A doação na reforma do Código Civil
30 de abril de 2025, 15h19
A reforma do Código Civil, autuada como PL 4/2025 junto ao Senado, constitui, ao menos formalmente, uma das mais ingentes alterações que já se concebeu para a codificação civil brasileira. Ao que parece [1], a reforma propõe modificar ou revogar 897 artigos dos 2.063 vigentes — isto é, 43,5% — e, ainda, acrescentar 300 novos dispositivos. Sua abrangência é de tal monta, que pretende até mesmo modificar a consagrada estrutura pandectística do Código Civil, adicionando-lhe novo livro.

Uma reforma dessa magnitude é, ao menos em princípio, indício de uma civilística brasileira atuante, propositiva e imersa no mundo contemporâneo. Todavia, a organização de um Código Civil — ou de uma reforma abrangente — pressupõe, em verdade, uma distância equilibrada entre extremos: nem tanto à teoria, nem tanto à praxe; nem tanto aos livros, nem tanto ao foro. O codificador deve, antes de tudo, cultivar o meio termo: é imprescindível a ele o conhecimento da prática, dos casos polêmicos, das dificuldades interpretativas e da jurisprudência nacional. É preciso, entretanto, que ele conheça suficientemente a produção dogmático-teórica, pois só ela pode lhe fornecer os instrumentos para retirar algo minimamente geral — e, portanto, codificável — do conhecimento pontual, parcial e concreto que a vida comum traz.
Além disso, nem toda novidade do ponto de vista socioeconômico constitui uma novidade jurídica: assim, o surgimento dos carros em nada alterou dogmaticamente o contrato de compra e venda ou a tradição, pois, tendo tais conceitos sido forjados com razoável grau de abstração, eles não dão conta apenas daquilo que já existe, mas de muito do que pode vir a existir.
O direito apenas funciona no plano normativo porque ele abrange o potencial. É por isso que certos conceitos jurídicos — como “bem”, “sujeito”, “patrimônio”, “herança”, “propriedade” — sobrevivem, sem alterações essenciais, há dois milênios, sendo até mesmo possível reabilitar alguns deles, como propõe a reforma fazer com o fideicomisso. Contudo, para compreender a potencialidade desses conceitos, é preciso algum grau de abstração e de teoria. A bem da verdade, o encanto com a novidade, sem mediação pela tradição, é incompatível com a noção de código.
A reforma do Código Civil num país que teve como paradigma de civilista o inexcedível Teixeira de Freitas tem de se haver com a epígrafe que o insigne jurista apôs ao seu esboço: quod omnes tangit ab omnibus approbari debet, i.e., aquilo que atinge a todos, por todos deve ser aprovado. E é precisamente por essa razão que me parece conveniente lançar aqui uma análise da reforma.
Observando que, até o momento, as críticas levantaram aspectos de relevante preocupação, mas as defesas se mantêm encomiásticas, exaltando o caráter atualizador da reforma, parece-me convir analisá-la, à semelhança do que fez Rui Barbosa com o projeto de Clóvis Bevilaqua — ou, ainda, Conselheiro Rebouças à Consolidação de Teixeira de Freitas — passando em revista artigo por artigo. Sem querer arvorar-me em fervoroso apologeta, nem em zoilo casmurro, parece-me possível iniciar um debate franco, técnico e responsável. Evidentemente, não é possível submeter toda a reforma a exame, dada sua extensão, mas a seleção de institutos específicos pode mostrar ao leitor, a partir do particular, tendências que atravessam todo o intuito reformador.
A avaliação de uma norma jurídica que pretenda ser inserta num Código Civil deve seguir, a meu ver, os seguintes critérios: utilização da norma culta, especialmente a aplicada no meio jurídico e no Código Civil; coerência interna e sistemática da norma; necessidade da norma em face do sistema; existência de inovação lastreada na tradição jurídica ou em estudos dogmáticos minimamente conclusivos. É essa avaliação técnica que se pretende iniciar aqui.
