Limite temporal para prorrogação da pena de suspensão prevista no art. 37, § 2º do Estatuto da Advocacia
13 de maio de 2025, 19h40
A Lei nº 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia e OAB — EAOAB) prevê, no artigo 37, § 2º, que a pena de suspensão aplicada contra o advogado, no caso de infração à norma do artigo 34, XXI [1], “perdura até que satisfaça integralmente a dívida, inclusive com correção monetária”.
A condicionante prevista no artigo 37, § 2º, EAOAB, pode ser chamada de cláusula de prorrogação ou sanção secundária, e não se confunde com a própria suspensão, enquanto sanção primária, cujo prazo máximo está previsto no § 1º do mesmo artigo [2].
O prazo de suspensão previsto no artigo 37, § 1º, EAOAB, corresponde ao prazo mínimo da pena primária, que pode variar de 30 dias a 12 meses, e tem por hipótese de incidência a prática de uma infração disciplinar sujeita à pena de suspensão.
Já a pena secundária tem hipótese de incidência substancialmente diversa, consistente na existência de uma dívida civil do advogado em relação ao seu antigo cliente.
Do ponto de vista hermenêutico ou da aplicação do direito, não deve ser imposto o limite de 12 meses da pena primária de suspensão (artigo 37, § 1º) à cláusula de prorrogação (artigo 37, § 2º), porque os dispositivos possuem escopos diferentes: um, a existência de uma infração disciplinar; o outro, a existência de uma dívida civil. Além disso, se o § 2º excepciona o § 1º, não há rigor técnico em impor ao § 2º o mesmo regime do § 1º.
Suspensão até pagamento da dívida
A prorrogação ou ampliação da pena de suspensão até o pagamento da dívida não é uma escolha do intérprete ou do aplicador da lei, mas uma determinação legal explícita, em relação à qual ele não pode transigir, embora possa (e deva) harmonizar o dispositivo com o sistema jurídico.
Enquanto a maior parte dos casos de suspensão está submetida a prazos fixos, observando-se os limites legais, a suspensão aplicada por força da recusa injustificada de prestação de contas ao cliente submete-se a uma condição resolutiva (o pagamento integral da dívida).

Ainda que se entenda uma eventual prorrogação indefinida da pena de suspensão como ofensiva à vedação constitucional de penas de caráter perpétuo (CF, artigo 5º, XLVII, ‘b’), a estipulação de um limite temporal não poderá ser feita livremente pelo aplicador e intérprete da lei, sob pena de subverter a separação de poderes e disciplinas basilares do estudo jurídico, como a teoria das fontes do direito, critérios de hermenêutica, aplicação e integração do direito.
A Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei n. 4.657/1942) estabelece, em seu artigo 4º, que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.
Admitindo-se que o artigo 37, § 2º, EAOAB, à luz da vedação constitucional de penas perpétuas, tenha sido omisso, em estipular um prazo máximo para a prorrogação da pena de suspensão, o primeiro recurso a ser utilizado para a solução da questão deve ser a analogia.
Analogia a princípios gerais do direito
Sobre a analogia, o então advogado Luís Roberto Barroso [3], atual presidente do Supremo Tribunal Federal, ao defender as uniões homoafetivas como entidades familiares, tese que viria a sagrar-se vencedora no STF, consignou que “a analogia consiste na aplicação de uma norma jurídica concebida para uma dada situação de fato a outra situação semelhante, mas que não fora prevista pelo legislador”. Disse, ainda, que a analogia, enquanto mecanismo de integração da ordem jurídica, deve ser utilizada nos casos de omissão ou lacuna da lei: “Na omissão ou lacuna da lei, deve o juiz recorrer à analogia, aos costumes e aos princípios gerais do Direito.”
No mesmo sentido, decidiu o STJ (Superior Tribunal de Justiça) que “estando o juiz diante de uma omissão legislativa, deve fazer uso dos meios de integração da norma — dentre os quais, preliminarmente, a analogia (artigo 4º da Lindb)” (REsp n. 656.952/DF, rel. Antonio Carlos Ferreira, j. 2/6/2016).
