Opinião

Tema 1.118: inviabilizou-se a responsabilidade subsidiária dos entes públicos na terceirização?

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  • é especialista em direito pela universidade de Salamanca Espanha e em neurociência pela Faculdade de Medicina do Hospital Albert Einstein desembargadora do trabalho do TRT -2.

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  • é juiz do Trabalho titular da 1ª Vara de Vitória da Conquista (BA) no TRT-5 mestre e doutor em Direito do Trabalho pela USP e professor da Faculdade de Direito da FGV-SP.

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9 de março de 2025, 11h17

O STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu, faz pouco, o Tema 1.118 de sua repercussão geral, fixando a seguinte tese:

1. Não há responsabilidade subsidiária da Administração Pública por encargos trabalhistas gerados pelo inadimplemento de empresa prestadora de serviços contratada, se amparada exclusivamente na premissa da inversão do ônus da prova, remanescendo imprescindível a comprovação, pela parte autora, da efetiva existência de comportamento negligente ou nexo de causalidade entre o dano por ela invocado e a conduta comissiva ou omissiva do poder público.

2. Haverá comportamento negligente quando a Administração Pública permanecer inerte após o recebimento de notificação formal de que a empresa contratada está descumprindo suas obrigações trabalhistas, enviada pelo trabalhador, sindicato, Ministério do Trabalho, Ministério Público, Defensoria Pública ou outro meio idôneo.

3. Constitui responsabilidade da Administração Pública garantir as condições de segurança, higiene e salubridade dos trabalhadores, quando o trabalho for realizado em suas dependências ou local previamente convencionado em contrato, nos termos do art. 5º-A, § 3º, da Lei nº 6.019/1974.

4. Nos contratos de terceirização, a Administração Pública deverá: (i) exigir da contratada a comprovação de capital social integralizado compatível com o número de empregados, na forma do art. 4º-B da Lei nº 6.019/1974; e (ii) adotar medidas para assegurar o cumprimento das obrigações trabalhistas pela contratada, na forma do art. 121, § 3º, da Lei nº 14.133/2021, tais como condicionar o pagamento à comprovação de quitação das obrigações trabalhistas do mês anterior.

Brevemente, registre-se que, nos termos da posição minoritária e divergente sobre o assunto, a questão decidida não guarda alguma relação com a Constituição, que não seja reflexa ou indireta e, ainda assim, mediante esforço hermenêutico hercúleo. Como se lê na tese final, o debate girou em torno da atribuição do ônus da prova, temática exclusivamente infraconstitucional.

Solução mal equacionada

Além desse primeiro passo, gize-se, ainda introdutoriamente, que a solução foi mal equacionada, à luz da disciplina legal e do escorço doutrinário erigidos historicamente na construção do direito processual do trabalho. É equivocada, porque atribui ao autor o ônus de comprovar fato negativo, a chamada, no tempo antigo, de prova diabólica; dispensa do encargo probatório o litigante mais e melhor aparelhado para comprovar os fatos, menoscabando o princípio da aptidão para a prova; e cria comportamento condicional ao resultado da sentença, não previsto em lei.

Assentadas as ressalvas, observe-se que o panorama não se altera tanto quanto a leitura inicial e o acompanhamento dos debates do plenário do STF fazem supor.

Spacca

De acordo com a tese votada, há duas possibilidades de responsabilização do ente público: aquela decorrente da negligência do poder público e a decorrente do nexo causal entre o dano e a conduta comissiva e/ou omissiva.

Não há, embora soe, para os mais açodados, sinonímia nas expressões “negligência” e “nexo causal”. Rememore-se que a lei civil prevê o ato lícito também como motor do dever de indenizar:

“Em face disso, a ideia de responsabilidade, se nascera vinculada obrigatoriamente a uma ideia de culpa, formada pela imputabilidade e pela capacidade, passou muito mais a se vincular com a ideia de reparação do dano. Este sim o objeto da responsabilidade civil, não importando mais o grau ou a incidência moral da culpa, mas, sim, o restabelecimento da condição da vítima anterior ao ato lesivo. Assim, “o interesse em restabelecer o equilíbrio econômico jurídico alterado pelo dano é a causa geradora da responsabilidade civil”. (Bonini, Paulo Rogério. “Responsabilidade civil por ato lícito“, disponível em , acesso 18/2/2025)

Conduta ilícita do agente

O salto qualitativo do fenômeno jurídico da responsabilidade fê-la passar da esfera da culpa, objetivando analisar-se a conduta ilícita do agente, para a noção de necessidade de reparação do dano, que abre hipóteses do dever de indenizar, indistintamente à presença do fator culpa, ou da prática de qualquer ato, omissivo ou comissivo, ilícito.

