A personalidade internacional no projeto de reforma do Código Civil
30 de abril de 2025, 6h35
Dentre as mudanças introduzidas no Projeto de Lei nº 4/2025, que se propõe a atualizar o Código Civil brasileiro, uma, em especial, passou quase despercebida: trata-se do parágrafo único do artigo 1º, localizado na Parte Geral, Livro I, Título I, Capítulo I. Ao lado da regra basilar segundo a qual “toda pessoa natural goza de capacidade jurídica para ser titular de direitos e deveres na ordem civil”, acresce-se agora o seguinte enunciado:
“Nos termos dos tratados internacionais dos quais o País é signatário, reconhece-se personalidade internacional a todas as pessoas naturais em território nacional, garantindo-lhes direitos, deveres e liberdades fundamentais.”
A intenção do projeto de lei, ao que tudo indica, é valorizar a posição do ser humano no ordenamento nacional, reforçando sua centralidade como sujeito de direitos e garantias fundamentais, à luz da proteção internacional dos direitos humanos.
Não obstante o propósito meritório, a redação proposta traz imprecisões jurídicas relevantes. A expressão “personalidade internacional”, tal como utilizada, carece de definição no contexto normativo nacional, ao mesmo tempo em que a referência aos tratados internacionais “dos quais o País é signatário” é atécnica.
Ressalte-se, desde já, que a crítica ao dispositivo não se confunde, em absoluto, com qualquer contestação à centralidade dos direitos humanos na ordem jurídica contemporânea. Ao contrário: reconhecer sua importância é precisamente o que impõe a necessidade de um tratamento técnico rigoroso e sistematicamente coerente, sobretudo quando se busca inseri-los, por via legislativa, em um texto normativo basilar do direito privado.
Noção de personalidade internacional dos indivíduos e impropriedade do seu reconhecimento no Código Civil
A expressão “personalidade internacional” não encontra amparo em nenhum normativo em vigor no país, seja de natureza constitucional, legal ou infralegal. Tampouco consta, com esse termo exato, de qualquer tratado internacional de que o Brasil seja parte. Trata-se, na realidade, de uma categoria doutrinária, oriunda da dogmática do Direito Internacional Público. Eis, assim, o primeiro desafio que o parágrafo único do artigo 1º impõe ao intérprete: compreender o alcance jurídico de uma expressão que carece de referência no sistema jurídico vigente.

O reconhecimento dos indivíduos como sujeitos de Direito Internacional é tema controverso. Embora parcela significativa da doutrina, especialmente no campo dos direitos humanos, sustente que os Estados teriam deixado de ocupar, de forma exclusiva, o centro de gravitação da ordem jurídica internacional, com os indivíduos passando a assumir centralidade (o que implicaria o reconhecimento de que são dotados de personalidade internacional), esse entendimento não é pacífico.
No Brasil, Antônio Augusto Cançado Trindade é um dos mais destacados defensores do reconhecimento do indivíduo como sujeito de Direito Internacional. Para ele, os antigos argumentos segundo os quais os indivíduos não poderiam ser considerados sujeitos por não disporem de certas capacidades estatais (como a possibilidade de celebração de tratados) são destituídos de qualquer significado [1].
Segundo o jurista, os indivíduos não apenas se tornaram destinatários diretos (e sem intermediários) das normas internacionais, sujeitos de direitos e deveres, como também adquiriram a capacidade processual para reivindicá-los internacionalmente. A consolidação dessa capacidade é, para ele, condição essencial para a efetivação da proteção internacional dos direitos humanos [2]. Defende, assim, uma reinterpretação do Direito Internacional à luz da dignidade da pessoa humana, o que é chamado de “humanização do Direito Internacional”, deslocando o foco dos interesses estatais para a proteção da pessoa [3].
Francisco Rezek, todavia, sustenta que indivíduos (e também empresas) não detêm personalidade jurídica de Direito Internacional, no sentido técnico do termo [4]. Embora certas normas internacionais possam conferir direitos às pessoas físicas ou jurídicas, isso por si só não basta para qualificá-las como sujeitos plenos da ordem internacional. Segundo o autor, os indivíduos não participam, a título próprio, da formação da normatividade internacional, nem mantêm relação direta e imediata com o sistema jurídico internacional.
Quando acessam instâncias internacionais, como tribunais ou comissões, fazem-no por força de compromissos específicos assumidos pelos Estados, e não em virtude de uma titularidade autônoma e originária. Para Rezek, esse acesso é condicionado à existência de um vínculo de sujeição entre o particular e o Estado copatrocinador do foro, o que reforça a centralidade estatal na dinâmica da responsabilidade e da proteção internacional.