Conforme Carlos Maximiliano, “a analogia consiste em aplicar a uma hipótese não prevista em lei a disposição relativa a um caso semelhante” [4]. Ou seja, “existe um dispositivo legal; surge uma dúvida não resolvida diretamente pelo texto explícito; decide o juiz orientado pela presunção de que o desenvolvimento de um preceito leve a verdadeiros corolários jurídicos, a consequências que tenham moral afinidade com a norma positiva; aplica ao caso novo a regra fixada para outro, semelhante àquele” [5].
A aplicação da analogia exige que entre as normas (o dispositivo legal omisso e aquele que servirá de parâmetro) haja a mesma razão, o mesmo fundamento. Ensina Maximiliano: “Descoberta a razão íntima, fundamental, decisiva de um dispositivo, o processo analógico transporta-lhe o efeito e a sanção a hipóteses não previstas, se nelas se encontram elementos idênticos aos que condicionam a regra positiva. Há, portanto, semelhança de casos concretos e identidade de substância jurídica [6].”
Processo analógico
Diante das lições acima, é possível estabelecer para um correto processo analógico os requisitos abaixo, relacionando-os com a situação em análise:
- Omissão ou lacuna da lei: há uma lacuna, ainda que parcial, no que tange à fixação de um limite temporal expresso para a prorrogação da pena de suspensão, considerando o regime de prescrição da dívida;
- Dúvida não resolvida diretamente pelo texto explícito: o texto literal do artigo 37, § 2º, EAOB, não sana a dúvida acerca do prazo máximo para a prorrogação da suspensão;
- Similitude entre os casos tratados e identidade de substância jurídica: os casos tratados no artigo 37, § 2º, e 25-A, ambos do EAOAB, são similares, pois expressam situações decorrentes da ausência de prestação de contas (artigo 34, XXI, EAOAB). Já o artigo 206, § 5º, I, do CC, apresenta a mesma substância jurídica do artigo 37, § 2º, EOAB, pois trata justamente da prescrição da pretensão de cobrança de dívidas, enquanto o dispositivo do EAOAB fala em satisfação integral da dívida.
A analogia buscada para integrar o comando do artigo 37, § 2º, EAOAB, não pode ser alcançada com a utilização do § 1º do mesmo artigo, pois as suas substâncias jurídicas são fundamentalmente distintas e o § 2º excepciona o § 1º. Como já dito, um fala da existência de uma infração disciplinar (§1º), o outro trata da existência de uma dívida civil (§2º).
Saliente-se que o caso atrai a analogia legis, quando se recorre a dispositivo legal que regula um caso semelhante, e não a analogia juris, quando não existe qualquer dispositivo aplicável à espécie e se recorre a um “complexo de princípios jurídicos, à síntese dos mesmos, ao espírito do sistema inteiro” [7]. Logo, não seria correto resolver a questão com a simples alusão a princípios jurídicos, estabelecendo-se um prazo arbitrário como limite temporal para a sanção secundária.
