Opinião

Vidas em risco: o alarmante descaso dos planos de saúde frente a decisões judiciais

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5 de maio de 2025, 6h06

No Estado democrático de Direito, o cumprimento das ordens emanadas do Poder Judiciário indica regra básica, cabendo àquele que discorda do seu conteúdo ou conclusão o manejo do correspondente recurso. Nesse sentido, nos ensina Nelson Nery Junior [1]: “Quando o Estado ou particulares desrespeitam reiteradamente essas ordens, cria-se um ambiente de incerteza e instabilidade”.

Nos tribunais superiores, não são poucos os julgados que reforçam a gravidade do descumprimento de decisões judiciais. O Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, no REsp 1.967.587/PE [2], destacou que:

“[…] 7 – A recalcitrância da recorrente em cumprir a ordem judicial permaneceu por 642 dias, alcançando o valor das astreintes o montante de R$ 1.284.000,00. 8 — O valor é alto porque mais alta foi a renitência da recorrente em cumprir a tutela provisória deferida, pois houvesse ela cumprido a ordem judicial em tempo, ou em menos tempo, nada ou muito pouco seria devido a esse título. 9 – A manutenção da multa diária, fixada em R$ 2.000,00, no patamar que alcançou, R$ 1.284.000,00, decorre exclusivamente da recalcitrância da recorrente em desobedecer a ordem judicial, por 642 dias, revelando-se, pois, proporcional e razoável, não havendo o que reduzir.”

Não à toa, nosso Código de Processo Civil estabelece mecanismos de natureza coercitiva para assegurar a efetividade da tutela jurisdicional, dentre os quais, podemos citar o protesto de decisão judicial, o bloqueio provisório de contas bancárias, a fixação de astreintes, a aplicação de multa quando configurado ato atentatório à dignidade da justiça e, até mesmo, a aplicação de medidas atípicas em caráter excepcional, atendidos alguns critérios.

Obstrução da tutela jurisdicional e risco à vida

No contexto específico do direito à saúde, persistente e incansável tem sido a luta da advocacia contra os reiterados descumprimentos de determinações judiciais por parte das operadoras de planos de saúde, comportamento que atenta não apenas contra a própria jurisdição estatal, mas também coloca em risco a vida de muitos consumidores, alguns hipervulneráveis, como aqueles que estão em tratamento de doenças graves, idosos, gestantes ou beneficiários com alguma deficiência.

A nosso ver, diversos fatores contribuem para o comportamento e ineficácia das decisões judiciais no cotidiano de quem atua na área do direito à saúde, os quais elencaremos em busca de soluções, considerando a relevância do tema.

Um deles, sem dúvida, é a morosidade do Judiciário, especialmente no cumprimento provisório de sentença, haja vista a urgência que muitas demandas apresentam. Em ações voltadas ao fornecimento de medicamentos, tratamentos e cirurgias, por exemplo, a execução provisória da decisão é urgente, sendo a imediata efetivação fundamental para evitar o perecimento do próprio direito e da vida.

Spacca

Outro fator que merece atenção diz respeito à exigência de muitos estados quanto ao recolhimento prévio de custas judiciais para instauração do respectivo cumprimento de sentença (provisório e/ou definitivo), o que por vezes configura verdadeiro obstáculo ao beneficiário que já sofre com o descumprimento contratual da operadora e, não raras vezes, é compelido a arcar com custos não previstos em seu orçamento familiar para acesso ao medicamento, tratamento ou cirurgia. Com o devido respeito, impor o recolhimento de custas judiciais para o cumprimento provisório de sentença que assegura um direito à saúde, constitui uma restrição de acesso à Justiça.

Não bastasse o obstáculo em razão da exigência do prévio recolhimento de custas judiciais, constatamos que alguns magistrados, diante do contumaz descumprimento da tutela provisória de urgência, exigem a instauração de cumprimento provisório de sentença do beneficiário, quando poderiam diante da celeridade que tais demandas impõem, apreciar a petição que comunica a recalcitrância da operadora nos autos principais, abreviando o tempo e privilegiando a efetividade que tanto se espera da tutela jurisdicional.

O Poder Geral de Efetivação, previsto no artigo 139, inciso IV, do Código de Processo Civil, concede ao juiz a prerrogativa de determinar qualquer medida necessária para assegurar o cumprimento de ordens judiciais, incluindo medidas atípicas, para garantir a eficácia da decisão, como a majoração sensível das astreintes fixadas ou, até mesmo, determinação de prisão do CEO (chief Executive officer) da operadora por crime de desobediência, nos moldes da legislação vigente.

Em determinados foros, os advogados encontram problema ainda maior, qual seja, a determinação de instauração de cumprimento provisório de sentença e a fixação de prazo de 15 dias úteis para a operadora do plano de saúde cumprir um comando judicial que já deveria ter sido cumprido quando deferida a tutela provisória de urgência, procedimento que representa verdadeiro entrave e prejudica os beneficiários, no mais das vezes, hipervulneráveis.

