Senso Incomum

João foi deixado em coma por Maria (bêbada) e não pode processá-la

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20 de março de 2025, 9h13

Parece bizarro, mas se depender do direito brasileiro e dos concursos públicos, basta você beber, atropelar alguém, deixá-lo em coma por seis anos e depois tentar processar o criminoso: estará prescrito graças ao Estatuto da Pessoa com Deficiência — que, é claro, está aí para beneficiar a vítima.

Querem saber? Sigam-me. Verão como faz falta a epistemologia jurídica. E como faz falta um discurso científico no direito.

Concurso público para juiz de direito. Questão:

João fica em coma por 6 anos por causa de um acidente de trânsito causado por Maria, que o vitimou bêbada. Saindo do coma, resolve mover ação para reparação civil contra Maria.

Segundo o gabarito do concurso, a pretensão reparatória de João está prescrita (passaram-se mais de três anos). A incapacidade de João não seria mais causa impeditiva para a fluência da prescrição, pois o Estatuto da Pessoa com Deficiência retirou de pessoas como João a incapacidade absoluta (que agora só está reservada aos menores de 16 anos)…  Que tal?

Uma análise textualista (tipo exegetismo do século 19) mostra que o gabarito do concurso está correto. Começa por aí. Só que — ainda bem — o  direito é mais complexo que a simples análise textual (ou um anarco-textualismo, como descrevo no Dicionário Senso Incomum). O concurso trabalha com a tese, mutatis mutandis, do “é proibido cães na plataforma”. Fosse questão do concurso, o clássico exemplo de Siches daria no seguinte: levar um urso seria permitido e proibido o cão guia do cego. Esse é o textualismo do gabarito.

De pronto faltou especificar que poderia ser o caso de aplicação do artigo 200 do Código Civil. Por isso que muitos civilistas pedem o retorno (na lei) da incapacidade por impossibilidade, permanente ou transitória, de exprimir a vontade como hipótese de incapacidade absoluta.

Spacca

Na questão do concurso, João, durante o coma, é enquadrado como relativamente incapaz, na forma do artigo 4º, III, do Código Civil, como alude a doutrina. A melhor doutrina civilista critica a interpretação assumida na resposta do concurso, assim como a posição do STJ (que mostro na sequência).

Diz a doutrina: impulsionado pelo ímpeto de afastar o estigma da incapacidade absoluta, o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015) converteu a hipótese em causa de incapacidade meramente relativa, ensejando alguma perplexidade entre os civilistas.

Para atribuir uma proteção adequada a tais pessoas, deverá se reconhecer ao “assistente” (curador) efetivos poderes de representação, permitindo sua atuação em nome do incapaz. Ademais, o inciso III deve ser interpretado de modo a abarcar apenas a efetiva impossibilidade fática de manifestação da vontade, excluindo as situações em que o processo de formação da vontade seja afetado por qualquer razão.

É que, de acordo com o artigo 6º do Estatuto da Pessoa com Deficiência, “a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa”. Assim, a pessoa com deficiência mental ou intelectual é reputada por lei plenamente capaz. Trata-se de mais uma inovação que recebeu duras críticas de parte significativa da doutrina civilista, convicta de que, na prática, a alteração pode implicar verdadeira “desproteção” da pessoa.” [1]

Correta a crítica feita pela doutrina. Mas falta algo. Falta a “questão constitucional”, como explicarei mais adiante. O Código Civil e o Estatuto não sobrevivem sem a Constituição. Para resolver o problema, aguarda-se a reforma do Código Civil. Penso que não é necessário esperar. Basta um olhar hermenêutico-constitucional.

Sigo. Por que o gabarito da questão apontou para a prescrição? Simples. O artigo 198, I, do Código Civil diz que não corre a prescrição “contra os incapazes de que trata o artigo 3º”, ou seja, contra pessoas com menos de 16 anos. Só que o Estatuto da Pessoa com Deficiência diz que pessoa incapaz relativamente que, de forma permanente ou transitória, não consegue exprimir a vontade, como o caso da pessoa em coma, é tida como capaz, não sendo atingia pelo artigo 198, I. Deu para entender? Será que a lei queria tratar, inclusive, de alguém com coma? Que lhes parece?

