ITCMD: a ferida narcísica de Laffer
18 de março de 2025, 11h21
A curva de Laffer, conceito amplamente estudado na economia tributária, estabelece uma relação entre a alíquota de um tributo e a receita arrecadada pelo Estado. Segundo essa teoria, há um ponto ótimo de tributação: alíquotas muito baixas não geram arrecadação suficiente, enquanto alíquotas excessivas estimulam a sonegação e reduzem a base tributária.

Dentro desse modelo, uma alíquota moderada incentivaria os contribuintes a cumprirem suas obrigações fiscais, maximizando a receita sem gerar incentivos para a evasão. No entanto, a tributação sobre heranças e doações no Brasil desafia essa lógica: mesmo com uma das menores alíquotas efetivas do mundo, o ITCMD apresenta um nível absurdo e crescente de evasão fiscal, tornando-se um caso emblemático de disfunção tributária.
As holdings patrimoniais começaram a ser utilizadas como instrumento patrimonial e sucessório no início dos anos 2000 e, desde então, consolidaram-se como uma ferramenta eficaz para garantir dinamicidade e profissionalização na gestão do patrimônio.
Além de viabilizar uma administração mais estruturada dos bens familiares, essas estruturas societárias se tornaram um mecanismo amplamente empregado para a redução lícita da carga tributária — um processo de elisão fiscal amplamente reconhecido e permitido pela legislação brasileira, sobretudo com relação ao Imposto de Renda. No âmbito do ITCMD, em especial, as holdings permitiram um planejamento tributário mais eficiente, minimizando a carga fiscal incidente sobre a transferência de bens e direitos, principalmente em Estados que definem ou admitem como base de cálculo o valor patrimonial contábil.
Para se ter uma ideia da redução possível da carga tributária, imaginemos que um patrimonialista possua imóveis com valor de mercado total de R$ 10 milhões, mas valor histórico (lançado na declaração de IR) de apenas R$ 1 milhão, algo comum, uma vez que a legislação do IR não permite a correção monetária do valor dos bens. A mesma legislação, porém, autoriza a integralização dos bens ao capital de holdings pelo seu valor histórico, de forma que, no exemplo dado, os imóveis passam ao ativo da empresa pelo montante de R$ 1 milhão.
A legislação paulista, por exemplo, segundo a jurisprudência do TJ-SP, veda a avaliação das empresas a valor de mercado, obrigando que a base de cálculo do ITCMD na doação das quotas/ações seja o Patrimônio Líquido contábil, ou seja, os mesmos R$ 1 milhão. Como resultado, os donatários que, caso recebessem os imóveis diretamente como pessoa física, pagariam R$ 400 mil de ITCMD (R$ 10 milhões x 4%), na transmissão via holding desembolsam apenas R$ 40.000,00 (R$ 1 milhão x 4%), o que equivale a uma alíquota efetiva de apenas 0,4%. E o mais comum é encontrar subavaliações muito superiores à do exemplo.
Expansão descontrolada
Com uma alíquota efetiva tão reduzida, seria razoável supor que o nível de evasão fiscal do ITCMD entre os donatários de quotas e ações de holdings fosse irrisório. No entanto, a realidade mostra um cenário completamente diferente. Longe de estimular a conformidade fiscal, a possibilidade de tributação simbólica tem levado a uma expansão descontrolada de estratégias abusivas de planejamento patrimonial. A busca incessante pela redução da carga tributária tem ultrapassado a fronteira da elisão fiscal e adentrado no campo da evasão, com práticas que disfarçam doações por meio de operações societárias artificiais e manipulação contábil. O ITCMD, portanto, se tornou um tributo cuja baixa arrecadação não é fruto apenas da alíquota reduzida, mas também de um ambiente regulatório permissivo que tem sido explorado para esquivar-se de sua incidência.

O Judiciário, acima de tudo, terá um papel importantíssimo na definição clara do que é ou não permitido. Para tanto, deverá compreender, em primeiro lugar, que as holdings familiares não são empresas criadas, via de regra, para exercer atividades empresárias. A elas não deve se aplicar a lógica do Direito Empresarial porque a sua motivação ou a sua razão de ser é diferente. A lógica da holding familiar é a lógica do Direito de Família.
O Legislativo também terá um papel fundamental, devendo aprovar uma lei complementar que estabeleça regras claras e uniformes para a tributação do ITCMD. Essa norma deve valorizar o princípio da isonomia e definir que todos os ativos, sejam eles móveis ou imóveis, transmitidos diretamente por pessoas físicas ou integralizados ao ativo de pessoas jurídicas, sejam tributados com base no valor de mercado. Além disso, é inócuo reformar o Código Civil e as normas do Direito de Família e Sucessões se, em pouco tempo, a maior parte dos “inventários” estiver sendo realizada na Junta Comercial.
Enquanto não se compreender a necessidade de se normatizar, interpretar corretamente e tributar as operações das holdings de forma justa e isonômica em relação ao patrimônio das pessoas físicas, teremos a menor alíquota efetiva do mundo e, ainda assim, para ferir o orgulho de Laffer, um nível descomunal de sonegação fiscal.
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