Opinião

Marco Legal das Garantias: novas regras sobre o valor mínimo de excussão na alienação fiduciária de imóvel

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3 de junho de 2025, 21h18

Uma das novidades no Marco Legal das Garantias (Lei nº 14.711/2023) foi modificar a Lei nº 9.514/1997 para estabelecer expressamente que a excussão do imóvel dado em alienação fiduciária de dívidas em geral não ocasiona a extinção automática da dívida. Se o valor obtido com a excussão for insuficiente para liquidar a dívida, o devedor continuará responsável pelo saldo devedor não coberto (artigo 27, §5º-A).

A extinção automática da dívida agora é excepcional. Ela só ocorrerá na alienação fiduciária em garantia de financiamento para aquisição ou construção de imóvel residencial do devedor (artigo 26-A, §4º).  Isso se justifica pela função social desse tipo de financiamento e visa a evitar que a pessoa física, além de perder o imóvel, continue devedora. Por outro lado, essa regra dificilmente causará prejuízo ao credor, porque o capital emprestado nesse tipo de financiamento é menor do que vale o imóvel e porque, quando a inadimplência vier a ocorrer, uma parte considerável do capital emprestado já terá sido amortizada. Assim, o valor obtido na excussão do imóvel provavelmente será suficiente para cobrir a dívida; se não for, o saldo remanescente tende a ser irrelevante.

Não é o caso da alienação fiduciária em garantia das dívidas em geral, notadamente no contexto de operações com grandes empresas. Aqui é comum que o imóvel cubra apenas parte da dívida no momento da contratação, fazendo parte de um conjunto de garantias. Também pode ocorrer de o empréstimo prever o pagamento das parcelas de capital apenas mais a frente ou no final. Dar a quitação da dívida nesse tipo de dívida seria premiar o devedor inadimplente com um enriquecimento sem causa.

Por causa desse objetivo de não dar a quitação, estabeleceu-se um valor referencial mínimo diferente daquele previsto para os financiamentos imobiliários.

Financiamentos imobiliários

Nos financiamentos imobiliários, o valor referencial mínimo é o próprio saldo devedor (artigo 26, §3º). Isso porque, vendendo ou não o bem no segundo leilão, haverá a quitação da dívida. Se vender, o credor utilizará os recursos auferidos para amortizar o débito; se não vender — os dois leilões forem frustrados —, o credor ficará com o bem.

Para as dívidas gerais, a solução foi se inspirar na regra geral do preço vil, contida no Código de Processo Civil (artigo 891, parágrafo único). Essa regra diz que será considerado preço vil o valor inferior a 50% do valor da avaliação. Assim, na Lei 9.514/1997, agora consta que o lance mínimo do segundo leilão será o saldo devedor, mas o credor poderá aceitar, a seu exclusivo critério, “lance que corresponda a, pelo menos, metade do valor de avaliação do bem” (artigo 27, §2º).

Com efeito, a metade do valor de avaliação do imóvel — limite que demarca o preço vil — passou a ser o valor referencial mínimo para efeito da excussão extrajudicial, assim como seria numa execução judicial, se o credor optasse por essa via, conforme lhe é facultado.

Spacca

Essa solução dá mais efetividade à alienação fiduciária como garantia para dívidas gerais porque aumenta a probabilidade de sucesso do segundo leilão e, ao mesmo tempo, limita tanto o prejuízo do fiduciante com a perda do imóvel excutido quanto o prejuízo do credor com a adjudicação definitiva do imóvel, se frustrados os leilões.

A lógica no leilão

O primeiro leilão tende, desde o início, a ser fracassado, pois a atratividade de comprar em um leilão é adquirir o imóvel por um valor inferior ao valor de mercado.

A probabilidade de êxito do segundo leilão, por sua vez, depende de o desconto sobre o valor de mercado ser suficiente para remunerar os riscos, os custos e as burocracias próprias a esse tipo de aquisição em comparação com uma aquisição comum.

Em suma, o que atrairá interessados ao leilão será a possibilidade de comprar o imóvel por menos do que o valor de avaliação, ou melhor, com um desconto razoável. Disso depende o sucesso do leilão extrajudicial e, por consequência, a conversão da garantia em dinheiro.

