Opinião

Transformação digital nos serviços públicos: desafios e limitações da assinatura gov.br

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  • é pesquisadora no Legal Grounds Institute bacharel em Direito pelas Universidades de Camerino (Itália) e Universidade de São Paulo (Brasil) pesquisadora nas áreas de Proteção de Dados e Direito Notarial durante a Graduação especialista em Direito da Propriedade Intelectual pela ESA OAB SP e Privacidade e Proteção de Dados pela ABPI-Ceduc e advogada atuante na área de Direito Digital e Propriedade Intelectual.

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14 de maio de 2025, 18h18

A digitalização dos serviços públicos, exemplificada pela assinatura eletrônica disponível no Portal Gov.br, representa um importante avanço na modernização da administração pública no Brasil. No entanto, apesar das facilidades e benefícios proporcionados, esses mecanismos também apresentam desafios e limitações que merecem uma análise crítica. A implementação dessas ferramentas reflete as mudanças tecnológicas em curso, mas também evidencia a necessidade de reflexão sobre questões como inclusão digital, segurança jurídica e consistência normativa.

Divulgação

Embora o poder público tenha investido em ferramentas digitais para facilitar o acesso a serviços, um dos maiores obstáculos ainda é a inclusão digital e um robusto sistema de verificação de segurança. Além disso, as plataformas como o Portal Gov.br exigem que os usuários possuam um nível de familiaridade com a tecnologia e navegação na internet. Isso se torna um obstáculo, especialmente para pessoas idosas ou para aquelas que não estão inseridas no ambiente digital. À medida que são adotados uma série de sistemas online, há que se questionar o verdadeiro alcance e segurança dessa digitalização.

Apesar dos avanços e benefícios em relação a tal digitalização dos serviços públicos e a existência de decreto que regulamenta, por exemplo, a utilização de assinaturas digitais [1], a recente ampliação do uso da assinatura eletrônica pelo gov.br tem gerado dúvidas sobre sua validade jurídica em contextos privados ou em atos processuais. Recentemente, decisões judiciais e administrativas têm considerado a assinatura eletrônica realizada por meio do gov.br inadequada ou insuficiente para determinados atos.

O mais recente episódio foi a decisão pelo Plenário do CNJ da não aplicabilidade da assinatura jurídica proveniente do gov.br em autorizações de viagem para menores de idade [2]. Outro episódio é o da recente decisão da Junta de Mato Grosso do Sul (Jucemat) que não aceitará mais a assinatura digital via gov.br, devido à ampla ocorrência de fraudes desde dezembro de 2024 [3].

Tais inconsistências de interpretação trazem à tona uma discussão sobre a segurança jurídica das transações realizadas digitalmente. Embora a assinatura eletrônica ofereça uma garantia de integridade e autenticidade dos documentos, a legislação brasileira ainda não proporciona uma regulação completamente robusta para diversos tipos de interações privadas entre cidadãos.

A falta de uma regulamentação mais clara pode gerar insegurança jurídica, especialmente em negócios privados que envolvem contratos e procurações. A assinatura eletrônica qualificada, disponível através do gov.br, é perfeitamente válida para interações com entes públicos, mas sua utilização em contextos privados deve ser analisada sob uma ótica crítica.

Ao considerar que a assinatura eletrônica foi implementada como uma forma de desburocratizar processos, seu uso inadequado ou incompleto pode ter um efeito indesejado de dar margem à insegurança jurídica. Assim, cabe considerar a necessidade de um reconhecimento formal, seja por meio de notários, autenticações adicionais ou a utilização de outros meios tecnológicos que garantam sua eficácia legal.

Além disso, a exigência de uma autenticação robusta de documentos, como é o caso da assinatura digital no gov.br, também esbarra na dificuldade de garantir que todos os participantes do processo digital estejam devidamente autenticados. As plataformas e os serviços públicos ainda carecem de uma melhor regulamentação e procedimentos de segurança sobre os procedimentos específicos que garantem a integridade do processo digital, aumentando o risco de fraudes e o uso indevido dessas tecnologias, como evidenciado pela proibição da assinatura digital Gov.br pela Jucemat.

