e senhores,
Aposentou-se: não nos deixou, nem nos deixará, a privar-nos de sua inteligência e erudição. É o que desde logo lhe pedimos e dele esperamos.
Honrado e comovido, aceitei o convite que me formulou a preclara chefe do departamento, professora Silmara Juny de Abreu Chinelatto, para homenagear o nosso caro e admirado colega e amigo professor Tomasetti.
Pode homenagear-se alguém com a voz firme da razão ou com o suave murmúrio da emoção. Começo com a razão e terminarei com a emoção.
A formação acadêmica do professor Tomasetti deu-se, toda ela, nesta faculdade. O curso de graduação, entre 1970 e 1974; e a pós-graduação, no nível de doutorado, entre 1975 e 1982, sob a orientação do professor Rubens Limongi França.
Suas atividades docentes começam, nos cursos de graduação, já em 1975 e, nos de pós-graduação, em 1988.
Salvo engano meu, orientou 18 dissertações de mestrado e sete teses de doutorado; e orienta quatro dissertações e duas teses.
Trabalhos de conclusão de curso de graduação – teses de láurea –, orientou 13.
E participou de 20 comissões examinadoras – bancas – de dissertação de mestrado; de 16, de tese de doutorado; de duas, de qualificação de mestrado; e de uma, de qualificação de doutorado.
Em suas atividades profissionais não acadêmicas – todas elas desempenhadas com notável dedicação e vasta e profunda competência –, além da advocacia, que exerce desde 1978, sobressaem a coordenação e a redação de diversos verbetes da reputada Enciclopédia Saraiva de Direito, entre 1976 e 1982, e a diretoria editorial da mais que conhecida e respeitada Editora Revista dos Tribunais.
Do acervo de suas obras intelectuais, merecem especial realce:
a) Execução do contrato preliminar, sua tese de doutorado, de 1982 – trabalho primoroso, que, com o passar do tempo, alcançou merecidamente o patamar das obras clássicas, quer no âmbito do direito material, quer no campo do direito processual.
b) Comentários aos arts. 1º a 13 da Lei de Locação de Imóveis Urbanos. In: OLIVEIRA, Juarez de (Org.). Comentários à Lei de Locação de Imóveis Urbanos: Lei 8.245, de 18 de outubro de 1991 (LGL199130). São Paulo: Saraiva. v. 1. p. 2-172.
c) O objetivo de transparência e o regime jurídico dos deveres e riscos de informação nas declarações negociais para consumo. Revista de Direito do Consumidor v. 4, p. 52-90, 1992.
d) Abuso de poder econômico e abuso de poder contratual. Revista dos Tribunais, v. 715, p. 87-107, 1995.
e) Procedimento do direito de domínio e improcedência da ação reivindicatória. Favela consolidada sobre terreno urbano loteado. Função social da propriedade. Revista dos Tribunais, v. 723, p. 204-223, 1996.
f) Pontes de Miranda, Tratado de direito privado: parte especial, Direito das obrigações: Negócios jurídicos unilaterais. Títulos ao portador. Atualizado por Alcides Tomasetti Jr. e Rafael Domingos Faiardo Vanzella. São Paulo: Ed. RT, 2012. t. 32.
g) Pontes de Miranda, Tratado de direito privado: parte especial, Direito das obrigações: Títulos ao portador (continuação). Títulos nominativos. Títulos endossáveis. Atualizado por Alcides Tomasetti Jr. e Rafael Domingos Faiardo Vanzella. São Paulo: Ed. RT, 2012. t. 33.
Pontes de Miranda e seu prodigioso Tratado de direito de privado. Parece-me não haver meio mais adequado para demonstrar toda a nossa admiração e imenso carinho pelo professor Tomasetti que discerni-lo em Pontes de Miranda, sua firme, constante e a cada passo proclamada fonte de inspiração intelectual desde os bancos escolares da graduação.
