Rastreabilidade, sustentabilidade e direito: do Regulamento Europeu nas exportações de carne bovina
30 de abril de 2025, 6h09
O Regulamento (UE) 2023/1.115, também conhecido como “European Union Deforestation Regulation” (EUDR), foi aprovado em junho de 2023. Teve sua eficácia postergada e passará a gerar efeitos somente a partir 30 de dezembro de 2025 por força da alteração prevista no Regulamento (EU) 2024/3.234, que entrou em vigor em 19 de dezembro de 2024, pois institui um novo marco regulatório que condiciona o comércio internacional de carne bovina com a União Europeia, no qual é exigido o cumprimento de critérios muito mais rigorosos do que os praticados até agora.

A norma acarreta a obrigação de diligência devida aos fornecedores que fazem negócios com os europeus e teve a sua eficácia postergada em 12 meses justamente em razão dos desafios que proporcionou ao comércio internacional, na medida em que em proíbe a colocação no mercado consumidor europeu de carne bovina associada ao desmatamento que tenha ocorrido após 31 de dezembro de 2020, mesmo que essa supressão vegetal seja considerada legal no país de origem.
A lista de produtos abrangidos pelo EUDR inclui, além da carne bovina, soja, cacau, café, madeira, óleo de palma, borracha e seus derivados, como couro, papel, móveis e chocolate. Os seus fornecedores devem demonstrar a rastreabilidade geográfica precisa dos produtos por meio de diligência prévia (due diligence), na qual sejam capazes de comprovar que seus produtos têm origem em locais livres de desmatamento, o que traz desafios de governança fundiária, ambiental, trabalhista regulatória/sanitária e climática, com repercussões diretas para as exportações do Brasil, que é reconhecidamente um dos maiores fornecedores de proteína animal do mundo.
Com efeito, nessa diligência devida tem que estar demonstrada a conformidade da atividade do fornecedor com a legislação do país de origem. E as sanções pelo eventual descumprimento das normas do EUDR incluem multas de até 4% do faturamento anual da empresa infratora, além da apreensão de bens, da suspensão da comercialização e publicidade negativa etc.
Por exemplo, segundo o Documento de Orientação (C/2024/6789), o produtor da carne que deseja disponibilizar seu produto no mercado europeu deve elaborar um dossiê no qual serão incluídas informações de geolocalização referentes a todos os estabelecimentos onde os bovinos foram criados e se os animais foram alimentados com rações. E, em caso afirmativo, deve utilizar como prova as faturas pertinentes, os números de referência das declarações de diligência devida pertinentes ou qualquer outra documentação pertinente que indique que as rações para animais não estavam associadas a áreas em que ocorreu o desmatamento.
De mais a mais, a justificativa do EUDR reside no agravamento da crise climática que, segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), tem no desmatamento uma das principais causas, na medida em que representa cerca de 11% das emissões globais de gases de efeito estufa. E o Brasil, por sua vez, lidera o ranking global de perda de vegetação nativa. Dados do MapBiomas apontam que o país perdeu mais de 90 milhões de hectares de cobertura natural desde 1985 — sendo as áreas de pastagens degradadas são a principal evidência disso.

Nesse cenário, o EUDR deixa claro que não haveria mais espaço para consumo atrelado à degradação ambiental e consiste na resposta da União Europeia para alinhar o comércio exterior aos compromissos climáticos assumidos no Acordo de Paris (2015) e na COP 26, em Glasgow (2021), na medida em que faz parte do “Green Deal”, uma política regional que levou à aprovação também de outras normas de sustentabilidade no âmbito da União Europeia, dentre elas a Diretiva de Relatório de Sustentabilidade Corporativa (CSRD) e a Diretiva de “Due Diligence” de Sustentabilidade Corporativa (CSDDD).
Entretanto, todas essas iniciativas normativas sofreram alterações a partir do pacote de medidas “Omnibus”, que busca simplificar a e facilitar o cumprimento das exigências. E o próprio EUDR sofreu uma reinterpretação recente, a partir da divulgação de um novo documento, cujo objetivo declarado é a diminuição em cerca de 30% dos custos que o cumprimento das regras deve gerar.
