Opinião

O julgamento da ADI 1.625 pelo STF e a dispensa injustificada

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20 de janeiro de 2023, 7h16

A pauta trabalhista do Supremo Tribunal Federal (STF) para 2023 promete o enfrentamento de casos polêmicos, porém vem ganhando especial destaque a retomada do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) 1.625, processo em tramitação na corte desde 1997. O objeto da ação é o Decreto 2.100/1996, pelo qual o então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, deu publicidade a denúncia à Convenção nº 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata do término da relação de trabalho por iniciativa do empregador e veda a dispensa injustificada.

Para compreendermos melhor a problemática jurídica envolvida e seus possíveis efeitos, é importante uma breve retrospectiva dos fatos e da relevância da Convenção 158 da OIT para o Direito do Trabalho, e entendermos o porquê do questionamento da legalidade do Decreto nº 2.100/1996. Ato contínuo, nos debruçaremos sobre os principais pontos do julgamento ora em análise e sobre a possibilidade (ou não) de a dispensa sem justa causa pelo empregador ser automaticamente vedada a partir do reconhecimento da reincorporação do referido tratado internacional ao nosso ordenamento jurídico.

A Convenção nº 158 foi adotada na 68ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho, ocorrida em Genebra, em 22 de junho de 1982, fruto de pesquisas e profundas rodadas de discussão sobre a demissão imotivada por iniciativa do empregador, sobretudo após o agravamento de dificuldades econômicas e acelerada modernização tecnológica à época em vários países do mundo.

Em linhas gerais, a referida Convenção teve como objetivo estabelecer princípios e diretrizes básicas sobre o tema, com finalidade de garantir padrões mínimos de proteção ao trabalhador sujeito a desligamentos arbitrários e/ou não socialmente justificados pelo empregador. Com efeito, prevê o instrumento em seu artigo 4º, como regra geral, que "não se dará término à relação de trabalho de um trabalhador a menos que exista para isso uma causa justificada relacionada com sua capacidade ou seu comportamento ou baseada nas necessidades de funcionamento da empresa, estabelecimento ou serviço".

Na visão do empresariado, a mencionada Convenção traz dispositivos onerosos (obrigatoriedade de pagamento de indenização pelo empregador, ou outra compensação financeira ao empregado, como seguro-desemprego) e burocráticos (direito de recurso do empregado demitido a ser proposto perante órgão neutro que analisaria o caso, necessidade de prévia notificação à autoridade competente no caso de dispensa justificada por de motivos econômicos, tecnológicos, estruturais ou análogos, etc.), dificultando o pleno exercício do poder diretivo do empregado e, num aspecto macro, prejudicando a economia nacional.

Nesta esteira, vale a pena chamar atenção para o fato de que apenas 36 dos 187 países integrantes da OIT ratificaram a Convenção nº 158, tais como Portugal, França, Espanha, Suécia e Venezuela. A baixa adesão a este instrumento tem sido atribuída ao engessamento das regras que regem o término das relações de trabalho, que inviabilizariam o cumprimento das exigências ali previstas pelos países, sobretudo aqueles ditos em desenvolvimento ou emergentes, para os quais o fator econômico tem um peso comparativamente maior. À propósito, cabe mencionar que essa foi a justificativa apresentada para que o Brasil denunciasse o tratado, em 20 de dezembro de 1996.

Vejamos a seguir como se deu a ratificação da Convenção nº 158 da OIT pelo Brasil, os motivos apresentados para sua posterior denúncia, bem como a discussão acerca da inconstitucionalidade do Decreto nº 2.100/1996.

Ratificação do Tratado pelo Brasil e a ADIn nº 1.480-3/DF

É possível dizer que o processo de ratificação da Convenção nº 158 da OIT pelo Brasil caminhou "a passos de formiga e sem vontade". Em 28 de junho de 1988, o Poder Executivo submeteu à análise do Congresso Nacional a ratificação da Convenção 158; em setembro de 1992, o Congresso Nacional realizou a aprovação; em 5 de janeiro de 1995, o Governo brasileiro ratificou a Convenção junto à sede da OIT; e, por fim, em 10 de abril de 1996, foi editado o Decreto nº 1.855, incorporando a Convenção 158 ao sistema jurídico brasileiro. Ao todo, entre idas e vindas, foram 8 anos para a conclusão de todo o processo de ratificação.

Em que pese o longo e vagaroso processo para a ratificação do tratado e os inúmeros debates que se seguiram neste ínterim sobre sua adequação ao ordenamento nacional, sua promulgação não foi bem recepcionada pela classe empresária, que logo desferiu severas críticas ao texto e acionou o STF para questionar sua constitucionalidade, por meio do ajuizamento da ADIn nº 1.480-3/DF. Movida pela Confederação Nacional do Transporte (CNT) e pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), tal medida judicial pleiteava o reconhecimento da inconstitucionalidade formal e material do Decreto nº 1.855/96, em virtude, respectivamente, (1) da sua inclusão no ordenamento jurídico como decreto, e não como lei complementar, tal como previsto no artigo 7º, I, da Constitucional Federal, e (2) do aparente conflito entre os institutos da indenização compensatória (já resguardado constitucionalmente) e da reintegração do empregado, que alegadamente não poderiam subsistir de maneira concomitante porque excludentes.

