Opinião

A ação de improbidade administrativa e os prejuízos ao processo penal

Autores

  • Alexandre Ayub Dargél

    é advogado criminalista professor de Processo Penal mestre em Ciências Criminais (PUCRS) e doutor em Filosofia (Unisinos).

  • Christian Corsetti

    é advogado criminalista no Brasil e em Portugal mestrando em Direito e Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) onde também concluiu a pós-graduação em Law Enforcement Compliance e Responsabilidade Empresarial.

13 de novembro de 2021, 6h02

As condutas delitivas praticadas por funcionários públicos, além de acarretarem a instauração de uma ação penal em razão da violação de bens jurídicos penalmente tutelados, dão ensejo, igualmente, à propositura de uma ação civil, que tem por escopo a tutela da probidade na organização do Estado e no exercício das funções públicas, no âmbito do sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa.

Com a entrada em vigor da Lei 14.230/21, que produziu profundas alterações na Lei 8.429/92, destaca-se, como a de maior importância, o afastamento da responsabilização dos agentes públicos por condutas praticadas de forma culposa. Senso assim, após a entrada em vigor da Lei 14.230/21, apenas as condutas dolosas poderão ser consideradas como atos de improbidade administrativa.

Outra inovação de significativa importância legislativa trazida pela referida lei diz respeito à exclusiva titularidade do Ministério Público para a propositura da ação civil de improbidade administrativa, ou seja, o mesmo órgão exerce a atribuição exclusiva para a propositura da ação penal e da ação civil de improbidade administrativa, inclusive, e aí a maior importância para o tema em debate, quando os fatos relacionados sejam os mesmos.

De outro lado, a nosso sentir, a inovação de especial relevância, inserida em nosso sistema normativo com o advento da novel legislação está, em verdade, relacionada com a questão processual, pois a nova lei publicada em 25 de outubro do corrente ano deixou implícita a correção de uma grave violação processual. Entretanto, em virtude da ausência de técnica legislativa, a matéria carece de uma construção doutrinária e jurisprudencial à luz da Constituição Federal, bem como de uma interpretação sistemática do nosso ordenamento jurídico, notadamente em face do que está disposto no §4º do artigo 21 da revitalizada Lei de Improbidade Administrativa [1].

Como podemos observar empiricamente no decorrer dos últimos anos, a tramitação concomitante da ação de improbidade administrativa e da ação penal, promovidas exclusivamente pelo Parquet, desvirtua a sistemática e as garantias constitucionais do processo penal, gerando, com isso, diversos prejuízos ao exercício da ampla defesa e do contraditório na ação penal.

Muito embora o fato relacionado em ambas as ações judiciais seja o mesmo, de um lado tramita a ação de improbidade administrativa, através de um procedimento de natureza eminentemente civil, conforme já assentando por STF [2] e STJ [3], e agora reafirmado pela Lei 14.230/21, seguindo, portanto, o procedimento comum previsto no Código de Processo Civil, com o fim específico de apurar a responsabilidade civil e administrativa do agente ímprobo.

De outro, a ação penal pública, na forma dos procedimentos estabelecidos no Código de Processo Penal, notadamente em razão da necessidade de apuração da responsabilidade penal do infrator.

Entretanto, o nosso objetivo não é debater a legitimidade de tramitação e  a independência das instâncias para a propositura das ações administrativa, civil e penal. Longe disso! Até mesmo porque a Constituição Federal, no seu artigo 37, §4º [4], determina que os atos de improbidade administrava importarão nas sanções de natureza política, como é o caso da suspensão dos direitos políticos; administrativa, com a perda da função pública; e civil, através da indisponibilidade de bens e ressarcimento ao erário; sem prejuízo da ação penal cabível.

O nosso escopo, em verdade, é demonstrar os prejuízos causados aos agentes públicos e eventuais partícipes e coautores ao exercício da defesa no âmbito do processo penal, justamente quando a ação de improbidade administrativa antecipar os procedimentos da ação penal, ou, até mesmo, quando o seu trâmite processual  seja concomitante com a ação penal, pois, assim ocorrendo, estar-se-á, em verdade, antecipando a própria produção probatória da ação penal. Isso porque a tramitação da ação de improbidade administrativa ocorre, muitas vezes, de uma forma muito mais célere do que o andamento da ação penal. E isso em razão de diversos aspectos.

Não obstante a independência das instâncias administrativa, civil e penal, o que não se contesta, por óbvio, não há como se negar a interferência manifestamente prejudicial de uma ação judicial no procedimento da outra, notadamente em virtude da adoção de procedimentos totalmente distintos, que acabam, inevitavelmente, violando as garantias constitucionais da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal, além, é claro, das próprias regras procedimentais estabelecidas pelo Código de Processo Penal.

