Da revisão do ato de tombamento dos Jardins e a reação dos moradores
6 de maio de 2025, 9h23
Em dezembro de 2024, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) aprovou proposta de revisão do ato de tombamento da região dos Jardins, área nobre da capital paulista. De acordo com as novas normas, passam a ser permitidas na área edificações de até três andares. A medida gerou imediata reação do Movimento Defenda São Paulo, que questionou judicialmente a medida e obteve liminar suspendendo o ato de revisão [1]. Mais recentemente, no final de abril de 2025, foi a vez da Associação AME Jardins ingressar com ação judicial pleiteando a anulação do ato [2].

O caso levanta importantes questões a respeito dos rumos da política urbana no município de São Paulo. Frequentemente, mudanças de rumo são tomadas sem muita transparência e diálogo com a sociedade civil, em afronta ao princípio da participação democrática. Nesse sentido, alterações de grande impacto devem ser precedidas de um amplo debate com toda a sociedade civil. Enfatiza-se toda a sociedade civil porque esse debate fica restrito aos segmentos organizados da sociedade: o setor imobiliário e as associações de moradores. Acabam ficando de fora da discussão grupos desorganizados titulares de direitos e interesses difusos.
Quanto à falta de transparência do poder público, há certa razão na crítica das entidades representativas quanto à forma como as mudanças são conduzidas pelos órgãos públicos. Entretanto, com relação ao conteúdo das mudanças, a discussão é mais complexa.
As entidades representativas dos moradores geralmente invocam argumentos de natureza ambiental para defender as normas de uso e ocupação de caráter mais restritivo. Partem da premissa de que o uso exclusivamente residencial unifamiliar é a melhor, senão a única, maneira de proteger o meio ambiente em uma “selva de pedra” como São Paulo. Nessa visão peculiar, São Paulo já possui uma população grande demais, e o adensamento construtivo e demográfico só poderia ser conseguido com a destruição da cobertura vegetal da região. Usualmente, os Jardins são descritos como “pulmão verde” da cidade que tem importante função no combate às ilhas de calor.
A argumentação de tom alarmista soa bastante convincente aos ouvidos de muitos veículos de mídia, administradores, legisladores e juízes. Pululam artigos de opinião denunciando a voracidade da “especulação imobiliária” e cobrando mais consciência e respeito aos limites físicos do planeta [3]. Decisões judiciais paralisam o andamento de obras com base em princípios e conceitos indeterminados aplicados de forma pouco consistente [4]. A gravidade do tema, no entanto, reclama uma discussão mais sóbria e profunda, com base em dados e evidências científicas e na experiência acumulada.
Comparativo
Como é de conhecimento geral, São Paulo é o município mais populoso do país e possui cerca de 11,4 milhões de habitantes, apresentando uma densidade demográfica média de 7.499 habitantes por quilômetro quadrado (ou 74,99 habitantes por hectare), segundo dados do último Censo [5].
Essa população, entretanto, está distribuída de forma desigual pelo território da cidade. Os “Jardins” são uma região da cidade que se situa entre os distritos de Pinheiros e Jardim Paulista. Trata-se de uma divisão territorial informal da cidade que não corresponde a uma subprefeitura ou a um distrito em particular. Os dados do Censo de 2022 revelam que o distrito de Pinheiros registra uma densidade demográfica de 7.831 habitantes por quilômetro quadrado (ou 78,31 habitantes por hectare). Por sua vez, a densidade demográfica do distrito do Jardim Paulista é de 13.233 habitantes por quilômetro quadrado (ou 132,33 habitantes por hectare).

Não há dados de densidade específicos para os Jardins justamente por se tratar de uma região informal, mas parece ser possível inferir que a densidade dos Jardins é muito menor do que a dos distritos de Pinheiros e do Jardim Paulista, visto que em tais distritos existem áreas com razoável grau de adensamento. A existência de regiões de baixa densidade como os Jardins acaba jogando a densidade demográfica média de seus distritos “para baixo”.
De todo modo, mesmo com essa ponderação, é proveitoso comparar tais dados com os de outros bairros do Brasil e do mundo conhecidos pela qualidade vida urbana [6]. No Brasil, temos o Leblon, cuja densidade demográfica é de 24 mil habitantes por quilômetro quadrado e é conhecido pelo ótimo grau de arborização, apresentando prédios que possuem geralmente oito andares.