Na esteira do exposto, o órgão especial do CFOAB, ao ser consultado recentemente sobre a cláusula de prorrogação da suspensão, respondeu, à unanimidade, que ela está limitada ao prazo de cinco anos, com base no artigo 25-A do EAOAB:
“A sanção de suspensão, nos termos do artigo 37, §2º, do EAOAB, quanto a prestação de contas (artigo 34, inciso XXI, do EAOAB), tem seu efeito aplicado supletivamente por prazo indeterminado, até que seja satisfeita integralmente a dívida, no prazo limitado de 5 (cinco) anos, quando prescreverá a pretensão do cliente pra a prestação de contas, conforme artigo 25-A, do Estatuto da Advocacia e da OAB.” (Consulta 49.0000.2022.012594-0/OEP, Rel. Jose Augusto Araujo de Noronha, j. 20/8/2024)
Em sentido semelhante, em 2023, o CFOAB já havia decidido pelo limite de cinco anos, com uma fundamentação mais ampla, abrangendo tanto o artigo 25-A do EAOAB quanto o artigo 206, § 5º, do CC:
“(…) Suspensão do exercício profissional. Recusa injustificada à prestação de contas. Prorrogação da suspensão. Limitação temporal. Prescrição civil. Ônus da parte interessada. (…) o artigo 37, § 1º, do Estatuto da Advocacia e da OAB, estabelece os parâmetros para fixação do prazo de suspensão do exercício profissional, dispondo que, na fase da dosimetria – e de acordo com as circunstâncias judiciais e critérios de individualização (EAOAB, art. 40) -, o julgador restará limitado à fixação do prazo mínimo de 30 (trinta) dias e máximo de 12 (doze) meses de suspensão do exercício profissional, podendo ser ultrapassado esse prazo, por certo, nos casos em que determinada a prorrogação da suspensão até a satisfação integral da dívida (EAOAB, art. 37, § 1º), hipótese dos autos. Não obstante, no tocante à prorrogação da suspensão do exercício profissional, no caso de condenação por infração disciplinar de recusa injustificada à prestação de contas (EAOAB, art. 34, XXI), efetivamente, o limite temporal para a prorrogação da suspensão restará vinculado ao prazo prescricional civil para a cobrança da dívida pela parte interessada, seja o disposto no § 5º do artigo 206 do Código Civil, que determina o prazo de cinco anos para a cobrança de dívidas fundadas em instrumento público ou particular, seja o disposto no artigo 25-A do Estatuto da Advocacia e da OAB, que fixa o prazo de cinco anos para o cliente ajuizar a ação judicial de prestação de contas em face do advogado. De fato, a prorrogação da suspensão do exercício profissional poderá cessar, a qualquer tempo, cumprido o tempo mínimo de suspensão fixado na condenação e satisfeita a dívida integralmente, ou, cumprido o tempo mínimo de suspensão fixado na condenação e demonstrado pela parte interessada, de forma inequívoca, a prescrição do crédito do cliente, por se tratar de fato extintivo do direito do cliente (CPC, art. 350). Assim, o ônus da prova da comprovação da prescrição civil do crédito do cliente, de modo a ensejar a cessação da prorrogação da suspensão do exercício profissional incumbirá a quem a alegar, no caso, ao advogado recorrente, não se presumindo a prescrição da dívida apenas pelo decurso do tempo, em razão da existência de causas que interrompem a prescrição (CC, art. 202). No presente caso, porquanto não demonstrada a prescrição do crédito pela parte interessada, em seu pedido de revisão, não há que se acolher a pretensão ao afastamento da prorrogação da suspensão.” (Recurso 25.0000.2020.000002-1/OEP, Rel. Luiz Viana Queiroz. Rel. ad hoc Milena da G. F. Canto, Relatora ad hoc., j. 18/3/2023)
Limites da pena primária de suspensão
No julgado acima, o CFOAB fez referência expressa aos limites temporais da pena primária de suspensão, estabelecidos no artigo 37, § 1º, EAOAB, mas nem sequer cogitou da aplicação deles à hipótese normativa do § 2º (prorrogação da suspensão). Além disso, ressaltou que o simples decurso do tempo não presume a prescrição da dívida, em razão da possibilidade de existência de alguma causa interruptiva da prescrição (CC, artigo 202), sendo do advogado apenado o ônus da prova da comprovação da prescrição civil do crédito do cliente, a ensejar a cessação da prorrogação da pena de suspensão.
Agiu com acerto o CFOAB. Se a dívida está prescrita, não se pode mais exigir a sua satisfação integral. Por esse motivo, foi utilizado o prazo de cinco anos como limite temporal, pois ele é o prazo prescricional da dívida, além de ser o prazo prescricional para a ação de prestação de contas. Essa solução, ao mesmo tempo que preserva a exigência legal de prorrogação da suspensão até o pagamento integral da dívida, harmoniza o dispositivo com o regime prescricional civil, pois não seria lógico continuar exigindo do advogado o pagamento de uma dívida prescrita, como requisito para a cessação da prorrogação da pena.
