Da suspensão dos processos sobre vínculo de emprego em contratos de terceirização
4 de maio de 2025, 15h18
A recente decisão proferida pelo ministro Gilmar Mendes no âmbito do ARE 1.532.603/PR (Tema 1.389), ao reconhecer a repercussão geral da matéria relativa à competência das Justiça do Trabalho e ônus da prova nos processos que discutem a existência de fraude no contrato civil/comercial de prestação de serviços, e ao determinar a suspensão nacional de todos os processos sobre o tema, suscita importantes questionamentos quanto aos limites da atuação do Supremo Tribunal Federal e à integridade do sistema jurídico processual brasileiro.
O STF já proferiu entendimento acerca da licitude da terceirização de atividades precípuas da empresa tomadora de serviços no julgamento conjunto da ADPF 324/DF e do RE 958.252/MG , que resultou no Tema 725 da Tabela de Repercussão Geral, com a fixação da seguinte tese jurídica: “É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante .”
Já o ARE 1.532.603/PR trouxe ao STF a controvérsia acerca da licitude de uma contratação de pessoa física sob a modalidade do contrato de franquia, não havendo, portanto, discussão sobre a terceirização de serviços entre pessoas jurídicas, mas o reconhecimento de o vínculo empregatício com a pessoa física (franqueado), sob a arguição da violação aos artigos 2º, 3º e 9º da CLT.
Destaque-se que não há no ARE 1.532.603/PR qualquer discussão sobre a competência da Justiça do Trabalho para julgamento de ação com pedido de reconhecimento de vínculo de franqueado ou discussão sobre a sistemática de ônus da prova em alegações de fraude. Sendo assim, fica evidente que a decisão do ministro relator estendeu o escopo do julgamento, introduzindo como objeto de repercussão geral temas não suscitados pelas partes e que não integravam a causa de pedir do recurso extraordinário.
Essa extrapolação caracteriza manifesta violação aos limites objetivos da lide, ferindo frontalmente o princípio da adstrição (artigo 141 do Código de Processo Civil) e o princípio dispositivo, também conhecido como princípio da inércia da jurisdição, ambos pilares do devido processo legal. O STF, assim, atua fora dos limites do que lhe foi submetido, criando um precedente de expansão indevida do seu papel revisional e invadindo a esfera de competência das instâncias ordinárias.
É igualmente grave o fato de que os temas tratados na decisão — regras sobre competência do juízo da causa principal para julgar questões incidentais e ônus da prova em casos de alegada fraude — não constituem matéria de índole constitucional, mas sim questões infraconstitucionais disciplinadas pelo Código de Processo Civil.
A Constituição Federal, em seu artigo 102, delimita expressamente a competência do STF para julgar apenas matérias constitucionais, quando houver violação direta à Constituição. A definição de quem deve julgar um pedido incidental em uma ação trabalhista (como a verificação de fraude em contrato de terceirização) ou a repartição do ônus da prova são questões de interpretação e aplicação de lei ordinária, e não de matéria constitucional stricto sensu.

Pode-se até cogitar em um conflito de competência entre a Justiça do Trabalho e o Tribunal de Justiça dos Estados, cuja competência para decisão seria do Superior Tribunal de Justiça, e não do STF.
Ao assim decidir, o STF não apenas usurpa funções próprias das instâncias inferiores, como também fragiliza a lógica do sistema recursal, funcionando, na prática, como uma instância revisora geral — o que a própria Corte reconhece ser um problema, ao mesmo tempo em que o perpetua com decisões que extrapolam sua missão constitucional.
Além disso, a decisão ignora que não há qualquer lacuna normativa no ordenamento jurídico quanto às questões suscitadas. O artigo 503 do Código de Processo Civil dispõe que as questões incidentais decididas com contraditório devem ser apreciadas pelo juízo que julga a questão principal, excepcionando apenas a coisa julgada sobre essa decisão incidental, caso o julgador não seja competente “em razão da matéria e da pessoa para resolvê-la como questão principal”. Em ações que discutem vínculo de emprego, a apuração de fraude em contratos de terceirização é consequência lógica do pedido principal (questão incidental), não demandando deslocamento de competência nem modulação jurisprudencial.
