Opinião

PLP n° 108/2024 e as controvérsias do STF sobre o ITBI

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  • é advogado tributárista associado pela Charneski Advogados e pós-graduando em Direito Tributário pelo IBET-RS (Instituto Brasileiro de Estudos Tributários do Rio Grande do Sul).

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13 de maio de 2025, 20h42

O Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) apresenta particularidades relevantes quanto à definição do seu critério temporal na regra matriz de incidência tributária. A jurisprudência dominante estabelece que o fato gerador do tributo ocorre no momento da efetiva transmissão do imóvel que, conforme dispõe o artigo 1.245 do Código Civil, concretiza-se com o registro imobiliário. Esta interpretação decorre do artigo 110 do Código Tributário Nacional (CTN), segundo o qual a legislação tributária não pode alterar conceitos de direito privado utilizados pela Constituição para definir competências tributárias.

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No entanto, o próprio sistema normativo revela um paradoxo operacional. O CTN estabelece, em seu artigo 134, inciso IV, a responsabilidade tributária dos tabeliães e oficiais de registro, vedando a lavratura do registro sem a comprovação prévia do recolhimento do ITBI. Assim, na prática, configura-se uma sistemática em que o pagamento do tributo precede necessariamente o evento que, tecnicamente, constitui seu fato gerador.

Uma possível solução para este aparente conflito normativo seria a aplicação da antecipação presumida do fato gerador, com amparo no artigo 150, §7º da Constituição, que disciplina as limitações constitucionais ao poder de tributar. Importante destacar que o cerne da questão não é propriamente a cobrança antecipada pelo município, mas sim a exigência cartorária do pagamento como condição prévia ao registro imobiliário.

Nesse sentido, o Projeto de Lei Complementar nº 108/2024 propõe alterações significativas ao tratamento do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), sobretudo quanto ao momento de ocorrência do fato gerador e à base de cálculo tributada.

Este artigo propõe-se a analisar as controvérsias e os impactos decorrente desta inovação legislativa, considerando também os precedentes qualificados estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal nos Temas 796, 1.124 e 1.348, que consolidaram entendimentos essenciais para a aplicação e interpretação do ITBI no ordenamento jurídico pátrio.

Controvérsias do PLP n° 108/2024 sobre o ITBI

O PLP nº 108/2024 abre caminho para que os municípios e o Distrito Federal possam, de forma opcional, antecipar a cobrança do ITBI. Conforme denota-se do acréscimo ao art. 35-A do CTN:

Art. 35-A. Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento da celebração do ato ou título translativo oneroso do bem imóvel ou do direito real sobre bem imóvel.

Na prática, o contribuinte teria a faculdade de pagar o imposto já quando formalizado o negócio — seja por meio da lavratura de escritura pública ou de instrumento particular equivalente. Observa-se que a incorporação da locução “por ato oneroso” no artigo 35 do CTN — estendendo-se também à nomenclatura oficial do tributo — representa meramente uma adequação ao dispositivo constitucional estabelecido no artigo 156, inciso II, da Constituição.

A ocorrência do fato gerador seria deslocada para o instante da formalização do negócio jurídico oneroso que tenha por objeto a transferência de propriedade imobiliária ou direitos a ela vinculados, independentemente da posterior realização do ato solene de registro exigido pela legislação civil para a efetiva constituição ou transferência dos direitos reais. Esta norma conflitará com o entendimento sedimentado no Tema 1.124 do STF, que aguarda novo julgamento sobre a incidência do ITBI na cessão de direitos antes da transferência formal, após cancelamento da tese anterior por “confusão processual”.

Além disso, o texto do projeto confere aos entes federativos a possibilidade de estabelecer alíquotas diferenciadas, potencialmente mais baixas, para este momento antecipatório, a fim de estimular o pagamento do contribuinte através deste regime diferenciado.

Adicionalmente, por meio da introdução do artigo 38-A no CTN, o PLP n° 108/2024, legitima o uso do valor de referência (pauta fiscal) para fins de base de cálculo do ITBI, determinando que seja considerado o maior entre o valor de referência e o valor da transmissão:

Art. 38-A. Considera-se valor venal, para fins do disposto no art. 38, o valor de referência ou o valor da transmissão, o que for maior, do bem imóvel ou dos direitos reais sobre bem imóvel.

(…)

§ 3º Havendo discordância do valor de referência, caberá ao contribuinte comprovar o correto valor de mercado, por meio de procedimento específico, nos termos da legislação municipal ou distrital.

Esta inovação revoga na prática o entendimento do Tema 1.113 do STJ, que atribuía ao valor declarado pelo contribuinte presunção de conformidade com o valor de mercado, ilidível somente por processo administrativo próprio.

Julgamento do Tema 796 e seus reflexos

No RE 796.376/SC (Tema 796), o STF firmou a tese de que a imunidade do ITBI alcança a integralização de capital social com bens imóveis até o limite do capital subscrito, não incidindo o imposto sobre esse valor. Contudo, a Corte deixou claro que a discussão se circunscreveu ao caso específico da criação de reserva de capital, não autorizando a tributação de qualquer diferença entre valor venal e valor integralizado. Após o julgamento, muitos municípios e tribunais estaduais passaram a aplicar interpretações extensivas, cobrando o ITBI sobre a diferença entre valor venal e valor declarado, o que excede o escopo do Tema 796.