Por exemplo, inicialmente, cada remessa ou lote de carne enviado ao mercado consumidor europeu teria de contar com uma demonstração de devida diligência própria. Contudo, a parir de agora, o consenso é o de que o importador poderá utilizar uma mesma declaração em mais de um momento, mas desde que os produtos de diferentes lotes importados ao longo do ano se referir a uma mesma produção anual.
Desafios estruturais do Brasil diante do EUDR
O impacto da norma no Brasil será muito expressivo, especialmente no setor exportador de proteína animal, na medida em que o país é o maior exportador mundial de carne bovina e ocupa posições de destaque também nas exportações de soja, café e cacau — todas incluídas no escopo do regulamento.
Com efeito, apesar da relevância econômica de suas exportações de carne bovina, o Brasil ainda enfrenta entraves estruturais significativos que comprometem sua capacidade de atender plenamente às exigências da União Europeia. Afinal, um dos principais desafios ainda é a rastreabilidade limitada da cadeia logística da carne bovina, apesar das normas regulatórias de defesa sanitária existirem desde o Decreto nº 24.548 de 1934 e da aplicação de rastreabilidade na cadeia produtiva das carnes de bovinos ser objeto da Lei Federal nº 12.097 desde 2009.
Apesar disso, os dados do Base Nacional de Dados do Sistema Brasileiro de Identificação Individual de Bovinos e Búfalos (Sisbov) do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento — atualmente regulamentado na Instrução Normativa Mapa nº 51/2018 — dão conta de que apenas cerca de 2% do rebanho é rastreável até sua origem (o que equivale a aproximadamente 4 milhões de cabeças de gado).
Soma-se a isso a fragmentação dos sistemas de controle fundiário, ambiental, regulatório de defesa sanitária e fiscal, que estão distribuídos entre os registros de imóveis, o Cadastro Ambiental Rural (CAR), o Sisbov, os bancos de dados de Guias de Trânsito Animal (GTA) e os cadastros de contribuintes emissores de notas fiscais, que operam de forma desarticulada, em plataformas distintas e não integradas, que não compartilham seus bancos de dados, o que impede uma visão integrada da cadeia produtiva.
Outro obstáculo relevante é a insegurança jurídica fundiária, uma vez que muitas áreas de produção não possuem regularização plena, o que dificulta ou até inviabiliza a demonstração da origem lícita dos rebanhos. E essa situação se torna ainda mais crítica quando se leva em consideração que os dados disponíveis apontam que a atividade pecuária responde por 75% do desmatamento que ocorre em terras públicas.
Antinomias e dúvidas
Além disso, há uma antinomia entre os critérios normativos aplicados no Brasil e aqueles exigidos pela União Europeia. O regulamento europeu, por exemplo, não diferencia o desmatamento considerado legal pela legislação brasileira daquele tido como ilegal quando ocorrido após 31 de dezembro de 2020, desconsiderando, portanto, as disposições previstas na Lei Federal nº 12.651/2012, que permitem a conversão do uso do solo de áreas dentro das limitações administrativas impostas pela reserva legal e pela área de preservação permanente. Essa antinomia gerou tensões políticas, reações oficiais do Brasil junto aos organismos internacionais (apoiado pelas entidades representativas do setor exportador de proteína animal) e indica que podem ocorrer conflitos jurídicos.
Mas há também dúvidas que surgem a partir dos compromissos assumidos por grandes exportadores brasileiros de zerar o desmatamento de suas respectivas cadeias de fornecedores até dezembro de 2025. Para isso, seria necessário deixar de adquirir animais de todos os fornecedores diretos ou indiretos que desmataram após 31 de dezembro de 2020 ou realizaram desmatamento ilegal.
Contudo, essa meta é extremamente desafiadora, em razão das práticas mais comuns que são adotadas, em especial na Amazônia, onde ocorre a movimentação frequente de animais entre diferentes propriedades — o chamado “boi de trânsito” —, a qual dificulta o controle efetivo sobre a procedência. Além disso, é comum a prática da chamada “lavagem de gado”, em que animais criados em áreas desmatadas ilegalmente (e embargadas pelos órgãos ambientais) são transferidos para propriedades regularizadas antes do abate, o que dificulta a identificação da origem real da produção.