Na Argentina, há o tradicional bairro da Recoleta, onde cerca de 190 mil moradores vivem em 5,4 quilômetros quadrados, o que equivale a uma densidade demográfica de 35 mil habitantes por quilômetro quadrado. No bairro portenho, cujo desenho urbano coube ao paisagista parisiense Charles Thays, há uma área verde a cada cinco quadras, perfazendo um total de dezoito. Em Nova York, encontramos o East Village, no famoso distrito de Manhattan. Com densidade de 32 mil habitantes por quilômetro quadrado, o bairro apresenta prédios com seis andares em média e tem em sua área 15 hortas comunitárias. Tais exemplos mostram que é possível, e até mesmo recomendável, encontrar um ponto de equilíbrio entre adensamento e áreas verdes, não sendo necessário escolher uma opção em detrimento da outra.
Dispersão e adensamento
A controvérsia em torno da revisão do tombamento dos Jardins expõe o embate entre duas grandes tendências no desenvolvimento urbano contemporâneo [7].
Uma delas é o espraiamento ou dispersão urbana. Esse modelo privilegia a ocupação de baixa densidade e a segregação de usos. Intuitivamente, seria possível pensar que esse é um modelo que causa menos impacto no meio ambiente. Numa perspectiva estritamente localista, o raciocínio pode até parecer verdadeiro. Porém, numa perspectiva mais ampla, que considera a cidade em sua totalidade, o impacto sobre o meio ambiente é brutal.
Como a terra urbana é um bem escasso, tal modelo leva ao crescimento horizontal das cidades, avançando em direção a áreas ambientalmente sensíveis como os mananciais. A dispersão ou espraiamento eleva o custo de serviços públicos, tais como a coleta de resíduos sólidos e o transporte público, e obriga a longos deslocamentos no trânsito, o que provoca um aumento das emissões de gases do efeito estufa [8].
A outra tendência da atualidade é o adensamento urbano. Cabe frisar, contudo, que não se trata de um adensamento ilimitado, mas sim de um adensamento controlado, que leva em conta os limites físicos do meio ambiente e a infraestrutura e os equipamentos públicos disponíveis. Otimizar a utilização das infraestruturas e equipamentos públicos já instalados é menos oneroso do que expandir as redes existentes. Contraintuitivamente, o adensamento urbano controlado gera economias de escala e de aglomeração, gerando benefícios para o meio ambiente. Não sem razão, na Nova Agenda Urbana firmada no âmbito da Conferência Habitat III, os países participantes, dentre eles o Brasil, firmaram o seguinte compromisso:
“98. Promoveremos o planejamento urbano e territorial integrado, incluindo expansões urbanas planejadas com base nos princípios do uso equitativo, eficiente e sustentável do solo e dos recursos naturais, da compacidade, do policentrismo, da densidade e conectividade adequadas, do uso misto do espaço, bem como do uso das áreas construídas combinando fins sociais e econômicos, no intuito de impedir a dispersão urbana, reduzir os desafios e as necessidades de mobilidade e os custos per capita de fornecimento de serviços e aproveitar a densidade e as economias de escala e de aglomeração, quando pertinente.”
Em âmbito local, seguindo o caminho delineado pela Habitat III, o artigo 27, XVII, do Plano Diretor Estratégico (PDE) do Município de São Paulo estabeleceu como diretriz para a revisão da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (LPUOS) “promover o adensamento construtivo e populacional e a concentração de usos e atividades em áreas com transporte coletivo de média e alta capacidade instalado e planejado”.
Por sua vez, o artigo 6º, I e II, da LPUOS estabelece os territórios de transformação e de qualificação, respectivamente, procurando direcionar a produção imobiliária para essas regiões. Os territórios de transformação são definidos como “áreas em que se objetiva a promoção do adensamento construtivo, populacional, atividades econômicas e serviços públicos, a diversificação de atividades e a qualificação paisagística dos espaços públicos de forma a adequar o uso do solo à oferta de transporte público coletivo”. Já os territórios de qualificação “áreas em que se objetiva a manutenção de usos não residenciais existentes, o fomento às atividades produtivas, a diversificação de usos ou o adensamento populacional moderado, a depender das diferentes localidades que constituem estes territórios”.
