Opinião

Trabalho digno na era da IA: um teste para os direitos humanos

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6 de maio de 2025, 18h30

A ascensão da inteligência artificial mudou de vez o mundo do trabalho. Com sistemas cada vez mais sofisticados, capazes de aprender, tomar decisões e até substituir atividades humanas, a IA vem transformando setores inteiros da economia — da saúde à logística, do atendimento ao cliente à indústria. Mas, junto com os ganhos em produtividade e eficiência, crescem as preocupações sobre o futuro dos trabalhadores e a preservação de um direito fundamental: o trabalho digno.

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OAB Nacional aprovou recomendações para uso de inteligência artificial regenerativa na prática da advocacia

O debate não é apenas econômico ou tecnológico, mas toca no coração dos direitos humanos, previstos em documentos como a Declaração Universal de 1948, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e reforçados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).

A ideia de trabalho digno vai além de emprego formal e salário-mínimo: envolve liberdade, igualdade, segurança, participação social, respeito à dignidade humana e oportunidades justas para todos. Aliás, desde o fim dos anos 1990, a OIT consolidou esse conceito na expressão “trabalho decente”, incorporada à Agenda 2030 da ONU como meta de desenvolvimento sustentável.

No entanto, o avanço da automação — impulsionado por big data, machine learning e robótica — vem criando cenários ambíguos. De um lado, há benefícios inegáveis: aumento de produtividade, substituição de atividades perigosas ou repetitivas, ampliação do acesso a serviços e maior precisão em tarefas complexas, como diagnósticos médicos. De outra banda, multiplicam-se os alertas sobre desemprego tecnológico, desigualdade social, informalidade e perda de proteção social.

Nova subordinação

O Fórum Econômico Mundial estima que, até 2025, cerca de 85 milhões de empregos serão eliminados, enquanto surgirão 97 milhões de novas funções. Mas essa transformação não atinge todos da mesma forma: trabalhadores com menos escolaridade, ocupados em funções operacionais, são os mais vulneráveis à substituição por máquinas. E, mesmo nas situações em que ainda existem os postos de trabalho, surge uma mudança inquietante, qual seja, os trabalhadores passam a ser monitorados e avaliados por algoritmos que definem metas, rotas e até demissões — muitas vezes sem supervisão humana ou possibilidade de contestação.

Exemplo emblemático é o dos trabalhadores de aplicativos de transporte e entrega. Sob a aparência de flexibilidade e autonomia, muitos vivem uma realidade marcada por metas inalcançáveis, instabilidade, insegurança financeira e ausência de direitos básicos como férias, 13º salário e previdência. Surgem daí novas formas de subordinação, em que o patrão não é uma pessoa, mas um algoritmo. Tal mudança esvazia a noção clássica de contrato de trabalho e dificulta a atuação sindical e a negociação coletiva, mesmo em razão do distanciamento físico dos trabalhadores.

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Outro desafio crítico é o da discriminação algorítmica. Estudos mostram que sistemas de seleção e recrutamento, se alimentados com dados históricos enviesados, reproduzem preconceitos de gênero, raça e idade. Um caso famoso ocorreu em empresa norte-americana, cujo software de triagem de currículos privilegiava candidatos homens, porque foi treinado com históricos de contratações predominantemente masculinas. O risco, portanto, não é apenas tecnológico, mas ético e social.

Debate sobre regulação

Em meio a essas transformações, a ausência de regulação adequada agrava o problema. No Brasil, ainda não existe uma legislação específica para lidar com a IA nas relações de trabalho. O Projeto de Lei nº 21/2020, que propõe um marco legal, avança lentamente no Congresso e tem abordagem genérica, sem foco robusto na proteção trabalhista. Enquanto isso, a reforma trabalhista de 2017 fragilizou direitos coletivos sem oferecer soluções para as novas formas de subordinação tecnológica.

No plano internacional, a OIT e a União Europeia vêm liderando o debate. A OIT defende uma transição justa, com políticas de requalificação, proteção social universal e fortalecimento das instituições de trabalho. Já a União Europeia está prestes a aprovar o AI Act, legislação pioneira que classifica sistemas de IA por níveis de risco e impõe regras rigorosas de transparência e supervisão, inclusive no contexto laboral.

Mas os desafios vão além das leis. É preciso fortalecer a atuação do Estado como regulador, garantir políticas de educação e qualificação profissional contínua, incluir trabalhadores de plataformas no sistema de proteção social e resgatar o papel do diálogo social e da negociação coletiva. Iniciativas como a renda básica universal também surgem no debate internacional como resposta às incertezas criadas pela automação, embora esbarrem em debates orçamentários e políticos complexos.

Conclusão

A inteligência artificial é uma ferramenta poderosa, mas não neutra. Ela reflete as intenções, prioridades e valores de quem a desenvolve, implementa e regula. Quando usada sem supervisão ética, pode ampliar desigualdades, precarizar relações de trabalho e desumanizar os trabalhadores, reduzindo-os a métricas impessoais. Sem garantias mínimas, corre-se o risco de que o futuro digital agrave as injustiças do presente, cristalizando a exclusão social, mormente com os debates atuais acerca da competência da Justiça do Trabalho e da caracterização da relação de trabalho.

Por isso, o debate sobre IA e trabalho não deve ser capturado apenas por especialistas em tecnologia, economistas e empresários. É um debate de toda a sociedade, envolvendo sindicatos, organizações sociais, governos e, principalmente, os próprios trabalhadores. O verdadeiro progresso não se mede apenas pela inovação das máquinas, mas pela capacidade de garantir que os avanços tecnológicos ampliem direitos, oportunidades e inclusão.

O futuro do trabalho será digital — mas para ser verdadeiramente humano, precisa ser também justo.

 


Referências bibliográficas

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