Por outro lado, a adoção de um prazo menor, como limite temporal à prorrogação da suspensão, seria arbitrária, porque permitiria a extinção da suspensão mesmo ainda existindo uma dívida exigível (não prescrita), o que seria uma clara afronta à lei. É evidente que o prazo de 12 meses (artigo 37, 1º, EAOAB) diz respeito ao prazo da própria pena de suspensão, e não da sua prorrogação, que está previsto em outro parágrafo, com fundamento absolutamente distinto.
A solução que adota o limite de 5 (cinco) anos respeita a finalidade da norma constante do artigo 37, § 2º, EAOAB, que consiste justamente em manter a suspensão do advogado enquanto houver uma dívida civil exigível.
Seja para autores clássicos, como Carlos Maximiliano, ou para autores mais modernos, princípios, doutrina e jurisprudência não autorizam reescrever a lei ao gosto do intérprete.
A aplicação da analogia deve ser feita com muito cuidado. Por isso, é bastante oportuna a advertência feita por Maximiliano, no sentido de que “o processo analógico … não cria direito novo; (…). O magistrado que recorre à analogia, não age livremente” [8]; “O manejo acertado da analogia exige, da parte de quem a emprega, inteligência, discernimento, rigor de lógica; não comporta uma ação passiva, mecânica. O processo não é simples, destituído de perigo; facilmente conduz a erros deploráveis o aplicador descuidado” [9].
Caso se entenda que a situação analisada não configura propriamente analogia, mas sim interpretação sistemática, a conclusão adotada — conforme decidido pelo CFOAB [10] — permanece a mesma. Assim, aplicar o limite temporal de cinco anos à prorrogação da suspensão pode ser compreendido como uma interpretação sistemática do EAOAB, em consonância com as regras de prescrição do ordenamento jurídico brasileiro, visando uma solução harmônica que respeite tanto a finalidade da norma quanto a segurança jurídica.
[1] Art. 34: XXI – recusar-se, injustificadamente, a prestar contas ao cliente de quantias recebidas dele ou de terceiros por conta dele.
[2] Art. 37: § 1º A suspensão acarreta ao infrator a interdição do exercício profissional, em todo o território nacional, pelo prazo de trinta dias a doze meses.
[3] BARROSO, Luís Roberto. Diferentes, mas iguais: o reconhecimento jurídico das relações homoafetivas no Brasil. 13 de junho de 2007. Revista eletrônica Migalhas. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/40507/diferentes–mas-iguais–o-reconhecimento-juridico-das-relacoes-homoafetivas-no-brasil. Acesso em: 7/11/2024.
[4] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito – 21ª ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 190.
[5] MAXIMILIANO, Carlos. Op. cit., p. 191.
[6] MAXIMILIANO, Carlos. Op. cit., p. 191.
[7] MAXIMILIANO, Carlos. Op. cit., p. 192.
[8] MAXIMILIANO, Carlos. Op. cit., p. 195.
[9] MAXIMILIANO, Carlos. Op. cit., p. 193.
[10] “O artigo 37, § 2º, do Estatuto da Advocacia e da OAB, estabelece que, no caso de condenação disciplinar à sanção de recusa injustificada à prestação de contas (art. 34, XXI, EAOAB), a suspensão perdura até que satisfaça integralmente a dívida, inclusive, com a correção monetária. Entretanto, face à inadmissibilidade de penas de caráter perpétuo, efetivamente essa prorrogação deve estar submetida a limitação temporal, a qual, por força de interpretação sistêmica do ordenamento jurídico, deve se limitar ao prazo de 05 (cinco) anos, visto que o artigo 206, § 5º, inciso I, do Código Civil, fixa esse prazo prescricional para cobrança de dívidas líquidas constantes de instrumento público ou particular. Ademais, o artigo 25-A do Estatuto da Advocacia e da OAB dispõe que prescreve em cinco anos a ação de prestação de contas pelas quantias recebidas pelo advogado de seu cliente, ou de terceiros por conta dele (art. 34, XXI, EAOAB).” (CFOAB, Recurso n. 25.0000.2021.000133-0/SCA-TTU, Rel. Adriana Caribé Bezerra Cavalcanti, j. 18/10/2022)
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