O primeiro instituto jurídico cujas alterações gostaria de analisar é o da doação. Por mais que não me conste tratar-se de instituto especialmente problemático, que gere relevantes diatribes no foro ou na academia, surpreendeu-me a quantidade de modificações substanciais a que a doação foi submetida. Passo, então, a tecer notas críticas incipientes, contando com que a comunidade jurídica, oxalá animada por esta pequena iniciativa, preste sua contribuição para suprir as lacunas que inevitavelmente se encontram numa empreitada desse jaez.
Aceitação e contrato
A reforma propõe duas alterações no artigo 538, isto é, na definição do contrato de doação: trocar o termo “liberalidade” pela expressão “ato de liberalidade”; inserir, ao final do artigo, a oração “que os aceita”. Já no artigo 543, que trata da dispensa da aceitação da doação pura em favor de incapaz, são duas as alterações: a adição da oração “mas pode seu representante justificar a não aceitação, se houver justa causa”; a inclusão de um parágrafo único, no qual se afirma que “[s]e com encargo, caberá ao representante do incapaz aceitá-la ou não, justificando sua decisão”.

A utilização da expressão “ato de liberalidade” parece-me indiferente, sendo abonada alhures no CC (cf. artigos 1.911, 2.004 CC). Todavia, as alterações nos artigos 538 e 543, CC, que buscam ressaltar o caráter contratual da doação padecem de má técnica legislativa em razão de a doação já se encontrar codificada junto aos contratos — que, por definição, são negócios jurídicos bilaterais formados por oferta e aceitação. Na acepção moderna do termo “código”, o local em que se positiva determinada norma não é mero acidente, mas diz algo sobre sua essência, sobre sua natureza jurídica. Tornar explícito aquilo que decorre implicitamente da codificação é fazer tábula rasa da noção de código, permitindo que a alteração cause desarmonia entre a definição de doação e a dos outros contratos, que não explicitam a necessidade de aceitação. Do ponto de vista histórico, não poderia haver dúvida nenhuma: nos trabalhos preparatórios ao CC/16, os membros da comissão ressaltaram ao menos oito vezes [2] que pretendiam adotar a teoria contratual para a doação e, mesmo assim, não julgaram conveniente explicitar esse caráter.
Em relação ao absolutamente incapaz, para quem a aceitação da doação pura é objeto de presunção relativa, a explicitação da possibilidade de recusa é desnecessária, já que ela também decorre da própria noção contratual. Afinal, se não houvesse possibilidade de recusa (i.e., fosse absoluta a presunção de aceitação), o contrato, como negócio jurídico bilateral, estaria desfigurado. Anoto, neste passo, que a regra de presumir a aceitação da doação aos incapazes vem da praxe tabeliã do direito luso-brasileiro, em que se admitia que o tabelião funcionasse como gestor de negócios do ausente. [3]
Dada sua origem na gestão de negócios, sempre se entendeu que a avaliação da conveniência era possível. Já o parágrafo único, ao admitir a recusa motivada pelo representante legal, é norma que decorre naturalmente do regime geral da representação legal, nada acrescentando de novo: afinal, se o tutor pode aceitar doação com encargo em nome do incapaz (artigo 1.748, II, CC), está implícito o poder de recusá-las pelo princípio qui potest maius potest minus.
Assim, parece-me que essas alterações são desnecessárias, desconsiderando que elas já decorrem do sistema. Além disso, geram uma desconformidade entre a definição da doação e a de outros contratos.
Doação verbal
No artigo 541, CC, que regula a forma aplicável ao contrato de doação, o caput é mantido, mas os parágrafos são alterados: o parágrafo único se torna § 1º, ao passo que se adicionam, em seguida, os §§ 2º e 3º.