Quanto ao ônus da prova, o artigo 373 do Código de Processo Civil fornece critérios objetivos de repartição, sendo matéria puramente processual, fora do alcance da jurisdição constitucional do STF. Não cabe à Corte Suprema reinterpretar normas infraconstitucionais que fundamentam a decisão recorrida, sob pena de suprimir a função das instâncias especializadas e da legislação ordinária.
A decisão do STF sustenta, ainda, que a Justiça do Trabalho estaria “descumprindo sistematicamente” as suas orientações, o que justificaria a centralização do julgamento do tema e a suspensão nacional de todos os processos sobre o assunto. Essa alegação, contudo, ignora a função contramajoritária da Justiça especializada, seu papel técnico na interpretação da legislação infraconstitucional e sua competência constitucionalmente definida para apreciar relações de trabalho (artigo 114, CF).
Ou seja, a Constituição da República reservou à Justiça do Trabalho o julgamento de toda e qualquer ação oriunda da “relação de trabalho”, e não apenas da relação de emprego, o que reafirma a sua competência para julgamento das matérias trazidas no ARE 1.532.603/PR.
O que o STF chama de “insegurança jurídica” pode, na verdade, ser entendido como divergência legítima de interpretação em um sistema jurisdicional plural, em que a instância máxima não deve funcionar como instância recursal trabalhista.
Ao invocar a ADPF 324 como base de sua decisão, o STF reforça o discurso da “liberdade de organização produtiva” como valor absoluto, sem ponderar de forma adequada os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da valorização do trabalho (artigos 1º, III e IV, e 170, caput, da CF). Ao suspender todos os processos que discutem vínculo de emprego em contextos de terceirização, mesmo os que tratam de fraudes evidentes, a corte contribui para a normalização da pejotização e da precarização das relações de trabalho.
Paralisação condena milhares à vulnerabilidade
A decisão ora criticada representa não apenas um equívoco jurídico, mas também um retrocesso institucional. A intervenção do STF em matéria claramente infraconstitucional, sob pretexto de uniformizar jurisprudência, revela um ativismo desmedido que fragiliza a Justiça do Trabalho e compromete o equilíbrio federativo da jurisdição.
A Constituição exige que o STF atue como guardião da Constituição, e não como intérprete supremo do Código de Processo Civil, quando ausente violação a preceitos constitucionais. Ao invadir competências das instâncias ordinárias, decidir além do pedido, e transformar temas legais em pseudo questões constitucionais, o Supremo mina sua legitimidade institucional e desestabiliza o sistema de justiça.
A suspensão nacional imposta pelo STF também traz consequências dramáticas para os trabalhadores brasileiros, em especial aqueles que, há anos, aguardam uma decisão definitiva em suas ações trabalhistas. Muitos desses processos já haviam percorrido todas as etapas processuais, encontrando-se próximos da fase de execução ou do trânsito em julgado. Agora, por força de uma medida que carece de tecnicidade e que não dialoga com a Constituição da República, esses trabalhadores terão de aguardar indefinidamente, sem qualquer perspectiva concreta de quando — ou se — seus direitos serão efetivamente reconhecidos e satisfeitos.
Em um país marcado pela informalidade e pela precarização das relações laborais, essa paralisação processual condena milhares de pessoas à incerteza e à vulnerabilidade, negando-lhes, na prática, o acesso efetivo à justiça. É o exemplo mais claro de que justiça adiada é justiça negada.
É tempo de reafirmar a contenção judicial, o respeito à autonomia das jurisdições especializadas e à separação dos Poderes. O zelo pelo ordenamento jurídico exige, acima de tudo, respeito à Constituição — inclusive pelos seus guardiões
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