Possibilidade de conciliação
Por decisão política discricionária e não técnica, o legislador municipal privilegiou a região dos Jardins, excluindo-a da diretriz geral do adensamento aplicável a outras áreas da cidade. Nessa matéria, chama a atenção, ainda, o fato de que o artigo 59 do PDE permita a promoção de empreendimentos de habitação de interesse social, que deveriam ser destinados à população de baixa renda [9], em todo o território municipal, mas não em Zonas Exclusivamente Residenciais de baixa densidade (ZER-1), dentre as quais se inserem os Jardins. É pouco provável que empreendimentos desse tipo fossem realizados nos Jardins se a norma do artigo 59 do PDE não existisse, uma vez que os preços dos lotes tendem a torná-los inviáveis do ponto de vista econômico. Contudo, uma coisa é a inviabilidade do empreendimento por razões econômicas, outra coisa é a proibição ser instituída por norma jurídica [10].
Esse regime jurídico diferenciado aplicável aos Jardins é justificado em grande medida com base na suposição de que o uso exclusivamente residencial unifamiliar é um mecanismo eficiente de proteção do meio ambiente. A experiência comparada mostra que é possível conciliar adensamento construtivo e demográfico com abundantes áreas verdes. A revisão proposta pelo Condephaat se limita a permitir edifícios de até três andares. Ao contrário do alarmismo disseminado, ela não libera arranha-céus como aqueles que preenchem a orla de Balneário Camboriú. Trata-se de medida razoável, ainda que exageradamente tímida a nosso ver [11], mas que está em consonância com o observado em outros bairros mundialmente reconhecidos por sua vitalidade e qualidade de vida urbana.
* O texto reflete a opinião pessoal do autor, e não a posição institucional de quaisquer órgãos da Administração Pública do Município de São Paulo.
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[1] https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2024/12/21/justica-de-sp-derruba-revisao-de-tombamento-que-autoriza-construcao-de-condominios-horizontais-nos-jardins.ghtml
[2] https://www.estadao.com.br/cultura/alice-ferraz/moradores-dos-jardins-vao-a-justica-em-busca-da-anulacao-da-revisao-de-tombamento/
[3] Nesse sentido, José Renato Nalini, Secretário Executivo de Clima do município de São Paulo, publico o seguinte texto: https://www.estadao.com.br/opiniao/espaco-aberto/a-ciencia-diz-chega/
[4] Representativo desse padrão decisório é o Recurso Especial nº 302.906/SP, sobre o qual discorremos longamente em nossa dissertação disponível em:
https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/44112/1/Luiz%20Paulo%20dos%20Santos%20Diniz.pdf
[5] https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/sp/sao-paulo.html
[6] Os dados que se seguem foram retirados de reportagem do jornalista Raul Juste Lores disponível em: https://vejasp.abril.com.br/coluna/sao-paulo-nas-alturas/densidade-urbana-comparativo-bairros
[7] Cada grande tendência comporta inúmeras nuances internas, cujo detalhamento e caracterização escapam ao escopo do presente texto.
[8] Para um estudo aprofundado das consequências do espraiamento ou dispersão urbana, ver: AMARO, Aurélio Bandeira. O processo de dispersão urbana e a questão ambiental: uma comparação da literatura estrangeira com o fenômeno no Brasil. In: Revista Formação (Online), v. 4, n. 23, p. 107-135, set.-dez. 2016.
[9] O Município de São Paulo aposta demasiadamente na produção privada de habitação de interesse social, sendo irrisória a produção pública. Relatório produzido pela Fundação Tide Setúbal aponta os limites desse modelo. Milhares de unidades habitacionais são produzidas pelo mercado, mas não têm chegado a quem de fato precisa. Para consulta ao documento, ver:
https://fundacaotidesetubal.org.br/publicacoes/habitacao-de-interesse-social-privado-em-sao-paulo/
[10] Sarah Feldman aponta que um dos motivos que presidiram o surgimento da legislação de zoneamento no Município de São Paulo foi a preservação do valor dos imóveis e a proteção dos projetos da Companhia City. Isso foi conseguido em um primeiro momento por meio de leis esparsas e depois com base na primeira lei geral de zoneamento de 1972. Para mais informações, ver tese de doutorado da autora:
[11] De lege ferenda, melhor seria que o CONDEPHAAT tivesse atribuído à legislação municipal a definição do gabarito das edificações, visto que se trata de matéria de interesse eminentemente local.
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