Impacto da AEV e o processo notarial

O Decreto nº 10.543/2020 [4], que regulamenta o uso de assinaturas eletrônicas no âmbito da administração pública federal, restringe expressamente sua aplicação às interações com entes públicos federais. Ou seja, a utilização da assinatura digital para contratos entre particulares ou para procurações destinadas a processos judiciais não encontra respaldo normativo direto, exceto quando formalmente aceitas pelas partes ou reconhecidas por outros meios legais. Este dispositivo é um exemplo de como a legislação ainda não está exatamente conforme para garantir a efetiva aplicação da assinatura digital em contextos privados.

Spacca

Essa limitação legal traz implicações sérias sobre a eficácia e aplicabilidade dos documentos assinados digitalmente por meio da plataforma gov.br. Na prática, isso significa que um contrato entre particulares assinado por meio da conta gov.br — mesmo com testemunhas — pode não ser considerado título executivo. E ainda que seja válido como um contrato, sua força probatória ou executividade poderá ser contestada, dependendo da exigência de forma legal específica que não tenha sido atendida pelo sistema. Tal situação pode vir a exigir uma segunda camada de autenticação, seja por um notário, seja por outra solução válida e plenamente aceita.

No campo do direito processual, a questão se torna ainda mais delicada. A assinatura eletrônica no âmbito do processo judicial precisa estar em conformidade com as exigências processuais estabelecidas pelo Código de Processo Civil (CPC) e outras normas regulatórias. A jurisprudência, em alguns casos, já questionou a adequação da assinatura eletrônica emitida pelo gov.br para a prática de atos processuais, principalmente quando se trata de procurações. Isso evidencia a necessidade de uma revisão mais detalhada da regulamentação e do reconhecimento jurídico desses atos.

A digitalização dos serviços públicos no Brasil tem se mostrado uma das estratégias mais importantes para modernizar a administração pública, aumentar a eficiência e simplificar a interação entre cidadãos e o governo. Exemplos como a assinatura eletrônica e a AEV (Autorização Eletrônica de Viagem) para menores desacompanhados refletem esse movimento de inovação no setor público. Porém, mesmo com esses avanços significativos, a digitalização não está isenta de desafios e limitações que precisam ser discutidos e compreendidos, principalmente nas questões de inclusão digital, segurança jurídica e a falta de regulamentação adequada para garantir a eficácia desses sistemas.

A conformidade com as exigências legais e a aplicação dos sistemas digitais de forma uniforme em todo o país é outro desafio. O sistema de AEV, implementado de maneira digital, só é eficaz se todas as partes envolvidas, tanto responsáveis pelos menores quanto autoridades competentes, tiverem acesso à tecnologia necessária e a um entendimento básico de como utilizar as plataformas online. Além disso, a transição de um sistema físico para um digital pode criar inseguranças nas partes que não estão familiarizadas com as novas normas de digitalização.

É necessário considerar que o uso de sistemas digitais ainda não elimina por completo os desafios relacionados à autenticidade e à confiança nos documentos emitidos. A tecnologia tem avançado, mas ainda carecemos de mecanismos mais sólidos para garantir a total confiança nas plataformas digitais utilizadas, especialmente quando a segurança jurídica está em jogo.

Potencial da digitalização na melhoria da eficiência pública

Apesar das limitações e desafios, é inegável que a digitalização dos serviços públicos traz benefícios consideráveis em termos de eficiência e acessibilidade. A assinatura eletrônica, por exemplo, permite que processos sejam realizados de forma mais rápida e com menos custos, o que contribui para a redução da burocracia e a agilidade na prestação de serviços. No entanto, para que esses benefícios sejam efetivamente percebidos pela população, é fundamental que as soluções digitais sejam bem regulamentadas, acessíveis e seguras, para evitar que a exclusão e a insegurança jurídica comprometam os avanços.

Por isso, a digitalização de tais serviços deve ser vista como um passo necessário para a modernização do setor público. No entanto, essa transição não deve ocorrer de forma desorganizada ou sem considerar as limitações legais e tecnológicas que ainda existem. Para que a digitalização seja bem-sucedida, ela precisa ser implementada de maneira equilibrada, levando em consideração as necessidades da população e a capacitação dos profissionais envolvidos.