Por seu turno, o prejuízo do fiduciante com a perda do imóvel ficará limitada à metade do valor de avaliação. Esse é o valor referencial mínimo pelo qual o bem será vendido em leilão. E, se não aparecerem interessados, será esse o valor pelo qual o imóvel será adjudicado definitivamente ao credor e, por consequência, amortizado da dívida garantida (artigo 27, §6-A).

Assim, os prejuízos do fiduciante e do credor ficarão limitados. O fiduciante obterá pelo imóvel, em benefício da dívida garantida, pelo menos 50% do valor do imóvel. O credor, por outro lado, caso os leilões sejam frustrados, deverá amortizar apenas esse valor referencial mínimo, e não toda a dívida ou qualquer outro valor que dificilmente será alcançado com a venda direta posterior do bem. Ninguém se enriquecerá às custas do outro.

Apropriação não será enriquecimento indevido

Essa apropriação pelo credor pelo valor referencial mínimo não representará uma vantagem ou enriquecimento indevido. Afinal, a frustração do segundo leilão é um indicativo de que a avaliação constante no contrato não representa adequadamente o valor de mercado do imóvel, pois ninguém se interessou por ele mesmo com um desconto de 50%. Isso significa que o credor terá de agregar ao seu patrimônio um bem pelo qual não há interessados em adquiri-lo, nem mesmo com um bom desconto. Com a frustração do segundo leilão, o credor consolidará definitivamente o imóvel em seu nome (artigo 30, parágrafo único) e assumirá todos os ônus incidentes sobre ele. Adjudicar esse imóvel, portanto, frustrará as expectativas do credor de convertê-lo em dinheiro e ainda lhe trará despesas e preocupações extras. Por isso, a amortização da dívida apenas pelo valor referencial mínimo é uma forma de limitar os prejuízos desse credor.

De toda sorte, caso o imóvel valha mais do que a avaliação prevista no contrato e, por consequência, existam muitos interessados nele, a própria concorrência do leilão servirá para que a excussão ocorra pelos valores mais fiéis à realidade.

Desse modo, em relação às dívidas gerais, não haverá quitação automática da dívida com a excussão da alienação fiduciária. Se o imóvel for vendido num dos leilões, os valores arrecadados serão utilizados para pagamento das despesas e o saldo, para amortizar parcialmente a dívida (artigo 27, §6º-A). Por seu turno, se os leilões foram frustrados, será amortizado apenas o valor referencial mínimo, a título de adjudicação do imóvel pelo credor (artigo 27, §6º-A). O devedor, consequentemente, continuará responsável pelo saldo devedor ainda em aberto.

Nesse cenário, o fiduciante deve saber de antemão que essa prerrogativa de venda pelo valor referencial mínimo será exercida pelo credor. Portanto, no edital de venda do bem em que se agendará os dois leilões já se deve constar que serão aceitos lances no segundo leilão pelo valor referencial mínimo. Não deve ser uma decisão posterior do credor, como pode induzir equivocadamente a redação confusa do dispositivo (artigo 27, §2º). Aliás, se isso não constar do edital desde logo, os interessados não terão um parâmetro para fazerem suas ofertas.

Conclusão

Em suma, a alienação fiduciária de imóvel tem dois sistemas distintos: um especial, aplicável aos financiamentos à aquisição ou construção de imóvel residencial; e outro geral, para as demais dívidas. A quitação automática da dívida com a excussão do imóvel acontece apenas nos financiamentos imobiliários. Nas dívidas em geral, o valor referencial mínimo para o segundo leilão é o mesmo utilizado para caracterizar preço vil no Código de Processo Civil, ou seja, metade do valor de avaliação do imóvel. Esse valor servirá também para efeito de amortização da dívida em caso de adjudicação definitiva do imóvel pelo credor por conta da frustração dos leilões. O devedor, portanto, continuará responsável pela diferença ainda em aberto. Essa solução mitiga os prejuízos de ambas as partes, sem causar enriquecimento indevido a nenhuma delas.

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