O julgamento da ADIn nº 1.480-3/DF pelo STF contou com opiniões divergentes sobre o caso, tanto a favor quanto contra o reconhecimento da inconstitucionalidade do Decreto nº 1.855, prevalecendo ao final o entendimento de que é indispensável para a incorporação da Convenção 158 a "necessária e ulterior intermediação legislativa para efeito de sua integral aplicabilidade no plano doméstico", sem a qual o tratado internacional serviria apenas com "mera proposta de legislação dirigida ao legislador interno".

Não obstante, o julgamento acabou não enfrentando o mérito do caso, sendo encerrado por perda de objeto, dada a edição do Decreto nº 2.100 pelo presidente da República, em dezembro de 1996. Após grande pressão do empresariado, Fernando Henrique Cardoso acabou por derrubar a Convenção nº 158, editando o decreto que deu publicidade à denúncia unilateral do instrumento internacional pelo Brasil. Como é possível notar, a justificativa apresentada pelo então embaixador brasileiro Celso Lafer à OIT se baseia em aspectos econômicos e não-intervenção estatal, consoante reproduzida abaixo:

"Na verdade, a Convenção poderia, de um lado, ser invocada para justificar demissões excessivas e indiscriminadas, baseadas em motivos gerais e vagos do lado da empresa, estabelecimento ou serviço", como indicado no Artigo 4, por outro lado, abriria a possibilidade para uma proibição ampla de dispensas o que não seria compatível com o programa atual de reformas econômicas e sociais e modernização. A Convenção foi vista como um retorno no esforço de reduzir a intervenção do Estado e estimular a negociação coletiva. "(…) Essa incerteza quanto ao alcance de aplicação do disposto na Convenção geraria, no contexto do sistema legal brasileiro, baseado na lei positivada, insegurança e conflitos, sem nenhuma vantagem prática para a melhoria e modernização das relações de trabalho".

Iniciou-se, assim, nova demanda judicial perante o STF em 1997 — a ADIn 1625, questionando agora a constitucionalidade desse Decreto nº 2.100, que tramita, desde então, na Suprema Corte, e tem perspectiva de ser julgada em definitivo em 2023 após a alteração do seu Regimento Interno, que prevê prazo máximo de 90 dias para devolução de processo em caso de pedido de vistas para cada ministro.

Do julgamento da ADIn nº 1625/97 pelo STF e suas possíveis consequências

A questão central em discussão diz respeito à validade ou não do decreto presidencial que deu publicidade à denúncia da Convenção nº 158, especificamente quanto ao seu aspecto formal.

Em resumo, é possível dizer que existem 3 linhas adotadas pelos ministros do Supremo, quais sejam: (1) procedência parcial da ação, com intepretação conforme a Constituição, segundo a qual a eficácia da denúncia do tratado via decreto presidencial está condicionada ao referendo do Congresso Nacional; votaram neste sentido Maurício Corrêa e Ayres Britto; (2) constitucionalidade do decreto; votaram neste sentido Teori Zavascki, Nelson Jobim e Dias Toffoli (porém Teori Zavascki e Nelson Jobim entenderam pela modulação dos efeitos a partir da conclusão do julgamento, mantendo a eficácia das denúncias realizadas até o momento); e (3) inconstitucionalidade integral do decreto, considerando que deveria ter sido submetido ao Congresso; votaram neste sentido Ricardo Lewandowski, Rosa Weber e Joaquim Barbosa.

Ainda restam os votos de três ministros, quais sejam Gilmar Mendes, Nunes Marques e André Mendonça. Já existe maioria para declarar o decreto inconstitucional. A dúvida que paira seria quanto à previsão de modulação de efeitos para o caso ora em análise, já que a exigência de submissão ao Congresso Nacional não teria sido cumprida nesta situação.

A bem da verdade, embora ansiosamente aguardado, o desfecho do julgamento da ADIn nº 1.625/97 provavelmente não acarretará grandes mudanças ao nosso atual ordenamento jurídico no tocante à proteção contra dispensa arbitrária ou sem justa causa. Isso porque, mesmo que seja eventualmente reconhecida a inconstitucionalidade do Decreto nº 2.100/96, dificilmente será acolhido o entendimento de que o disposto na Convenção nº 158 da OIT seria automaticamente aplicável, em virtude da natureza programática do tratado e necessidade de regulação interna por meio de lei complementar, tal qual estabelecido no artigo 7º, I, da Constituição Federal de 1988. Em outras palavras, dada à sua eficácia restrita, a Convenção nº 158, mesmo que já incorporada no ordenamento jurídico nacional, somente teria o condão de produzir efeitos (e, portanto, vedar a dispensa sem justa causa) se devidamente regulada por arcabouço normativo interno na forma estipulada pela Constituição Federal.

Autores

  • é mestre e especialista, graduada em Direito pela USP (Universidade de São Paulo) e head da área trabalhista e de inovação do VBD Advogados.

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