Reflexos das negociações entre Mercosul e UE
Paralelamente ao EUDR, ganha relevância o Acordo de Associação entre o Mercosul e a União Europeia, cujo marco político foi anunciado em 2019, mas cujo texto legal que está em processo de ratificação sofreu ajustes e complementações em 2023, especialmente no capítulo ambiental — que consolida uma nova arquitetura de exigências regulatórias e comerciais voltadas à sustentabilidade.
E um dos pontos centrais do acordo é a criação de uma cota anual de 99 mil toneladas de carne bovina que poderá ser exportada do Mercosul para o bloco europeu com tarifa reduzida de 7,5%, dividida entre carne fresca e congelada. Essa cota representa um avanço expressivo em relação ao sistema atual, que opera com cotas bem menores (como a chamada “Hilton Quota”, de cerca de 10 mil toneladas para o Brasil, com tarifa de 20%) e com exigências semelhantes, mas de alcance mais limitado. Ou seja, o acordo multiplica por quase 10 vezes o volume que poderá entrar no mercado europeu com condições comerciais vantajosas, tornando a Europa um destino ainda mais estratégico para a carne brasileira. Mas somente o fornecedor de carne devidamente rastreada é que poderá aproveitar essa oportunidade.
Em outras palavras, haverá o incentivo comercial à expansão da produção em áreas ecologicamente sensíveis, especialmente em regiões onde o controle ambiental e fundiário ainda é falho como a Amazônia e o Cerrado, o que criaria um verdadeiro paradoxo: afinal, embora traga cláusulas ambientais, o Acordo poderia reforçar pressões indesejadas sobre esses biomas.
Propostas para adequação brasileira
De todo modo, o acordo não reduz as exigências europeias. Ao contrário, ele as reforça e as formaliza em um novo patamar comercial e diplomático. No entanto, o Brasil tem agora a oportunidade (e o desafio) de mostrar que é possível combinar competitividade, expansão de mercado e responsabilidade ambiental. Em outras palavras, a rastreabilidade se torna a chave para transformar o Acordo em um vetor de progresso par ao Brasil, e não em um risco ambiental.
Para liderar esse processo, o Mapa instituiu um grupo de trabalho por meio da Portaria Mapa/SDA nº 1113/2024, o qual produziu um documento denominado Plano Estratégico 2025–2032, no contexto do Plano Nacional de Identificação Individual de Bovinos e Búfalos (Pnib), que prevê procedimentos de identificação animal (por meio de numeração oficial segundo o método da ISO 076), registro da movimentação animal, registro de dados de produtores e propriedades com geolocalização, centralização de bases de dados e adoção de regras e padrões de mercado e que, ainda, previu um cronograma de implantação dividido em quatro etapas: desenvolvimento de um sistema informatizado e da base central de dados; adequação dos seus sistemas informatizados de órgãos estaduais de defesa sanitária; identificação individual dos bovinos que passem pelo sistema de defesa sanitária e; identificação, antes da primeira movimentação, todos os animais que, independentemente do motivo, transitem em território nacional.
De toda forma, para que o Brasil mantenha sua competitividade no mercado europeu e se adeque às novas exigências internacionais, torna-se imprescindível a adoção de medidas coordenadas entre o setor público, a iniciativa privada e a sociedade civil. Um primeiro passo essencial é a integração dos sistemas de controle, como previsto no Plano Estratégico 2025–2032. Tecnologias como o blockchain, para registrar as informações satelitais dos lotes, pode viabilizar uma rastreabilidade auditável em toda a cadeia produtiva e já tem sido empregada em projetos-piloto por frigoríficos e certificadoras, demonstrando o potencial para serem escaladas e garantir maior transparência.
Enfim, a entrada em vigor do EUDR marca uma virada estrutural no comércio com a União Europeia: a sustentabilidade deixa de ser apenas uma vantagem reputacional e se transforma em exigência jurídica concreta para quem deseja fornecer ou seguir fornecendo para os consumidores europeus. Portanto, esse regulamento é, ao mesmo tempo, um alerta e uma oportunidade estratégica.
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