Sem CPF, sem cobrança: por que extinguir execuções fiscais não basta
5 de maio de 2025, 16h19
A extinção de execuções fiscais em massa tem dominado as manchetes jurídicas. Tribunais anunciam com entusiasmo a redução do acervo, como se apagar ações “mortas” resolvesse, por si só, os entraves históricos da cobrança da dívida ativa. Mas por trás desses números, há uma omissão silenciosa que ameaça a própria lógica do novo modelo: a ausência de dados básicos do devedor, como CPF ou CNPJ.

Não é apenas o baixo valor das dívidas ou a inexistência de bens penhoráveis que têm levado à extinção de milhares de execuções. O que muitos não dizem é que uma parte significativa dos processos está sendo encerrada porque não há sequer como localizar o devedor. E isso afeta diretamente não só a efetividade da cobrança, mas também a legitimidade de um sistema que se propõe a ser mais racional e estratégico.
Hoje, muito se fala da virada extrajudicial — e com razão. O protesto da Certidão de Dívida Ativa (CDA), por exemplo, já se mostrou mais eficaz que diversas execuções judiciais. Mas não há como protestar sem CPF ou CNPJ. E aqui reside o paradoxo: o modelo mudou, mas ainda depende de uma peça básica que muitos ignoram — a atualização cadastral do contribuinte.
Iniciativas modernas de administrações fiscais
Algumas procuradorias e administrações fiscais vêm se destacando por iniciativas modernas de gestão baseada em dados. Em Curitiba, por exemplo, a prefeitura implementou um sistema de integração de bases por meio de um data lake, que permite o cruzamento de informações em tempo real. Além disso, centenas de servidores foram capacitados no uso de ferramentas de Business Intelligence, como o Power BI, para elaborar painéis analíticos e apoiar decisões estratégicas na cobrança e racionalização das execuções fiscais. [1]
Essas experiências dialogam com uma tendência nacional de fortalecer a atualização cadastral como base para uma cobrança mais eficiente. Uma das mudanças mais relevantes veio do próprio CNJ: a norma passou a exigir que cartórios informem, gratuitamente, às prefeituras todas as mudanças de titularidade de imóveis, a cada 60 dias. [2] A ideia é simples — mas poderosa: permitir que a Fazenda Pública saiba quem é o verdadeiro responsável pelo imóvel e possa agir com mais precisão desde o início da cobrança.
Ainda assim, essa medida não resolve tudo. A obrigatoriedade imposta aos cartórios é um avanço, mas não substitui a necessidade de que o próprio contribuinte, ou seus sucessores, comuniquem outras alterações relevantes ao fisco, como mudança de endereço, encerramento de atividade ou mesmo falecimento. Em muitos casos, a realidade mostra que a titularidade de imóveis muda pelos famosos contratos de gaveta, sem qualquer registro formal, o que mantém o cadastro desatualizado mesmo com a atuação do cartório.
Integração de sistemas para atualização cadastral

É nesse ponto que a corresponsabilidade se afirma: a atualização cadastral efetiva depende da integração de sistemas, sim, mas também da iniciativa dos cidadãos em formalizar, comunicar e manter seus dados em dia.
Dessa forma, não é possível — nem desejável — que toda a responsabilidade recaia sobre o poder público.
O contribuinte também tem deveres. Atualizar seus dados cadastrais não é apenas uma obrigação formal, mas uma medida de proteção: permite que ele seja notificado antes de medidas restritivas e evita surpresas futuras, como entraves em inventários ou transferências imobiliárias.
Em um cenário que busca abandonar a lógica adversarial entre Fisco e cidadão — como bem pontuado pelas autoridades públicas em recentes debates sobre a dívida ativa —, a atualização cadastral deve ser vista como um ato de corresponsabilidade. Estado e contribuinte constroem, juntos, um sistema mais transparente e eficiente.
Dificuldade para administração pública
É claro que a eficiência da cobrança fiscal também depende da modernização dos cadastros públicos e da integração entre bases de dados. No entanto, há situações em que a administração pública simplesmente não dispõe de meios próprios para identificar fatos relevantes que impactam a cobrança, como a transferência de propriedade não comunicada ao fisco, o encerramento informal de atividades empresariais ou o falecimento de contribuintes sem registro nos sistemas responsáveis. Nesses casos, a atualização depende necessariamente da iniciativa do contribuinte, de seus sucessores ou de terceiros obrigados por lei, como cartórios e juntas comerciais.
Mais do que extinguir processos sem viabilidade, o foco deve estar em construir um modelo de cobrança que funcione de ponta a ponta, com dados, tecnologia, estratégia e corresponsabilidade. O protesto extrajudicial, por exemplo, já demonstrou ser mais eficaz do que muitas execuções judiciais na recuperação de créditos. Mas, sem CPF ou CNPJ, ele simplesmente não pode ser realizado. E aí, o que era para ser uma solução se converte em mais um impasse: a arrecadação deixa de acontecer, e com ela se comprometem políticas públicas essenciais que dependem desses recursos — como saúde, educação e assistência social.
[1] Prefeitura de Curitiba. “Bases de dados da Prefeitura de Curitiba são integradas para permitir cruzamento de informações em tempo real”. Disponível aqui
[2] Resolução CNJ nº 547/2024, com redação dada pela Resolução nº 617/2025, art. 4º e parágrafo único. Disponível aqui
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