No cotidiano forense, infelizmente, tem se tornado comum a insensibilidade de muitos magistrados diante dos dramas vivenciados por beneficiários que, como última chance, depositam no Estado a esperança de verem seus direitos respeitados, assim como a aplicação de princípios básicos, como a boa-fé objetiva, a função social do contrato, entre outros tão valiosos ao direito contemporâneo.

Mas não para por aí! Diversas são as decisões judiciais que entendem não ter sido demonstrada a existência de danos morais e, quando reconhecidos, a condenação da operadora raramente ultrapassa o montante de R$ 5.000, sendo a empresa, na grande maioria dos casos, apenas obrigada a fazer aquilo que já deveria ter cumprido por força do contrato firmado com o beneficiário. Nos parece que, após muitos anos de discurso acerca da existência de uma hipotética “indústria do dano moral”, a narrativa enfim foi acolhida por nosso Judiciário. Como diria o célebre narrador esportivo Milton Leite: “Que fase!”

Perspectiva econômica do negócio

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Nesse cenário, inequivocamente, a judicialização dos contratos de planos de saúde se transformou em uma estratégia empresarial de muitas operadoras sob a perspectiva econômica, pois o comportamento possibilita criar um fluxo de caixa de baixo custo se compararmos as taxas praticadas pelas instituições financeiras na atualidade, especialmente após as alterações empreendidas pela Lei nº 14.905/2024, a qual reduziu a taxa de juros das dívidas judiciais civis. Na prática, as operadoras não apenas postergam os pagamentos decorrentes das condenações, melhorando seus resultados financeiros ao mercado, mas também utilizam o Judiciário como um verdadeiro Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC).

Indubitavelmente, quanto mais tempo a operadora do plano de saúde demora para cumprir o comando judicial (provisório ou definitivo), mais as energias do beneficiário se esgotam, assim como as alternativas de tratamento. Um exemplo didático é o caso do beneficiário diagnosticado com carcinoma maligno, o qual necessita de tratamento quimioterápico. Com a recalcitrância de algumas Operadoras no cumprimento de decisões judiciais, o tratamento se torna menos eficaz, pois a doença progride e as chances de sobrevida diminuem significativamente.

O contrário também ocorre, pois se o tratamento é fornecido com a maior brevidade possível, as chances de sobrevida aumentam. Consequentemente, esse paciente poderá estar sujeito a mais tratamentos benéficos e/ou mais ciclos da mesma droga que retardou a evolução da doença, gerando mais gastos para as operadoras.

Em paralelo, notícias recentes na imprensa expõem lucros recordes aos acionistas de algumas operadoras em 2024 [3], no mesmo momento histórico em que as ações judiciais propostas contra tais operadoras só crescem. A nosso ver, a lógica subjacente é simples: se um consumidor buscou a tutela judicial por uma negativa de cirurgia, medicamento ou terapia, certamente muitos outros consumidores enfrentaram a mesma negativa e não recorreram ao Poder Judiciário. Há, ainda, aqueles que sequer tiveram a indicação médica do tratamento mais eficaz para sua condição, além dos que sofreram reajustes abusivos e, ao invés de buscar seus direitos, optaram por migrar para planos mais populares ou recorreram ao Sistema Único de Saúde (SUS).

Conclusão

O descumprimento voluntário e contumaz das ordens judiciais pelas operadoras provoca, além de graves prejuízos à vida e à saúde dos consumidores, a insegurança jurídica e o descrédito das instituições pela população, especialmente aquela mais vulnerável.

Por óbvio, a busca por lucro é um dos pilares para o bom funcionamento das sociedades empresariais no mercado. No entanto, não se pode admitir que a obtenção de lucro se confunda com o verdadeiro enriquecimento ilícito pautado no inadimplemento contratual e violação de direitos fundamentais protegidos pelo Estado. O equilíbrio de forças, conquistado pela nossa Constituição e, especialmente, pelo Código de Defesa do Consumidor, não pode ser ameaçado. Algumas medidas são necessárias para que esse equilíbrio persista, como a implementação de medidas judiciais mais eficazes, uma justiça mais célere e maior atenção aos hipervulneráveis.

Em nossa opinião, medidas coercitivas mais eficazes, que tragam um caráter pedagógico e sejam proporcionais à realidade financeira das operadoras dos planos de saúde são mais do que necessárias neste momento, sob pena de subversão do próprio sistema idealizado pelo legislador e descrédito do nosso Poder Judiciário.

 


[1] NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo na Constituição Federal: processo civil, penal e administrativo. 13 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

[2] STJ – REsp 1967587 PE 2021/0326110-3. Órgão Julgador: 3ª Turma – Rel. Min. Nancy Andrighi – Data de julgamento: 21/06/2022.

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