Opinião

Proibição de acompanhante durante o parto deve ser justificada

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14 de maio de 2025, 15h17

Infelizmente, a realidade da obstetrícia no Brasil ainda está muito distante do modelo de parto humanizado. Os casos de celebridades que vêm sendo expostos recentemente na imprensa são apenas a ponta do iceberg de um país em que a violência obstétrica atinge 30% das mulheres na rede privada e 45% das mulheres na rede pública, segundo pesquisas da Fiocruz. [1]

Diante desse contexto, a presença de um acompanhante durante o trabalho de parto é importante para evitar que abusos sejam cometidos, desde episiotomia [2] de rotina até manobra de Kristeller [3].

Poucos anos após o caso da influenciadora digital Shantal Verdelho [4] tomar as manchetes, foi promulgada a Lei nº 14.737, promulgada em 2023, a qual passou a ser conhecida como a Lei do Acompanhante.

Ocorre que, na verdade, o direito ao acompanhante “durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato” já era garantido desde 2005 por força da Lei nº 11.108. A referida lei já permitia, pois, o acompanhante, sob qualquer circunstância, durante o trabalho de parto.

Brecha para proibir acompanhante

A nova legislação, porém, revogou a anterior, criando, como destacaram especialistas em direito das mulheres, uma “brecha” [5] para proibição de acesso por parte de acompanhantes. Isso porque, ao mesmo tempo que o novo texto ampliou o direito de acompanhante para “consultas, exames e procedimentos”, bem como “independentemente de notificação prévia”, o diploma legal, em seu artigo 19-J, §4º, possibilita a proibição de acompanhante em centros cirúrgicos e em unidades de terapia intensiva.

Art. 19-J. Em consultas, exames e procedimentos realizados em unidades de saúde públicas ou privadas, toda mulher tem o direito de fazer-se acompanhar por pessoa maior de idade, durante todo o período do atendimento, independentemente de notificação prévia.
(…)
§ 4º No caso de atendimento realizado em centro cirúrgico ou unidade de terapia intensiva com restrições relacionadas à segurança ou à saúde dos pacientes, devidamente justificadas pelo corpo clínico, somente será admitido acompanhante que seja profissional de saúde.

A exceção seria razoável se não fosse a realidade da obstetrícia brasileira, em que mais da metade dos partos são cesáreos, segundo dados do Ministério da Saúde [6]. Nessa esteira, o direito à acompanhante poderia tornar-se letra morta na obstetrícia na medida em que a maioria dos partos ocorre em centros cirúrgicos em razão da prevalência da modalidade cesariana em detrimento do parto vaginal, também conhecido como parto normal.

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É daí que a leitura atenta do dispositivo legal se torna relevante, segundo o qual a recusa de acompanhante deve sempre vir justificada pela equipe médica com base na saúde e segurança da paciente, e não de forma indiscriminada sempre que haja procedimento cirúrgico.

Tanto é assim que, em não conseguindo provar por qual razão médica foi negada a entrada do acompanhante no centro cirúrgico, o hospital, o médico e o plano de saúde poderão ser condenados solidariamente à indenização a título de danos morais.

Tribunais rígidos com restrição de acompanhante

Não por acaso, os tribunais têm sido bastante rígidos com a restrição ao acompanhante, considerando, p.ex.: que o “encaminhamento da parturiente à sala de cirurgia após dar início ao trabalho de parto, em virtude de sangramento, se mostra insuficiente para justificar a vedação da presença” [7] de acompanhante; que é “ilícita a conduta [de] impedir a permanência de acompanhante do sexo masculino” [8] ao fundamento de incômodo das demais pacientes; bem como que o “parto cesáreo de urgência, em concreto, não se configurou motivo suficiente a impedir presença do acompanhante“. [9]

Nada obstante, o ideal é que o diploma legal seja cada vez mais divulgado em sua completude a fim de incutir na cultura médica a ideia segundo a qual a presença de acompanhante em procedimentos médicos é a regra, devendo eventual restrição ser extremamente excepcional e devidamente justificada. Até porque nenhuma indenização compensará um pai por perder a oportunidade de testemunhar o nascimento de seu filho, fora, como supramencionado, a importância da presença do acompanhante como mecanismo inibidor de violências obstétricas.

O conceito de parto humanizado inclui a presença de acompanhante escolhido pela própria gestante, afinal “pesquisas recentes evidenciam que o acompanhamento da parturiente por um familiar durante o parto contribui para o bem-estar físico e emocional dessa mulher“. [10]

 


[1] O levantamento divulgado pelo jornal O Globo pode ser encontrado na reportagem disponível através do seguinte link.

[2] A episiotomia consiste em um corte no períneo para ampliar a abertura vaginal. O procedimento não é necessariamente incorreto, mas deve ser excepcional e sempre mediante ciência da parturiente.

[3] A manobra de Kristeller consiste em técnica ultrapassada e vedada pela OMS e pelo Ministério da Saúde através da qual pressiona-se a parte do útero da parturiente para tentar forçar a saída do bebê.

[4] O caso foi amplamente noticiado por diversos veículos, dentre os quais a GloboNews, conforme reportagem disponível a partir do seguinte link

[5] A expressão remete-se à reportagem publicada no jornal Intercept Brasil por Bruna de Lara, jornalista especializada em direito das mulheres. A matéria encontra-se no seguinte link

[6] A pesquisa foi divulgada no jornal da Universidade de São Paulo: aqui.

[7] TJRJ. Apelação cível nº 0002067-64.2019.8.19.0034. Des(a). Heleno Ribeiro Pereira Nunes. Julgamento: 22/08/2023. Quarta Câmara De Direito Privado.

[8] TJRJ. Apelação cível nº 0025148-48.2018.8.19.0011. Des(a). Renata Machado Cotta. Julgamento: 06/02/2023. Segunda Câmara De Direito Privado.

[9] TJSP. Apelação cível nº 1013150-83.2014.8.26.0602. Des (a). Piva Rodrigues. Julgamento: 26/03/2019. 9ª Câmara de Direito Privado.

[10] Dodou, H. D., Rodrigues, D. P., Guerreiro, E. M., Guedes, M. V. C., Lago, P. N. do ., & Mesquita, N. S. de .. (2014). A contribuição do acompanhante para a humanização do parto e nascimento: percepções de puérperas. Escola Anna Nery, 18(2), 262–269: aqui.

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