Da Chicken Tax aos intangíveis: o valor já não está na mercadoria
2 de maio de 2025, 6h32
Em 1964, os Estados Unidos, dono do maior mercado consumidor do mundo, tomaram uma decisão que moldaria para sempre a indústria automotiva: como retaliação às restrições europeias ao frango americano, impuseram uma tarifa de 25% sobre caminhonetes leves importadas. Nascia assim a lendária Chicken Tax, um tributo com nome curioso, mas efeitos significativos, que se alastraram no tempo até os dias de hoje.

Ford Courier/1972 burlou imposto sobre frangos
Durante décadas, marcas japonesas e alemãs se viram obrigadas a criar fábricas nos EUA ou a driblar a regra desmontando carros, enviando-os em partes, ou até mesmo desenvolvendo modelos exclusivos para escapar da tarifa. O efeito prático foi proteger a fatia americana das pick-ups e empurrar a concorrência para a lateral do campo.
Esse episódio clássico ilustra como, em tempos passados, de uma economia marcadamente industrial, a força de uma nação era medida em siderúrgicas, fazendas e fábricas. Todo o direito tributário internacional foi erigido sob essas bases. Tarifas eram instrumentos diretos de tributação e protecionismo, visando garantir empregos e conquistar mercados. O produto físico, tangível, era o centro do jogo e o fundamento central dessa lógica econômica.
Mas o mundo mudou. A nova riqueza não se traduz mais no aço das siderúrgicas mas no algoritmo por trás do volante dos carros com ele produzidos, no design da experiência do usuário, no acesso aos dados do cliente. Marcas como Tesla e BYD, hoje, valem muito mais por sua capacidade de inovar em software, baterias e conectividade do que pelo volume de aço ou borracha utilizado em seus veículos. Mesmo os gigantes tradicionais correm para virar tech companies, como ocorre com General Motors, Volkswagen ou Toyota, que recrutam engenheiros de software de todas as partes do mundo.
Tarifaço dos EUA
Enquanto isso, a onda de tarifas retorna para espanto e perplexidade geral de todos. Em 2024, o governo Biden anunciou novas tarifas sobre carros elétricos chineses, chips e até painéis solares. E em 2 de abril de 2025, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou um conjunto de tarifas comerciais contra mais de 180 nações, determinando que qualquer produto importado pelos EUA será tarifado em 10%, no mínimo.
Mas, se a Chicken Tax de ontem gerava efeitos direto nas fábricas, hoje a verdadeira fronteira está em outro lugar: na nuvem, nos dados, na propriedade intelectual. O valor das maiores empresas do mundo está nos ativos intangíveis. Em 1975, apenas 17% do valor das empresas do S&P 500 era intangível. Hoje, esse número supera 90%. São patentes, marcas, softwares, dados, capital humano. Não se consegue impor tarifas a uma linha de código enviada via satélite.

Esse fenômeno é global. A União Europeia discute como proteger sua indústria frente a big techs americanas e chinesas, mas enfrenta o desafio de criar um ecossistema de inovação capaz de competir em IA, semicondutores e ciência de dados. O Japão, pioneiro em manufatura, agora tenta se reinventar como líder em robótica e IA aplicada. Até países emergentes, como Brasil e Índia, sentem a pressão de não apenas produzir commodities, mas de participar da economia dos algoritmos.
Mas velha a Chicken Tax ressuscitou — 60 anos depois —, revelando sua face mais anacrônica. Seu poder de proteção é limitado num mundo em que, para cada caminhonete, há dezenas de startups tentando reinventar o transporte via aplicativos, inteligência artificial e mobilidade elétrica.
Agenda ESG
E a transformação vai além do digital: ela dialoga diretamente com a ascensão das agendas ESG (Environmental, Social and Governance). Se antes a proteção tarifária buscava garantir empregos e indústrias locais, hoje o valor das empresas — e das nações — é medido também pela capacidade de inovar com responsabilidade, alinhar-se a padrões internacionais de sustentabilidade, ética e impacto social.
Consumidores e investidores olham para todo o ciclo de vida do produto, sua pegada ambiental, sua reputação, a governança dos dados e a inclusão social nas cadeias globais. Ativos intangíveis como marca, confiança, transparência e propósito tornam-se vantagem competitiva duradoura. As barreiras comerciais tradicionais não respondem a desafios como emissões de carbono, diversidade, governança de algoritmos ou circularidade. O valor, mais do que nunca, está na reputação, no compromisso ESG e na capacidade de construir valor sustentável.
A grande lição? Qualquer país que fique restrito à ilusão de proteger fábricas enquanto descuida de cérebros, dados, propriedade intelectual e princípios ESG vai perder o bonde da história. Tarifas podem até ganhar tempo, mas não compram futuro. E o futuro, como mostram Apple, Google, Nvidia, OpenAI e as estrelas da nova economia global, já está do outro lado da cortina: invisível, intangível, mas incrivelmente valioso.
No fim das contas, a lição da Chicken Tax é dupla: tarifas podem até proteger mercados por um tempo, mas só inovação — e inovação responsável, alinhada ao ESG — constrói valor sustentável. O século 21 pertence não a quem ergue muros para defender o passado, mas a quem constrói pontes para o futuro, intangível, conectado e, cada vez mais, responsável.
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