Schreiber e Tartuce, já citados, entendem, corretamente, que, para solucionar a questão, é de se entender que a alteração legislativa não afasta a identidade de fundamento entre a suspensão da prescrição para os absolutamente incapazes e aquelas pessoas, razão pela qual também a elas deve ser aplicada, por analogia, a suspensão da fluência dos prazos prescricionais. Uma pitada de Constituição e nada mais precisaria ser feito.

Porém, o STJ decidiu textualisticamente (veja-se que às vezes os tribunais são textualistas-exegetistas, sendo que, em outras, são voluntaristas, fazendo uma certa repristinação da dicotomia Ângelo I e Ângelo II da peça Medida por Medida (ver aqui) — por vezes a lei vale tudo e, em outras, nada vale. Vejamos:

“6. Verifica-se que a enfermidade ou deficiência mental, que era causa para a incapacidade absoluta conforme a redação original do art. 3º, inciso II, do Código Civil/2002, deixou de sê-lo com o advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015, e passaram a ser considerados absolutamente incapazes apenas os menores de 16 anos. Assim, aqueles que, por causa transitória ou permanente, não podem exprimir sua vontade (situação de enfermidade ou deficiência mental), a partir de 2015 passaram a ser considerados relativamente incapazes, na forma do art. 4º, inciso III, do Código Civil, e sujeitos ao curso normal do prazo prescricional” (STJ – AgInt no REsp 2057555. 2ª T. Rel. Min. Herman Benjamin. DJe de 17.10.2023)

Moral da história: o benfazejo Estatuto lenhou com a vida de João.  Por isso, insisto: será que essa discussão toda não tem, antes de discutir textos e exegetices, uma questão constitucional?

Poderia o sistema jurídico comportar contradições que destruiriam sua própria função?

Qual seria a lógica de uma pessoa, incapacitada de expressar sua própria vontade, ser tolhida na sua pretensão de mover uma ação de indenização após recobrar seus sentidos?

Ora, no caso concreto do acidente de trânsito seria beneficiar o próprio causador do acidente. Quanto mais coma, melhor! Afinal, alguém poderá ser beneficiado pelo seu próprio ato de negligência (dirigir bêbado e atropelar alguém)?

A resposta não pode ser dada a partir de uma interpretação textualista (ver, nesse sentido, meu “Hermenêutica Jurídica em Crise”), esquecendo o que diz o restante do Código Civil e da Constituição. Há uma proteção especial da criança, do adolescente, da pessoa com deficiência. Há um elenco considerável de proteção no texto constitucional. Correto?

Então, não parece evidente que o Estatuto deve ser interpretado de acordo com a Constituição e com o que diz a melhor doutrina de proteção da pessoa com deficiência? Uma interpretação conforme resolveria, dispensando discussões do tipo “vamos esperar a legislação mudar”.

Por exemplo, sobre o caso concreto, afirma o artigo 200: “Quando a ação se originar de fato que deva ser apurado no juízo criminal, não correrá a prescrição antes da respectiva sentença definitiva.” Aqui há uma proteção contra decisões conflituosas entre a jurisdição civil e criminal, contudo o busílis está em outro argumento.

O sujeito em coma não tem capacidade de exercer sua própria subjetividade, não poderá fazer valer sua pretensão de iniciar um pedido de reparação de danos materiais, morais ou estéticos. A doutrina ajuda a esclarecer essa situação: o início do prazo prescricional não surge apenas na ocorrência do dano (da violação), visto que há necessidade lógica de ciência do dano pelo respectivo titular da ação. Ao tratarem sobre os casos em que o sujeito não poderá exprimir sua própria vontade (coma, amnésia, AVC) afirma a doutrina especializada:

Enfim, situação que se caracterize como obstáculos injustificáveis ao exercício da pretensão (propositura da ação). Trata-se de situação nitidamente casuística e episódica. E a boa-fé objetiva (comportamento ético do titular) deve ser o referencial a ser utilizado para a admissão de outras hipóteses suspensivas ou interruptivas não contempladas em lei. Se o seu comportamento revela, de fato, uma absoluta impossibilidade de exercício da pretensão, deve se admitir uma ampliação do rol previsto em lei. Seria exatamente a hipótese do relativamente incapaz que não pode exprimir vontade, consoante as novas regras de incapacidade emanadas do Estatuto da Pessoa com Deficiência. [2]