Nesse passo, de acordo com o que observamos no cotidiano da prática forense, essa tramitação concomitante da ação de improbidade administrativa e da ação penal desvirtua as regras procedimentais para o efetivo exercício da ampla defesa e do contraditório dentro do processo penal, uma vez que a ação de improbidade administrativa, conforme já mencionado tem, na maioria dos casos, o início dos seus procedimentos judiciais deflagrados muito antes do oferecimento da denúncia na ação penal, cujas atribuições são conferidas com exclusividade ao Ministério Público [5].

Da forma como ocorre na atualidade, a ação de improbidade administrativa acarreta indevida antecipação do ônus probatório para o acusado no processo penal, tendo em vista a adoção do procedimento comum estabelecido no Código de Processo Civil, no qual o agente público, já na contestação, deve, sob pena de revelia, apresentar todos os seus argumentos de defesa, juntamente com a documentação comprobatória das suas alegações, especialmente para possibilitar o enfrentamento, logo no início da demanda, do mérito que está sendo posto em julgamento.

Com efeito, essa antecipação probatória acima anunciada proporciona ao órgão acusador, de antemão, o conhecimento de todas as teses defensivas que serão adotadas pelo agente público no exercício de sua defesa na ação penal, antes mesmo, em algumas situações, do próprio oferecimento da denúncia pelo Ministério Público, conforme já ressaltado.

Esse procedimento antecipatório da ação de improbidade administrativa, causa grave violação ao princípio do contraditório e da ampla defesa, uma vez que a elaboração da exordial acusatória ocorre posteriormente ao conhecimento de todas as teses defensivas. Até mesmo porque a inicial promovida pelo Parquet na ação de improbidade administrativa abrange todos os elementos de fato e de direito que serão manejados na exordial acusatória da ação penal, justamente em razão de os fatos apurados em uma e outra ação serem exatamente os mesmos. O que muda, apenas, são os procedimentos e as penas aplicadas ao final de cada uma das ações.

Nesse contexto, diferentemente do que ocorre na ação de improbidade administrativa, no processo penal a manifestação inicial da defesa, na ocasião do oferecimento da resposta à acusação, conforme o disposto no artigo 396-A do CPP [6], não há o enfrentamento do mérito propriamente dito, restringindo-se a defesa à demonstração das questões acerca da rejeição da peça acusatória, bem como das arguições preliminares e eventuais exceções, dos requerimentos de provas a serem produzidas no decorrer da instrução processual, além, é claro, da juntada do rol de testemunhas. Ou seja, o enfretamento do mérito na ação penal somente ocorrerá após a produção da prova em contraditório.

Para além disso, e o mais grave de tudo, é que no procedimento do rito ordinário, conforme definido no Código de Processo Civil, o réu não pode lançar mão do seu direito de permanecer em silêncio [7], em conformidade com o que está garantido na Carta da República, ao prestar o seu depoimento pessoal na ação de improbidade administrativa, conforme previsão do artigo 385, §1º [8], do CPC. Pois de acordo com a lição de Neves [9], ao realizar um juízo de comparação do artigo 343, §2º, do CPC/73, o novo CPC mantém a confissão tácita gerada pela postura de ausência ou silêncio do depoente à ideia de pena, como se um meio de prova pudesse ter natureza de sanção processual.

Essa é uma questão extremamente importante, uma vez que a violação aos preceitos estabelecidos no Código de Processo Penal é flagrante, especialmente quanto ao disposto no artigo 400 [10], após a alteração promovida pela entrada em vigor da Lei 11.719/08, que migrou o interrogatório do acusado para o último ato da audiência de instrução e julgamento, justamente para conferir maior garantia processual ao acusado.

Aliás, o entendimento assentado pelo Supremo Tribunal Federal [11], no tocante ao interrogatório do acusado, é no sentido de que a regra do atual artigo 400 do Código de Processo Penal deve ser aplicada inclusive para os processos penais militares, os processos penais eleitorais, bem como a todos os procedimentos penais regidos pela legislação penal extravagante, como é o caso, por exemplo, da Lei de Drogas (Lei 11.343/06).

É lamentável que a Suprema Corte, ao analisar o alcance do artigo 400 do CPP, tenha deixado de fora esse importantíssimo aspecto, que é justamente a antecipação do depoimento pessoal do réu na ação de improbidade administrativa, acerca de fatos que lhe são, ou serão, imputados na persecução penal.