Lê-se em Pontes, logo no início de seu Tratado de direito privado, e subjaz nitidamente a todas as precisas e rigorosas lições jurídicas, escritas ou faladas, de Tomasetti:
“2. O sistema jurídico contém regras jurídicas; e essas se formulam com os conceitos jurídicos. Tem-se de estudar o fáctico, isto é, as relações humanas e os fatos, a que elas se referem, para se saber qual é o suporte fáctico, isto é, aquilo sôbre que elas incidem, apontado por elas. Aí é que se exerce a função esclarecedora, discriminativa, crítica, retocadora, da pesquisa jurídica. O conceito de suporte fáctico tem de ser guardado pelos que querem entender as leis e as operações de interpretação e de julgamento. […]
É fácil compreender-se qual a importância que têm a exatidão e a precisão dos conceitos, a boa escolha e a nitidez dêles, bem como o rigor na concepção e formulação das regras jurídicas e no raciocinar-se com elas. [..]
A missão principal do jurista é dominar o assoberbante material legislativo e jurisprudencial, que constitui o ramo do direito, sôbre que disserta, sem deixar de ver e de aprofundar o que provém dos outros ramos e como que perpassa por aquêle, a cada momento, e o traspassa, em vários sentidos. Mal dá êle por começada a tarefa, impõe-se-lhe o estudo de cada uma das instituições jurídicas. Sòmente quando vai longe a sua investigação, horizontal e verticalmente, apanhando o sobredireito e o direito substancial, é que se pode tratar a regra jurídica e o suporte fáctico, sôbre que ela incide, avançando, então, através dos efeitos de tal entrada do suporte fáctico no mundo jurídico. […]
Interpretar leis é lê-las, entender-lhes e criticar-lhes o texto e revelar-lhes o conteúdo. Pode ela chocar-se com outras leis, ou consigo mesma. Tais choques têm de ser reduzidos, eliminados; nenhuma contradição há de conter a lei. O sistema jurídico, que é sistema lógico, há de ser entendido em tôda a sua pureza.
Se, por um lado, há tôda a razão em se repelir o método de interpretação conceptualístico (que se concentrava na consideração dos conceitos, esquecendo-lhe as regras jurídicas em seu todo e, até, o sistema jurídico), método que nunca foi o dos velhos juristas portuguêses nem o dos brasileiros, temos [por outro lado] de nos livrar dos métodos que não atendem a que as regras jurídicas se fazem com os conceitos e êsses têm a sua fixação histórica e hão de ser precisados. Principalmente, tem-se de levar em conta que a regra jurídica, a lei, viveu e vive lá fora, — foi para ser ouvida e lida pelos que hão de observá-la e é para ser lida, hoje, por êles. […]””[1]
Do Tratado, disse, em 15 de maio de 1979, outro ilustre professor desta faculdade, Miguel Reale, no discurso com que se recebeu na Academia Brasileira de Letras o então novo imortal Pontes de Miranda:[2]
“Assim é que o vosso entusiasmo juvenil pela 'Livre Indagação do Direito' não se consolida nas obras posteriores de jurista, nos clássicos comentários às Constituições, ao[s] Código[s] de Processo Civil, ou no monumental Tratado de Direito Privado, cujos 60 tomos já bastariam para demonstrar que, no que se refere à experiência jurídica, não somos um povo subdesenvolvido, verdade que merece ser assinalada, desde a produção genial de Teixeira de Freitas”.
Prossegue Miguel Reale, em advertência com um quê de credo, cujo corrente menosprezo, assim nas escolas de direito como no foro, é de lastimar-se:
“Nada tenho a criticar-vos, por terdes reconhecido que, por mais que o jurista possa e deva se valer das pesquisas sociológicas, econômicas, psicológicas etc., segundo dados objetivos colhidos nas relações factuais, jamais poderá ele transpor, a seu talante, os horizontes fixados pelo sistema das normas jurídicas, horizontes móveis, é certo, em função de renovadas exigências sociais, mas que excluem o arbítrio do juiz, tão condenável quanto qualquer outro arbítrio”.
Logo no começo do mesmo discurso, Miguel Reale, ao falar do que sobretudo o impressionara em Bolonha – a “douta”[3]–, cita um trecho da Commedia, mais conhecida a partir do século XVI como Divina Commedia[4].
Nele, Dante compara a impressão que lhe causa o gigante Anteu, ao sobre ele debruçar-se, com a que se tem da inclinada torre da Garisenda, que parece cair quando, olhada de baixo, se lhe sobrepaira uma nuvem.
