Opinião

Biometano em perspectiva: sobre o decreto em consulta pública

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22 de maio de 2025, 16h24

Não é por acaso que se encontra, neste momento, submetida à consulta pública a minuta do decreto que visa a regulamentar o Programa Nacional de Descarbonização do Produtor e Importador de Gás Natural e de Incentivo ao Biometano, instituído pelo Capítulo V da Lei nº 14.993, de 8 de outubro de 2024, a qual representa o marco normativo do denominado “Combustível do Futuro”. Trata-se, pois, de uma iniciativa normativa que se insere no contexto mais amplo das transformações exigidas pela emergência climática e pelas novas diretrizes de governança ambiental em escala global.

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No compasso da inovação normativa, mais do que um simples instrumento de regulamentação, a proposta busca conferir concretude à ambicionada transição energética brasileira, projetando um novo arranjo institucional voltado à descarbonização progressiva da matriz de gás natural. Nesse sentido, almeja-se instaurar um paradigma jurídico-ambiental inovador, fundado na previsibilidade regulatória, na segurança jurídica, na integridade ecológica e, sobretudo, na promoção de um ambiente propício à inovação tecnológica e ao investimento sustentável.

No cenário da modernização das políticas públicas ambientais, destaca-se o surgimento do Certificado de Garantia de Origem do Biometano (CGOB), que vai além da mera comprovação administrativa de procedência para se firmar como um pilar essencial da credibilidade técnica, econômica e ambiental do emergente mercado de combustíveis renováveis. Nesse panorama, o núcleo conceitual dessa estrutura repousa na noção de “atributo ambiental”, termo que demanda precisão terminológica, densidade jurídica e rigor teórico para sua plena compreensão.

Atributo ambiental

No âmbito da minuta de decreto, atualmente submetida à consulta pública, destaca-se o artigo 2º, inciso V, ao definir uma característica essencial de atributo ambiental do Certificado de Garantia de Origem do Biometano (CGOB), nos seguintes termos: “atributo de sustentabilidade inerente ao CGOB que atesta a renovabilidade da origem do biometano certificado e que assegura a rastreabilidade do conteúdo biogênico da molécula”.

A partir dessa formulação, depreende-se que o ato de natureza infralegal propõe mais do que uma descrição funcional do certificado. Em verdade, inaugura-se uma ontologia jurídica e ambiental, assentada na concepção de “atributo” como elemento estruturante, qualificante, constitutivo e identificador do produto no contexto do novo regime regulatório. Sob essa ótica, o CGOB passa a exercer papel normativo de primeira ordem na conformação técnica e simbólica do mercado de combustíveis renováveis.

Para apreender adequadamente essa construção normativa, é necessário compreender, com o devido rigor etimológico, os termos que compõem a expressão “atributo ambiental”. De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o substantivo “atributo” deriva do latim attribūtu, particípio passado de attribuĕre, que significa conceder, reconhecer, assinalar. No plano filosófico e jurídico, “atributo” designa uma qualidade essencial, inseparável de um ente ou fenômeno, que lhe confere identidade e distinção. Trata-se, pois, de um traço constitutivo, que não apenas acompanha, mas qualifica substancialmente aquilo que o possui.

O adjetivo “ambiental”, por sua vez, provém do latim ambiens, particípio presente de ambīre, verbo que significa cercar, envolver, rodear. O termo remete à noção de “ambiente” como o conjunto de condições físicas, químicas, biológicas e culturais que circundam e influenciam um organismo, sistema ou processo. Assim, o que é “ambiental” não apenas pertence ao meio ambiente, mas nele está inserido de maneira estruturante, sendo parte de sua tessitura dinâmica e relacional.

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A fusão semântica desses dois termos permite que se defina “atributo ambiental” como a qualidade essencial de um bem, processo ou substância que o qualifica ambientalmente em razão de sua origem sustentável, de seu valor ecológico ou de sua conformidade com princípios de proteção e responsabilidade socioambiental. Trata-se, portanto, de um marcador jurídico-ambiental que transcende a aparência física ou o valor econômico do bem, pois indica sua legitimidade regulatória perante os órgãos ambientais e os mercados especializados.