Quanto à nova redação proposta para o artigo 541, § 1º, que trata da doação verbal, o acréscimo de “ou de bens móveis de uso pessoal” não parece necessário, na medida em que tais bens podem, ao menos parcialmente, se encaixar na categoria anterior — isto é, “bens móveis e de pequeno valor”. Assim, não se trata de uma categoria, mas de um desdobramento impreciso, que pode ironicamente contradizer o critério anterior.
A noção de bens de uso pessoal aparece, por exemplo, na lista de bens excluídos da comunhão parcial (artigo 1.659, V, CC), na participação final nos aquestos (artigo 1.680, CC) e nos passíveis de serem inclusos em codicilo (artigo 1.881, CC). Do modo como está redigido, o artigo parece conceber que o bem móvel de uso pessoal não precisa ser de pequeno valor diante do seu caráter disjuntivo. Isso, todavia, leva a um problema grave: joias são bens de uso pessoal, mas de alto valor; podem ser doadas por um doador que não seja especialmente rico? Esse exemplo mostra a contradição entre os dois critérios.
Com efeito, um dos critérios fundamentais que guia a forma dos negócios jurídicos é o seu valor (cf. artigo 108, CC). (É verdade que, com a alteração pretendida pela reforma nesse último artigo, submetendo todo negócio de disposição sobre bem imóvel à forma pública, independentemente do seu valor, pode-se pôr em dúvida essa afirmação). Nesse ponto, a alteração proposta é desnecessária: a forma deve se guiar, nesse caso, pela modicidade do valor. Teria andado melhor a Reforma se tivesse cumulado os requisitos de modo conjuntivo, como se faz no codicilo: ao regulá-lo, o atual artigo 1.881, CC, abre a possibilidade de “legar móveis, roupas ou joias, de pouco valor, de seu uso pessoal”, cumulando o uso pessoal com a modicidade do valor.
A reforma propõe a inclusão de um § 2º, assim redigido: “[p]ara a aferição do que seja bem de pequeno valor, nos termos do que consta do § 1º deste artigo, deve-se levar em conta o patrimônio do doador”. A previsão é digna de elogio, pois explicita o critério de avaliação da modicidade do valor, que deve guiar toda a regulação da doação manual. Esse critério, além de não decorrer tão claramente do sistema, está baseado em estudos doutrinários prévios e se relaciona bem com outras previsões, que vinculam a avaliação geral da doação mais à figura do doador que à do donatário.
Por fim, a reforma pretende ainda a inclusão de um longo § 3º, cujo teor é o seguinte: “[é] válida a doação de valores pecuniários empregados pelo donatário para o pagamento do preço ao alienante na compra de bens, ainda que não declarada expressamente a liberalidade no instrumento contratual e ainda que o pagamento tenha sido feito diretamente ao alienante”. De fato, esse § 3º é fruto de um problema de perspectiva: um Código não pode regular situações nem muito concretas, nem muito abstratas. Em vez disso, o legislador tem de tomar as situações concretas que causam problemas, analisá-las por meio de conceitos jurídicos e verificar se, nesse grau médio de abstração, a regulação é adequada.
A concretude excessiva da norma proposta pode ser percebida pelas limitações que o artigo parece trazer:
- mencionar valores pecuniários, sendo que o regime geral da doação abrange os bens em geral;
- referir-se ao pagamento de “preço”, mesmo sendo o adimplemento de uma obrigação contratual muito mais diverso que o modelo das prestações da compra e venda;
- dispensar declaração expressa;
- prever situação de pagamento por delegação. Além disso, a norma confunde o plano obrigacional (em que há, por exemplo, compradores e vendedores) e o plano real ou dispositivo (em que há alienantes e adquirentes).