A ideia de prescrição está assentada na punição a quem age com desleixo, que deixa de exercer sua pretensão por uma negligência. Estar em coma é estar em desleixo? O que há é uma proteção evidente à boa-fé nas relações abarcadas pelo Direito Civil, que estaria solapada se a questão fosse interpretada de forma meramente literal.

Lembremos que interpretações meramente criteriais ou textualistas, podem ensejar injustiças evidentes. Isso é tão velho que Jonathan Swift já fez blague com isso em 1726, nas Viagens de Gulliver, quando conta que o “gigante” foi condenado à morte por ter salvado a rainha do incêndio. Como assim? Simples: para salvar sua majestade, ele urinou sobre o castelo. Havia uma lei, cuja pena era a morte, para quem urinasse em público. E o promotor denunciou Gulliver.

No mais, quando o Estatuto da Pessoa com Deficiência revogou os incisos do artigo 3º do Código Civil o que se buscou, na sociedade, foi dar proteção às pessoas que, apesar da deficiência, podem expressar sua vontade. Não lhes parece evidente? Disto resultar que um sujeito veja sua pretensão prescrever em razão de estar impossibilitado de expressar sua própria vontade é ferir de morte o sistema jurídico em sua lógica interna.

A resposta correta é:

O prazo deve ser interrompido enquanto João estiver em coma e não puder emitir sua vontade. Boa parte da doutrina se guia pela teoria do actio nata, em que o prazo para reparação material por ilícito só poderá correr a partir do efetivo conhecimento da lesão. Ou seja, se sequer há negligência por parte do autor, visto que não pôde manifestar sua vontade em processar o infrator, a resposta é de que o prazo prescricional nesse caso estaria interrompido.

Ademais, o sujeito em coma não se enquadra como pessoa com deficiência para os fins da Lei 13.146/2015. Visto o que diz o artigo 2 da lei:

Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

No caso há uma ausência de qualquer capacidade em expressar um direito subjetivo, o de buscar a reparação material, moral ou estética do dano.

Uma interpretação pode se dar no artigo 198 do Código Civil:

Art. 198. Também não corre a prescrição:
I – contra os incapazes de que trata o art. 3o;

Trata-se de um rol taxativo? Entender nesse sentido é subverter a finalidade mesma da proteção à Pessoa com Deficiência. Há sempre um telos na lei, desde Aristóteles. Mesmo que no artigo 3 do Código Civil não conste mais aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade, em razão do Estatuto, deve ser estendida a benesse quanto ao início do prazo prescricional.

O intuito do Estatuto da Pessoa com deficiência foi proteger a autonomia das pessoas com deficiência, retirando-as do rótulo de absolutamente incapazes. Não poderá, contudo, impactar em situações completamente diversas, como no caso em apreço.

Portanto: trata-se de uma questão constitucional. Para além da infra constitucionalidade. Não precisamos de alteração legislativa. Basta aplicar a Constituição. O Estatuto e o Código Civil devem ser interpretados de acordo com o sistema de proteção da pessoa com deficiência previsto na Constituição do Brasil. A palavra deficiência aparece mais de 20 vezes na Constituição.

Em que sentido?

De proteção à pessoa com deficiência. Logo, qualquer lei que venha, mesmo com boa intenção, proteger essa pessoa e, paradoxalmente e numa leitura enviesada, possa vir a prejudicá-la, então essa lei deve ser interpretada de acordo com a Lei Maior. Chama-se verfassungskonforme Auslegung. Esta lei somente é constitucional se interpretada no sentido de!

Quanto ao concurso, os que chumbaram deveriam pedir a anulação da questão.

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[1] Cf. SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, Flávio; José Fernando Simão; et al. Código Civil Comentado – Doutrina e Jurisprudência. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025, p. 9.

[2] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: parte geral e LINDB. 15. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017. p. 747

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