Opinião

A cláusula de desempenho individual e a convocação de suplentes

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6 de janeiro de 2022, 13h38

Para solucionar uma distorção do sistema proporcional até então adotado, que possibilitava que candidatos de baixa representatividade assumissem vagas no parlamento nas sobras daqueles chamados de "puxadores de voto", desde 2015, o artigo 108 do Código Eleitoral, passou a dispor que: "Estarão eleitos, entre os candidatos registrados por um partido que tenham obtido votos em número igual ou superior a 10% (dez por cento) do quociente eleitoral, tantos quantos o respectivo quociente partidário indicar, na ordem da votação nominal que cada um tenha recebido".

Ocorre que o artigo 112, parágrafo único, do mesmo código (cuja redação também se deu por meio da Lei 13.165/15) é expresso ao dizer que: "Na definição dos suplentes da representação partidária, não há exigência de votação nominal mínima prevista pelo artigo 108".

Conforme pontuado por Frederico Franco Alvim, os suplentes são "mandatários em espera, titulares de uma expectativa de direito consistente na assunção dos cargos para os quais concorreram, na hipótese de vacância determinada pela saída de seus titulares" [1].

Logo, quando se fala na convocação pontual de suplentes não há dúvidas quanto à inaplicabilidade da cláusula de desempenho individual prevista no artigo 108 do Código Eleitoral. Como exemplo, podemos citar o caso quando o titular da cadeira legislativa se licencia temporariamente para ocupar um cargo junto ao Poder Executivo. Todavia, apesar de versar sobre status jurídico diverso, a hipótese de investidura definitiva no mandato parlamentar gerou certa dúvida até então.

Contudo, a incongruência entre os artigos 108 e 112, parágrafo único, do CE é apenas aparente, valendo aqui fazer um breve apanhado cronológico dos pronunciamos do STF e do TSE sobre o tema.

Em março de 2020, o Supremo Tribunal Federal, de forma unânime, assentou a constitucionalidade do artigo 108 do Código Eleitoral ao julgar improcedente a ADI 5.290. A corte, nos termos do voto do relator, ministro Luiz Fux, entendeu que: "A cláusula de desempenho individual de 10% do quociente eleitoral para a eleição não viola o princípio democrático ou o sistema proporcional, consistindo, antes, em valorização da representatividade e do voto nominal, em consonância com o sistema de listas abertas e com o comportamento cultural do eleitor brasileiro".

Já o TSE se deparou pela primeira vez com a questão no julgamento do Agravo Regimental em Recurso Especial nº 0600462-25/PR, ocorrido no dia 12/5/20, relativo à eleição de 2016, cujo caso era o seguinte: o primeiro suplente do partido cujo vereador veio a se desligar no curso da legislatura fora das hipóteses legais ingressou em juízo para requerer a titularidade do mandato mesmo não ostentando o requisito individual expresso no artigo 108 do CE. Por unanimidade, nos termos do voto do relator, ministro Edson Fachin, manteve-se o acórdão regional que havia decretado a perda do mandato eletivo por infidelidade partidária ao levar-se em consideração que: "Não se pode exigir do suplente a votação nominal mínima, da qual a legislação expressamente o dispensou para figurar como tal". Com isso, a corte superior eleitoral entendeu que, por se tratar de infidelidade partidária, "o interesse jurídico que confere ao suplente legitimidade para propor a ação — com fulcro no art. 22-A da Lei n° 9.096/95 – é aferível, independentemente do alcance da cláusula de desempenho, visto que a legislação eleitoral, taxativamente, afastou esse requisito para definição da suplência".

Um pouco após, em outubro de 2020, o Tribunal Superior Eleitoral deparou-se novamente com o tema no julgamento do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 0600564-42/GO, também relativo ao pleito de 2016, quando as coligações proporcionais ainda eram permitidas. Todavia, a moldura fática desse caso era diferente da anterior por não envolver infidelidade partidária, isto é: o então titular do mandato parlamentar havia sido cassado após a eleição em virtude do reconhecimento da prática de ilícito eleitoral, motivo pelo qual o juízo zonal determinou nova totalização dos votos, o que ocorre em virtude dos artigos 222 e 237 do Código Eleitoral, segundo os quais é anulável a votação quando viciada de falsidade, fraude, coação, captação de sufrágio, ou obtida mediante a interferência do poder econômico ou de autoridade.

Contudo, o primeiro suplente da coligação do vereador cassado também não havia superado a cláusula de barreira individual contida no artigo 108 do CE. Ainda assim, impetrou mandado de segurança alegando que tal medida violaria seu direito líquido e certo à nomeação automática para o cargo, o que foi denegado pela corte regional, já que o mesmo não havia logrado a votação mínima necessária à assunção definitiva da cadeira legislativa. Via de consequência, com a nova totalização dos votos, isso resultou que o suplente de outro partido — que havia superado a barreira legal — assumisse o mandato.

Finalmente, mais de um ano após o julgamento, decidido por maioria após dois pedidos de vista, em dezembro do ano passado, o TSE disponibilizou o referido acórdão, em que os votos da corrente divergente, inaugurada pelo ministro Luís Felipe Salomão, jogaram luzes sobre o debate. Ao sustentar a manutenção do acórdão regional, a corrente vencedora do TSE fundamentou que: "Entender de modo diverso ensejaria afronta ao princípio da isonomia ao se criarem duas situações distintas envolvendo hipóteses idênticas: o candidato que na data da eleição não obteve votação nominal suficiente não pode ser considerado como eleito, ao passo que aquele inicialmente diplomado apenas como suplente poderia, a posteriori, com a vacância do cargo do titular, assumir o mandato mesmo sem atender ao artigo 108, caput, do Código Eleitoral".

Fatalmente em decorrência dos debates travados nesse julgamento, o artigo 14 da Resolução TSE 23.677 (publicada no DJE de 23/12/21) que dispõe sobre os sistemas eleitorais, a destinação dos votos na totalização, a proclamação dos resultados, e a diplomação dos eleitos no pleito de 2022 define expressamente que: "Serão considerados(as) suplentes dos partidos políticos e das federações de partidos que obtiveram vaga os (as) mais votados(as) sob a mesma legenda ou federação de partidos e que não foram efetivamente eleitos(as)".

Diga-se ainda, o princípio da representatividade foi reforçado com última alteração promovida pela Lei nº 14.211/21, que, ao tratar da regra para a disputas das "sobras", no artigo 109, §2º, do código eleitoral passou a dispor que: "Poderão concorrer à distribuição dos lugares todos os partidos que participaram do pleito, desde que tenham obtido pelo menos 80% (oitenta por cento) do quociente eleitoral, e os candidatos que tenham obtido votos em número igual ou superior a 20% (vinte por cento) desse quociente".

Sendo assim, em prestígio ao sufrágio, não faz o menor sentido que aqueles que não ultrapassaram a cláusula de barreira individual possam se tornar titulares em virtude da vacância definitiva do mandato eletivo.

Logo, quando o artigo 112, parágrafo único, do Código Eleitoral estabelece que na definição dos suplentes da representação partidária não há exigência de votação nominal mínima — a exceção dos casos de ingresso temporário no cargo decorrente de licença do titular, ou em demanda que verse sobre decretação de perda do mandato eletivo por ato de infidelidade partidária com fulcro no artigo 22-A da Lei n° 9.096/95 —, isso não autoriza concluir que eventual e futura assunção definitiva no cargo proporcional dispensa a exigência da barreira legal do artigo 108 do CE.


[1] Direito Eleitoral, Curitiba: Juruá, 2016. p. 108/109.

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