Ainda que se supere a indefinição conceitual quanto à expressão “personalidade internacional” à luz da ordem jurídica brasileira e mesmo que se admita que o ordenamento brasileiro adere à compreensão segundo a qual os indivíduos são sujeitos de Direito Internacional, o parágrafo único do artigo 1º, como proposto, apresenta sérias incongruências.
A personalidade internacional é uma qualidade que se adquire perante a ordem jurídica internacional, como resultado da atribuição de direitos e deveres por normas internacionais, e não como consequência de uma declaração unilateral da ordem interna. Não é possível atribuir, por meio de legislação doméstica, um status jurídico que só pode ser reconhecido por um sistema normativo distinto. A tentativa de positivar unilateralmente, no âmbito de um código de direito privado (fonte interna), uma condição cuja definição e atribuição competem à ordem internacional, revela-se juridicamente imprópria.
Ademais, ainda que a personalidade internacional pudesse ser acolhida pela ordem interna como reflexo de sua previsão na ordem jurídica internacional, causa estranheza a tentativa de inserir essa declaração em um dispositivo de direito civil, voltado à regulação das relações jurídicas privadas no plano interno. O Código Civil não é o locus adequado para tratar da subjetividade jurídica internacional, que se projeta em outra esfera normativa e se vincula a uma estrutura própria de fontes e sujeitos.
Adicionalmente, a expressão utilizada (“reconhece-se personalidade internacional a todas as pessoas naturais em território nacional”) contém uma contradição insuperável: a personalidade internacional é, por definição, status atribuído no plano internacional, e não tem razão para existir “em território nacional”. Essa ambiguidade compromete a inteligibilidade da norma e fragiliza sua coerência sistêmica.
Outrossim, o dispositivo parece ignorar distinções fundamentais da dogmática internacionalista, especialmente a que separa personalidade internacional de capacidade internacional. Enquanto a personalidade diz respeito à aptidão para ser titular de direitos e deveres no plano internacional, a capacidade refere-se à possibilidade de exercê-los diretamente. Ao afirmar que todas as pessoas naturais em território nacional têm garantidos “direitos, deveres e liberdades fundamentais”, o dispositivo parece referir-se, na verdade, à capacidade internacional, o que acentua ainda mais a confusão conceitual. Inclusive, o caput do mesmo artigo 1º, se refere expressamente à “capacidade jurídica para ser titular de direitos e deveres na ordem civil”.
E não é só. A redação proposta desconsidera as diferenças quanto à extensão da capacidade internacional dos indivíduos. Ainda que as pessoas naturais possam deter determinados direitos perante sistemas internacionais de proteção de direitos humanos, como o direito de peticionar à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ou estar sujeitos a obrigações penais internacionais, como as previstas no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional [5], isso não significa que disponham, em termos amplos, da mesma capacidade internacional atribuída aos estados ou às organizações internacionais. A extensão da capacidade internacional dos indivíduos depende do contexto normativo específico e não pode ser generalizada por meio de uma norma de direito civil nacional. Tampouco é ela idêntica à capacidade atribuída aos sujeitos de uma ordem jurídica nacional, como a brasileira.
Inadequação da referência a tratados ‘dos quais o país é signatário’
A internalização de um tratado no Brasil segue um iter procedimental bem definido. Em primeiro lugar, a Constituição atribui exclusivamente ao presidente da República, como chefe de Estado, a competência para manter relações com Estados estrangeiros, o que inclui a negociação e a assinatura de tratados (artigo 84, VIII).
Em seguida, após a assinatura, o tratado deve ser submetido à aprovação do Congresso Nacional (artigo 49, I), cuja manifestação favorável se dá por meio de decreto legislativo. Na terceira etapa, ocorre a ratificação ou a adesão, momento em que o Brasil passa a ser juridicamente vinculado no plano externo. Por fim, o presidente da República promulga o tratado e confere-lhe publicidade por meio de decreto executivo, tornando-o eficaz no direito interno a partir de sua publicação no Diário Oficial.
Antes da promulgação, portanto, o tratado não produz efeitos no plano interno, como reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Agravo Regimental na Carta Rogatória 8.279-4 [6]. É inadequado, portanto, sustentar que direitos, deveres e liberdades fundamentais decorreriam diretamente de tratados “dos quais o país é signatário”.
A assinatura representa apenas uma intenção política inicial e não vincula juridicamente o Estado no plano interno. A ratificação ou adesão, por sua vez, gera vinculação exclusivamente no plano internacional. A redação, portanto, carece de rigor técnico, ao sugerir que a mera condição de signatário já bastaria para a produção de efeitos normativos no ordenamento jurídico nacional.