A digitalização exige, portanto, a oferta de ferramentas acessíveis e também a capacitação para as utilizar de forma eficiente. Para garantir tal eficácia da digitalização no Brasil, é necessário que se adote uma abordagem mais harmonizada e clara em relação à legislação que regula a utilização de assinaturas eletrônicas e outros mecanismos digitais. A criação de um marco regulatório mais robusto e abrangente ajudaria a evitar disputas sobre a validade e a aplicabilidade desses instrumentos jurídicos, garantindo segurança e confiança nas transações digitais.

Conclusão

A digitalização dos serviços públicos no Brasil representa um avanço significativo para a modernização da administração pública, proporcionando maior eficiência e acessibilidade para cidadãos e empresas. No entanto, a implementação dessas tecnologias deve ser acompanhada por uma regulamentação clara e consistente, garantindo segurança jurídica e acessibilidade a todos. A falta de uniformidade na aceitação da assinatura eletrônica, como demonstrado pelas recentes decisões do CNJ e da Jucemat, evidencia a necessidade de aprimoramento na normatização e fiscalização desses sistemas.

Além disso, os desafios relacionados à inclusão digital não podem ser ignorados. Muitos cidadãos ainda enfrentam dificuldades no acesso a plataformas digitais, seja por falta de familiaridade com a tecnologia ou por limitações na infraestrutura de internet em determinadas regiões do país. Sem medidas que promovam a capacitação e o acesso universal às ferramentas digitais, a digitalização pode, paradoxalmente, gerar exclusão, ao invés de inclusão, ampliando desigualdades sociais e dificultando o exercício de direitos fundamentais.

Outro aspecto crítico é a segurança dos documentos assinados eletronicamente. Embora as assinaturas digitais tragam vantagens em termos de agilidade e desburocratização, sua aceitação ainda encontra resistência em alguns contextos, especialmente no setor privado e em atos processuais. A ausência de uma regulamentação mais detalhada pode gerar insegurança jurídica, levando a questionamentos sobre a validade desses documentos e comprometendo a confiança nas transações digitais.

Diante desse cenário, é fundamental que o setor público e as instituições jurídicas trabalhem em conjunto para criar um marco regulatório sólido e uniforme para a digitalização dos serviços públicos. Isso inclui não apenas a padronização do uso das assinaturas eletrônicas, mas também a implementação de medidas de segurança mais rigorosas, além da promoção de políticas públicas voltadas à educação digital e ao aprimoramento da infraestrutura tecnológica do país.

A digitalização dos serviços públicos deve ser encarada como um processo contínuo de aprimoramento, que exige adaptação, investimento e fiscalização. A modernização não pode ocorrer de maneira desorganizada e tão descentralizada, nesse primeiro momento, sob o risco de comprometer sua eficácia e credibilidade. Com planejamento adequado e um marco regulatório bem definido, é possível garantir que a transformação digital traga benefícios reais para a sociedade, promovendo uma administração pública mais ágil, segura e acessível a todos.

 


[1] GOVERNO FEDERAL. Lei Nº 14.063, de 23 de setembro de 2020. Disponível  aqui.

[2] MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARANÁ. CNJ decide que a assinatura eletrônica efetuada por certificado digital não se aplica aos procedimentos de autorização de viagem de menores de 16 anos desacompanhados. Disponível aqui.

[3] SECOM. Jucemat não aceitará mais assinaturas digitais pelo portal gov.br a partir de 19 de fevereiro. Disponível aqui

[4] GOVERNO FEDERAL Decreto Nº 10.543, de 13 de novembro de 2020. Disponível aqui.

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  • é pesquisadora no Legal Grounds Institute, bacharel em Direito pelas Universidades de Camerino (Itália) e Universidade de São Paulo (Brasil), pesquisadora nas áreas de Proteção de Dados e Direito Notarial durante a Graduação, especialista em Direito da Propriedade Intelectual pela ESA OAB SP e Privacidade e Proteção de Dados pela ABPI-Ceduc e advogada atuante na área de Direito Digital e Propriedade Intelectual.

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