Tema 1.124: ITBI na cessão de direitos de registro

O Tema 1.124 do STF, em repercussão geral, trata da incidência do ITBI na cessão de direitos de compra e venda na ausência de transferência efetiva pelo registro imobiliário. Em 2021, o STF havia fixado a tese de que o fato gerador só ocorre com o registro, mas anulou posteriormente essa decisão por “confusão processual”, mantendo a repercussão geral e deixando a questão em aberto para novo julgamento. A definição dessa tese impactará diretamente a regra prevista no PLP nº 108/2024 sobre o momento do fato gerador.

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Com o tema ainda sob análise de mérito, mantêm-se suspensas todas as execuções tributárias que cobrem ITBI em cessões de direitos não registradas, causando forte impacto sobre a aplicação do artigo 35-A do CTN, que fixa o fato gerador na celebração do contrato translativo. A definição final pelo STF determinará se o novo dispositivo legislativo deverá ser interpretado de forma a incluir ou excluir as cessões de direitos do campo de incidência imediata do ITBI, influenciando diretamente as estratégias de planejamento tributário e societário nas transações imobiliárias, o que trará implicações decisivas para a validade do artigo 35-A do CTN proposto pelo PLP 108/2024.

Tema 1.348: imunidade para integralização de capital em empresas imobiliárias

O Tema 1.348, reconhecido em novembro de 2024, discute se a imunidade do ITBI prevista no artigo 156, § 2º, I, da Constituição, a qual não incide sobre bens ou direitos incorporados ao capital social, permanece aplicável quando a atividade preponderante da empresa for a compra, venda ou locação de imóveis. O relator do caso, ministro Luís Roberto Barroso, no RE 1.495.108, enfatizou a necessidade de um posicionamento claro para pacificar divergências sobre a aplicação dessa imunidade às holdings imobiliárias e sociedades patrimoniais, destacando sua relevância para a segurança jurídica dos contribuintes e para o regime de arrecadação dos municípios.

O ministro observou que, embora o STF já tenha reconhecido a imunidade do ITBI na integralização de capital sem condicioná-la à atividade preponderante, persistem questionamentos judiciais sobre o alcance dessa imunidade em casos de empresas cujo negócio principal envolve imóveis, o que torna imperiosa uma tese uniforme sob repercussão geral. A decisão terá aplicação obrigatória a todos os tribunais inferiores, criando parâmetros objetivos que reduzam a incerteza jurídica e orientem o planejamento societário de forma transparente.

Perspectivas e impactos práticos

A interação entre o PLP nº 108/2024 e os precedentes do STF suscita importantes reflexões no âmbito tributário. Quanto à segurança jurídica, nota-se que a coexistência das novas disposições normativas com os entendimentos jurisprudenciais consolidados poderá gerar instabilidade, especialmente na definição do momento do fato gerador e dos critérios para apuração da base de cálculo do ITBI, exigindo esforço interpretativo dos tribunais para harmonizar dispositivos aparentemente conflitantes.

No planejamento patrimonial, as empresas e pessoas físicas que utilizam a integralização de imóveis ao capital social necessitarão acompanhar o julgamento do Tema 1.348 pelo STF para ajustar suas estruturas societárias e evitar contingências tributárias imprevistas. A indefinição sobre os contornos da imunidade constitucional nestas operações demanda cautela nas reorganizações empresariais envolvendo patrimônio imobiliário.

Em relação à arrecadação municipal, a facultatividade da antecipação do fato gerador e a possibilidade de adoção de pauta fiscal para avaliação dos imóveis tendem a favorecer o incremento das receitas, embora possam também estimular demandas judiciais por contribuintes insatisfeitos, potencialmente comprometendo parte dos ganhos arrecadatórios pretendidos.

Por fim, as administrações municipais enfrentarão o desafio de revisar suas legislações locais referentes ao ITBI para garantir conformidade com o novo PLP e com a jurisprudência do STF. A ausência desta adequação normativa poderá resultar em contencioso administrativo e judicial oneroso, afetando a eficiência arrecadatória e a legitimidade da exação, sendo crucial uma atuação preventiva das Procuradorias na adaptação legislativa.

O PLP nº 108/2024 introduz alterações profundas no ITBI ao contemplar antecipação facultativa, fixar o momento do fato gerador na escritura pública e legitimar a pauta fiscal como base de cálculo. Essas mudanças necessitarão caminhar lado a lado com o STF, que vem qualificando a imunidade e a incidência desse imposto por meio dos Temas 796, 1.124 e 1.348. O resultado dos julgamentos pendentes será crucial para consolidar a segurança jurídica e orientar a atuação de legisladores, municípios e contribuintes. A busca por um equilíbrio entre simplificação tributária, autonomia municipal e proteção do contribuinte continua no centro do debate sobre o futuro do ITBI.

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  • é advogado tributárista, associado pela Charneski Advogados e pós-graduando em Direito Tributário pelo IBET-RS (Instituto Brasileiro de Estudos Tributários do Rio Grande do Sul).

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