O Superior Tribunal de Justiça [12], por sua vez, seguindo a orientação sedimentada pelo Pretório Excelso, passou a adotar o mesmo entendimento no sentido de que o interrogatório do acusado nas ações penais sempre deverá ser o último ato a ser realizado na audiência de instrução e julgamento, justamente para garantir aos acusados o legítimo exercício do contraditório e da ampla defesa, em especial atenção ao devido processo legal.

Nesse sentido é o posicionamento firmado pela 6ª turma do STJ, no voto-condutor do ministro Rogerio Schietti Cruz, ao apreciar o REsp 1.808.389/AM, que a inversão do procedimento previsto no artigo 400 do CPP acarreta a nulidade do procedimento, sendo, inclusive, desnecessária a comprovação do prejuízo, pois o prejuízo à defesa é evidente e corolário da própria inobservância da máxima efetividade das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa.

Eis aqui o ponto de maior fragilidade da manutenção da tramitação concomitante das ações de improbidade administrativa e penal, quando da apuração de fatos ilícitos praticados dolosamente por agentes públicos, pois o depoimento do réu no início da audiência de instrução e julgamento, conforme previsto para as ações de improbidade administrativa, inequivocamente faz gerar irreparável prejuízo à defesa na paralela ação penal promovida pelo Ministério Público, pois o Parquet já estará municiado de todos os elementos de prova e de todas as teses defensivas que foram apresentadas na ação de improbidade administrativa.

Com isso, as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, as regras procedimentais da ação penal e a própria jurisprudência dos tribunais superiores, acabam se tornado letra morta, e o acusado, consequentemente, totalmente vulnerável aos interesses do órgão acusador.

Entretanto, apesar de o legislador não ter explicitado tal correção na edição da Lei 14.230/21, ao dispor que a absolvição criminal em ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, impede o trâmite da ação de improbidade administrativa, deixou implícita a interpretação que deve ser dada quando as ações  civil e penal  versarem acerca do mesmo fato, qual seja: a ação civil deverá aguardar todos os desdobramentos da ação penal, para daí então ter o seu andamento processual iniciado, sob pena de tornar inócua a norma prevista do atual §4º do artigo 21 da Lei 8.429/92.

Muito embora a Lei 8.429/92 não preveja expressamente a suspensão da ação civil no caso do oferecimento de denúncia criminal, há previsão de interrupção do prazo prescricional, que agora é de oito anos [13], quando do ajuizamento da ação de improbidade administrativa, conforme o disposto no artigo 23, §4º, I, da Lei 8.429/92.

Destarte, para se assegurar a correta forma dos procedimentos judiciais, tanto nas ações de improbidade administrativa, como nas ações penais destinadas à apuração dos fatos ilícitos praticados por agentes públicos, a correta interpretação que deve ser feita das normas relacionadas é a de que a ação civil somente deveria ser promovida após o julgamento da ação criminal por órgão colegiado, quando as ações discutirem os mesmos fatos.

 


[1] A absolvição criminal em ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, impede o trâmite da ação da qual trata esta Lei, havendo comunicação com todos os fundamentos de absolvição previstos no artigo 386 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal).

[2] STF, Plenário, Pet 3240 AgR/DF, Rel. Min. Teori Zavascki, Red. p/ o ac. Min. Roberto Barroso, j. 10.05.2018 (Informativo de Jurisprudência do STF 901).

[3] STJ, 5.ª Turma, HC 50.545/AL, Rel. Min. Gilson Dipp, j. 15.08.2006, DJ 04.09.2006, p. 298.

[4] "Artigo 37, §4º, da CF/88 – Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível".

[5] "Lei 8.429/92, artigo 17 – A ação para a aplicação das sanções de que trata esta Lei será proposta pelo Ministério Público e seguirá o procedimento comum previsto na Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), salvo o disposto nesta Lei".

[6] "Artigo 396-A – Na resposta, o acusado poderá arguir preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas, qualificando-as e requerendo sua intimação, quando necessário".

[7] "CF/88, artigo 5º, LXIII  o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado".

[8] Se a parte, pessoalmente intimada para prestar depoimento pessoal e advertida da pena de confesso, não comparecer ou, comparecendo, se recusar a depor, o juiz aplicar-lhe-á a pena.

[9] NEVES, Daniel Amorim Assumpção, Manual de direito processual civil  Volume Único, 13. ed., Salvador: Ed. JusPodivm, 2021, p. 757.

[10] Na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado.

[11] STF. Plenário. HC 127900/AM, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 3/3/2016 (Info 816).

[12] STJ. 6ª Turma. REsp 1.808.389/AM, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 20/10/2020 (Info 683).

[13] "Artigo 23 – A ação para a aplicação das sanções previstas nesta Lei prescreve em oito anos, contados a partir da ocorrência do fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência".

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