Distinção em relação a instrumentos compensatórios

É nesse sentido que o CGOB se distingue radicalmente de instrumentos compensatórios, como os créditos de carbono, os Certificados de Descarbonização (CBIOs) ou os certificados de remoção. Estes operam com base em lógica aritmética de neutralização, mediante equivalência contábil entre emissões e reduções certificadas. Já o CGOB funda-se numa lógica ontológica: a realidade físico-química de sua origem biogênica é aquilo que confere validade ao certificado. A molécula de biometano proveniente de resíduos orgânicos ou efluentes agroindustriais é, em si, portadora de atributo ambiental, razão pela qual sua rastreabilidade é condição de autenticidade regulatória.

No plano jurídico, o reconhecimento do atributo ambiental como critério normativo encontra respaldo precedente relevante. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Mandado de Segurança nº 38.387/DF, sob relatoria da ministra Carmen Lúcia, reconheceu a legitimidade do uso de atributos ambientais como fundamento técnico-científico para classificação e proteção de cavidades naturais subterrâneas. Naquela oportunidade, a Corte afirmou que tais atributos não apenas justificam, mas exigem a gradação normativa de proteção ecológica, em função de seus valores intrínsecos. A analogia é valiosa: se a constituição físico-ambiental de uma caverna impõe a ela tutela diferenciada, a constituição bioenergética de uma molécula de biometano também pode, e deve, servir de critério para sua identificação, circulação e valorização no sistema normativo.

Certidão ecológica

Nesse cenário, o CGOB não é apenas um certificado: é uma certidão ecológica, que confere identidade jurídica ao biometano enquanto bem ambiental qualificado. Como atributo ambiental, o CGOB não apenas representa, mas expressa a sustentabilidade incorporada ao insumo energético, funcionando como elo entre ciência, técnica, mercado e direito.

Assim, a articulação entre linguagem normativa, fundamentação científica e valores ecológicos, materializada na expressão “atributo ambiental”, revela a maturidade conceitual que começa a despontar nas políticas públicas de transição energética no Brasil. O CGOB, ao ser concebido como manifestação legítima de um atributo ambiental originário, inaugura uma nova fase no desenho institucional da sustentabilidade: uma fase em que a rastreabilidade técnica encontra reconhecimento jurídico e se traduz em confiança regulatória.

Mais do que um rito procedimental, a consulta pública da minuta do decreto que regulamenta o Programa Nacional de Descarbonização e de Incentivo ao Biometano representa um chamado à inteligência coletiva, convocando a escuta ativa da sociedade civil, da academia e do setor produtivo diante de um momento decisivo. Ao propor a qualificação essencial do CGOB como atributo ambiental, o texto não apenas inova no plano do ato de natureza infralegal, como também ensaia os contornos de um novo pacto ecológico entre Estado, mercado e sociedade, voltado à construção de um futuro energético ambientalmente justo e juridicamente sólido.

Embora ainda iniciais, estas impressões reconhecem o potencial normativo da proposta; trata-se de um passo relevante rumo à consolidação de uma política pública de transição energética que, ao combinar previsibilidade regulatória, integridade ecológica e estímulo à inovação, sinaliza algo raro no cenário regulatório brasileiro, ou seja, um futuro que começa, enfim, a ganhar forma.

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Referências

BRASIL. Lei nº 14.993, de 8 de outubro de 2024. Institui o Programa Nacional de Combustível do Futuro. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 out. 2024.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança nº 38.387/DF. Rel. Ministra Cármen Lúcia. Julgado em 08/03/2022. Publicado em 16/03/2022.

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA. MME abre consulta pública sobre decreto do Programa de Incentivo ao Biometano. Disponível aqui.

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