Essa imprecisão técnica não se limita ao parágrafo único do artigo 1º do Projeto de Lei nº 4/2025. A expressão “tratados internacionais dos quais o País é signatário” repete-se no §1º do artigo 11, que trata dos direitos da personalidade, no artigo 609-G, que se insere no capítulo VII-A, relativo à prestação de serviços e do acesso a conteúdos digitais, no novo Livro VI, Do Direito Civil Digital, em dispositivos no Capítulo I (Disposições Gerais), no Capítulo II (Da Pessoa no Ambiente Digital), no Capítulo IV (Do Direito ao Ambiente Digital Transparente e Seguro) e no Capítulo VI (Presença e Identidade de Crianças e Adolescentes no Ambiente Digital), todos esses sem numeração.
Não bastasse, trata-se de uma formulação mais ampla e menos rigorosa do que aquela adotada pelo §2º do artigo 5º da Constituição, que reconhece a força normativa interna apenas dos “tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Essa distinção entre a redação do Projeto de Lei nº 4/2025 e aquela constante da Constituição não é meramente terminológica: ao contrário, reflete o necessário cumprimento do iter procedimental constitucional para a incorporação de tratados ao ordenamento jurídico brasileiro, o que pressupõe assinatura, aprovação legislativa, ratificação ou adesão e promulgação por decreto presidencial. A mera assinatura, ou seja, o status de signatário, não gera por si só efeitos jurídicos vinculantes, nem no plano internacional, nem no interno. O dispositivo, portanto, desconsidera a estrutura constitucional de recepção dos tratados e cria um claro descompasso com o sistema vigente.
Argumenta-se, em defesa da proposta, que a referência à “personalidade internacional” teria como finalidade reforçar, no plano infraconstitucional, a garantia dos direitos fundamentais reconhecidos pelo Brasil em instrumentos internacionais, inclusive para indivíduos estrangeiros, refugiados, apátridas ou em situação migratória irregular. Trata-se, sem dúvida, de um valor importante, e esta autora compartilha integralmente da premissa de que todos os indivíduos sob jurisdição brasileira devem gozar dos direitos e liberdades fundamentais consagrados nos tratados internacionais internalizados pelo Estado.
Ocorre que essa proteção já está plenamente assegurada pelo ordenamento vigente. O artigo 5º da Constituição estabelece, em seu caput, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, garantindo aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país os mesmos direitos fundamentais. Ainda que de forma implícita, a proteção se estende também àqueles que, mesmo em situação irregular, estejam no território nacional, em consonância com a interpretação consolidada em matéria de direitos humanos.
A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (internalizada pelo Brasil por meio do Decreto nº 7.030/2009) não apresenta definição da expressão “Estado signatário” no artigo 2 (1), que trata de alguns conceitos fundamentais aplicáveis à Convenção. Apesar disso, o uso da expressão “Estado signatário” no artigo 77 (relativo às funções dos depositários) e no artigo 79 (relativo à correção de erros) revela que a Convenção reconhece, de forma pragmática, a distinção entre Estados que assinaram o tratado (mas ainda não ratificaram) e aqueles que consentiram plenamente em se obrigar (Estados contratantes).
Conclusões
Diante das múltiplas objeções aqui apresentadas, a manutenção do parágrafo único do artigo 1º, tal como redigido no Projeto de Lei nº 4/2025, revela-se injustificável. É certo que a centralidade do indivíduo no Direito Internacional contemporâneo constitui realidade cada vez mais reconhecida. No entanto, o dispositivo compromete a coerência interna da ordem legal nacional, embaralha planos normativos distintos (o interno e o internacional) e incorpora noções dogmaticamente imprecisas.
Nesse contexto, impõe-se uma escolha clara: ou o dispositivo é substancialmente reformulado, com base em fundamentos jurídicos sólidos e linguagem tecnicamente apropriada, ou deverá ser suprimido do texto final do projeto.
[1] CANÇADO TRINDADE, Antonio Augusto. International Law for Humankind: Towards a New Jus Gentium. General Course on Public International Law. Recueil des cours de l’Académie de droit international de La Haye, v. 316, 2005, p. 9-439, em especial p. 261.
[2] Ibid, p. 262-263.
[3] TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. A Humanização do Direito Internacional. Belo Horizonte. Editora Del Rey, 2015.
[4] REZEK, Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 20ª ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 166-167.
[5] Internalizado pelo Decreto 4.388/2002.
[6] STF, Agravo Regimental na Carta Rogatória 8.279-4, Rel. Min. Celso de Mello, em 17.06.1998.
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