A situação que subjaz parece ser a seguinte: sendo V vendedor e C, comprador, em vez de C pagar o preço diretamente a V, D, terceiro-doador, intervém e, de duas uma: ou realiza uma doação a C para que este possa pagar o preço a V; ou realiza uma transferência direta a V, caracterizando aquilo que a doutrina alemã chama “cadeia prestacional triangular”, na medida em que D, ao realizar uma atribuição direta a V, adimple obrigação devida por C a V.[4]
Não vejo a razão de ser desse artigo. Em primeiro lugar, a dispensa de declaração expressa da doação não me parece justificada, na medida em que a qualificação jurídica dos contratos não supõe nem depende do nomen iuris atribuído pelas partes. Em segundo lugar, as atribuições feitas por cadeia prestacional triangular (ou por via transversa) são admitidas no direito brasileiro: na verdade, são essenciais em institutos cambiários como a letra de câmbio e o cheque. O § 3º, portanto, não parece adicionar nada novo e ainda provém de situação excessivamente concreta, em profunda desarmonia com o grau de generalidade do restante da regulação da doação.
Adiantamento da legítima e dever de colação
A primeira alteração do artigo 544 está em pôr no singular as expressões “ascendente” e “descendente”. Tratando-se de categorias que podem ter diversos membros, em diversos graus, é correto seu uso no singular. Porém, é preciso observar que nem sempre a reforma obedece a esse mesmo critério: no caso do art. 1.207, que regula a accessio temporis, propõe-se trocar “antecessor” por “antecessores”, sendo que a noção de antecessor envolve toda a cadeia possessória anterior. A opção pelo singular é correta, mas deveria ter sido observada uniformemente. Falta, assim, padronização.
A segunda alteração do artigo está na troca do termo “herança” por “legítima”, adicionando-se a seguinte limitação ao final: “respeitadas as exigências legais para a dispensa de colação”. Com efeito, como a colação é instituto ligado à sucessão legítima necessária, a alteração tornou o artigo mais técnico. O cônjuge, por sua vez, foi retirado da lista, já que a reforma propõe excluí-lo do rol de herdeiros necessários (cf. o artigo 1.845 da reforma).
No entanto, há um problema: o artigo menciona apenas as doações “de ascendente a descendente”, ao passo que o artigo 2.003 da reforma dispõe que a colação visa a igualar “as legítimas dos ascendentes e dos descendentes”. Isto é: o artigo 544 da reforma supõe o dever do descendente de levar bens doados à colação, ao passo que o artigo 2.003 da reforma o amplia para abranger também os ascendentes. Por outro lado, a reforma não propõe alteração no atual artigo 2.002, CC, que obriga apenas os descendentes ao dever de conferir os bens doados. É preciso esclarecer: a quem incumbe o dever de colação dos bens doados? Aos descendentes, sem dúvida; quanto aos ascendentes, porém, há uma antinomia que precisa ser resolvida. Note-se que os atuais arts. 544 e 2.003 guardam paralelismo ao mencionar os descendentes e o cônjuge.
Desse modo, considero positiva a primeira alteração, mas é preciso resolver a aparente antinomia que há entre o artigo 544 e o 2.003 da reforma.
[1] Diante da magnitude da reforma, limito-me a reproduzir os dados constantes do Senado Federal, cf. PACHECO, Rodrigo. Apresentação, in: A Reforma do Código Civil. Brasília: Senado Federal, 2025, pp. 11-2.
[2] Apontando ou supondo a natureza contratual da doação nos debates, cf. Projecto de Codigo Civil Brazileiro: Trabalhos da Comissão Especial da Câmara dos Deputados. 8 vols. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1902, esp. v. 2, pp. 24, 110, 121; 370; v. 3, p. 139; v. 4, pp. 149, 216; v. 6, p. 10. Mesmo quem entendia que a doação não era contrato, via-a como bilateral, cf. v. 4, p. 263.
[3] PORTUGAL, Domingues Antunes. Tractatus de donationibus. 3ª. ed. Lugduni: Anisson & Posuel, 1699, p. 3, § 22.
[4] A respeito, cf., por todos, WIELING, H. J. Bereicherungsrecht. 3ª ed. Berlin: Springer, 2004, pp. 87-9.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!