Opinião

Uma eleição constituinte no Chile

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7 de janeiro de 2022, 20h45

Em outubro de 2019, publiquei algumas impressões sobre as grandes perturbações sociais que então começavam a tomar conta do Chile [1]. O texto baseava-se no meu testemunho presencial dos eventos e apontava que a insurreição popular, mais do que um mero protesto convencional, tinha um significado constituinte, mesmo que isso ainda não fizesse parte do vocabulário rebelde. A avaliação acabou se revelando acertada, e, em meados do ano passado, uma assembleia constituinte foi instalada no país.

Todo processo constituinte, devido à sua soberania, é imprevisível e pode ser atravessado por eventos capazes de alterar o seu curso — e mesmo de inviabilizar o próprio processo. A constituinte possivelmente mais célebre da história, que resultou na Constituição norte-americana de 1787, é a expressão máxima dessa condição. Convocados para reformar o conjunto de normas que governava precariamente os Estados Unidos da América, os convencionais reunidos na Filadélfia acabaram conferindo poderes constituintes a si mesmos e estabelecendo uma nova Constituição.

Entre eventos aptos a definir rumos de um processo constituinte, merecem destaque as eleições presidenciais, que acabam assumindo, por vezes, elas próprias, caráter constituinte, como bem sugere Bruce Ackerman [2]. Foi assim, recorrendo mais uma vez ao exemplo estadunidense, nas eleições de 1936. A vitória de Roosevelt representou uma chancela popular ao seu programa, rompendo, com radicalidade constituinte, com a tradição até então dominante de não intervenção do Estado no domínio econômico.

As eleições ocorridas no Chile em dezembro têm essa mesma dimensão. Uma vitória de José Antonio Kast, candidato conservador, significaria, na prática, o fim do processo constituinte. Estaríamos diante de uma manifestação de vontade  legítima  da soberania popular de interromper o ciclo de mudanças iniciado em 2019 e de manter o país vinculado ao programa conservador da Constituição de 1981. Já a vitória de Gabriel Boric, jovem de esquerda de 35 anos, ratifica o propósito constituinte e inflexiona o país em direção a uma agenda de mais direitos, de abandono do neoliberalismo e de ruptura definitiva com qualquer resquício do passado autoritário do governo de Augusto Pinochet.

Ocorre que, lembrando Cass Sunstein, direitos têm custos. Gabriel Boric deve lealdade ao sentimento constituinte que o elegeu, mas precisa também estar atento à saúde macroeconômica do país. Trata-se de missão que exige saber lidar com interesses econômicos e geopolíticos poderosos, capazes de, uma vez contrariados, levar países à bancarrota e ao isolamento. O equilíbrio é complexo. E Boric não tem direito de errar. Seu erro não seria uma mera frustração ao eleitorado. Seria a tragédia de um projeto constitucional e de uma certa utopia democrática que a experiência chilena passou a significar.

 


[1] KLANOVICZ, Jorge Mauricio Klanovicz. Um momento constituinte no Chile?. Zero Hora, Artigos, p. 29 – 29, 26 out. 2019.

[2] ACKERMAN, Bruce. We the people: foundations. Cambridge: The Belknap Press, 1991. v. 1. p. 71.

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