Tal mudança, como se colhe do magistério de Cláudio Luiz Bueno de Godoy (Responsabilidade civil pelo risco da atividade. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 22), decorre da relevância jurídica atribuída à necessidade de reparação do dano, vigente na contemporaneidade:

“A alteração indica a responsabilidade civil como fixação das condições da relevância jurídica de um dano, as modalidades de imposições da obrigação de ressarci-lo, “sem que o responsável seja, necessariamente, o autor, uma vez que o objetivo não é, em si e por si, a descoberta da autoria do evento lesivo”

Antes e por todos, Pontes de Miranda esclareceu que:

“A licitude existiu, a despeito do dano: só se estabeleceu antijuridicidade; houve dano, e a lei estatui que seja indenizado. Assim, nem todas as indenizações em virtude de responsabilidade extranegocial são oriundas de atos ilícitos. Há sanção legal, que tem como ratio legis cobrir-se o que se perdeu, a despeito de a própria lei ter permitido” (Tratado de direito privado. t. LIII, Rio de Janeiro: Borsói, 1954, p. 143/44).

Responsabilidade civil consiste, na clara definição de Maria Helena Diniz (Curso de direito civil brasileiro. 16. ed. atual. de acordo com o novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 7, p. 34):

“A aplicação de medidas que obriguem alguém a reparar dano moral ou patrimonial causado a terceiros em razão de ato do próprio imputado, de pessoa por quem ele responde, ou de fato de coisa ou animal sob sua guarda, ou, ainda, de simples imposição legal.”

Direitos trabalhistas

Curioso que a Constituição fixa responsabilidade sem culpa, para o Estado e seus contratados, como se apreende do artigo 37, § 6º, mas o STF dispensa tal determinação, quando o crédito decorrer de direitos trabalhistas (e, portanto, fundamentais) de empregado terceirizado:

“§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”

A “regra” imposta pela tese jurídica vinculante, no item 2, define a negligência e a ela exige a notificação, provavelmente prévia ao processo judicial. Já o nexo causal admite a prova no curso da instrução processual, observados seus limites temporais. Faça-se nota de que o item IV estipula as obrigações do Estado, que podem ser exigidas para a comprovação da parte final do item I e apontam para o nexo causal.

Não se olvide de que o parágrafo primeiro do artigo 373 impõe a flexibilização do princípio dispositivo quando houver previsão legal. A tese vincula as decisões que serão proferidas sobre o tema, ela não é lei, mas tem força impositiva como se assim fosse. Logo, sob tal égide, o juiz deve exigir a comprovação, pela tomadora pública, do cumprimento do contido no item IV da tese.

Referida norma preceitua:

“§ 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.”

Não se pode inverter o ônus — ante a grave proibição do STF — no caso da culpa, mas isso não abrange a parte final do tópico em análise, que usa a conjunção alternativa “ou” antes de nexo causal. Este pode ser comprovado pela parte que tem maior disponibilidade dos meios de prova.

Exibição de prova

Ainda que assim não fosse, mister compreender que o Judiciário pode determinar às partes ou a terceiro, a exibição de documento importante ao deslinde da causa, que não estejam em poder daquele a quem interessa a prova, ou daquele a quem incumbe seu ônus. Leia-se:

“O juiz pode ordenar que a parte exiba documento ou coisa que se encontre em seu poder.”

E a consequência jurídica da omissão vem tratada no artigo 400, do Código:

Ao decidir o pedido, o juiz admitirá como verdadeiros os fatos que, por meio do documento ou da coisa, a parte pretendia provar se:

I – o requerido não efetuar a exibição nem fizer nenhuma declaração no prazo do art. 398;

II – a recusa for havida por ilegítima.

Parágrafo único. Sendo necessário, o juiz pode adotar medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias para que o documento seja exibido.

O ônus da prova do fato negativo da ausência de fiscalização, que gera nexo de causalidade e, portanto, responsabilidade, independente da culpa, de arcar subsidiariamente com as obrigações da sentença continua sobre os ombros do empregado. O documento que comprova o fato está, entretanto, sob guarda da parte contrária, que, no ambiente civilizado do Estado democrático de direito, haverá de exibi-lo espontânea ou compulsoriamente, sob pena de atestar a verdade do fato cuja existência estaria sob investigação.

Conclua-se com o alerta de que as variantes fáticas da aplicação da teste vinculante do Tema 1.118 são tantas que se antevê uma inundação de reclamações constitucionais sobre o assunto, em tempos próximos, o que não apenas prejudica a higidez do sistema de justiça, como tende a inviabilizar o bom funcionamento do Supremo Tribunal Federal.

Autores

  • é especialista em direito pela universidade de Salamanca, Espanha, e em neurociência pela Faculdade de Medicina do Hospital Albert Einstein, desembargadora do trabalho do TRT -2.

  • é mestre e doutor em Direito pela USP, pesquisador e professor do FGV LAW (Faculdade de Direito SP da FGV) e juiz titular da 1ª vara do trabalho de Vitória da Conquista (BA).

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