Debruça-se Anteu para que Virgílio, já por ele seguro em suas mãos, abrace Dante e, assim, possa o colosso delicadamente colocá-los, ambos, no vasto e gelado Cócito – o fundo do poço enorme, o nono e último círculo do inferno, onde se encontram os traidores (de parente, da pátria, de hóspede e de benfeitor ou mestre) e em cujo centro Lúcifer trifronte mastiga sem cessar Bruto e Cássio – traidores de César – e Judas Iscariotes – traidor de Cristo.
Virgílio. Virgílio, o poeta romano que, na Divina Commedia, guia Dante na caminhada pelo inferno e pelo purgatório, mas não o acompanha no paraíso, em que não pode entrar porque, não sendo batizado e cristão, lhe são estranhas as virtudes teologais, embora para Dante seja o poeta pagão de mais elevadas e perfeitas virtudes intelectuais e morais.
Dante e Virgílio. Virgílio e Dante: guia e seguidor. Pontes de Miranda e Tomasetti.
Creio que não há modo mais elevado e afetuoso de transmitir ao Prof. Alcides Tomasetti Jr. nossa saudação e nosso apreço do que fazer dele e de Pontes de Miranda os atores do diálogo que Dante e Virgílio travam quando, no começo da Divina Commedia, se encontram[5]:
"Quando vidi costui nel gran diserto,
“Miserere di me” gridai a lui,
qual che tu sii, od ombra od omo certo!
Rispuosemi: Non omo, omo già fui,
e li parenti miei furon lombardi,
mantovani per patria ambedui.
Nacqui sub Iulio, ancor che fosse tardi,
e vissi a Roma sotto ’l buono Augusto
al tempo de li dei falsi e bugiardi.
Poeta fui, e cantai di quel giusto
figliuol d’Anchise che venne da Troia,
poi che il superbo Iliòn fu combusto.
Ma tu perchè ritorni a tanta noia?
perchè non sali il dilettoso monte
ch’è principio e cagion di tutta gioia?
Or se’ tu quel Virgilio e quella fonte
che spandi di parlar sì largo fiume?
rispuos’io lui con vergognosa fronte.
O degli altri poeti onore e lume,
vagliami il lungo studio e ’l grande amore
che m’ha fatto cercar lo tuo volume.
Tu se’ lo mio maestro e ’l mio autore:
tu se’ solo colui da cu’ io tolsi
lo bello stilo che m’ ha fatto onore.
[…]"
Que possamos continuar a ouvi-lo sempre a sussurrar para o seu querido Pontes, caríssimo Tomasetti:
"Tu se’ lo mio maestro e ’l mio autore:
tu se’ solo colui da cu’ io tolsi
lo bello stilo che m’ ha fatto onore."
Muito obrigado.
Arcadas do Largo de São Francisco, em 6 de março de 2018.
(*) Originalmente publicada em: DEL NERO, João Alberto Schützer. Laudatio ao professor Alcides Tomasetti Jr. Revista de Direito Civil Contemporâneo, São Paulo, v. 17, n. 5, p. 329-333, 2018. Este texto é republicado hoje em homenagem ao falecimento do professor Alcides Tomasetti Jr. ocorrido no último dia 23 de janeiro de 2021. A Rede de Direito Civil Contemporâneo registra o profundo pesar pelo passamento desse grande professor das Arcadas.
(**) Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).
[1] Pontes de Miranda, Tratado de direito privado: parte geral. Introdução. Pessoas físicas e jurídicas. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954. t. 1. p. X-XII (Prefácio, § 2º).
[2] Disponível no sítio eletrônico da Academia Brasileira de Letras, em: [www.academia.org.br/academicos/pontes-de-miranda/discurso-de-recepcao]. Acesso em: 16.02.2018.
[3] Bologna: la dotta, la grassa e la rossa.
[4] Inferno XXXI, 136-138.
[5] Inferno I, 64-87 (Le opere di Dante. Testo critico della Società Dantesca Italiana. Firenze: R. Bemporad & Figlio – Editori, MCMXXI, p. 484-485).
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