Opinião

Anistia às multas aplicadas em casos de suposto abandono da causa no processo penal

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25 de abril de 2025, 6h01

Em tempos nos quais se fala muito do instituto jurídico da anistia, há precisamente um assunto de extremo interesse para a advocacia, que passa despercebido da comunidade jurídica.

Pedro França/STJ
Advocacia, advogado, sustentação oral, documento

A Lei 14.752/2023 deu nova redação ao artigo 265 do Código de Processo Penal, que positivava a aplicação de pena de multa ao defensor, a critério do juiz, nos casos de abandono do processo, senão por motivo imperioso.

A antiga redação era imprecisa e deixava ao arbítrio do julgador, tanto aquilatar quando o suposto abandono estaria configurado, bem como em que circunstâncias tal sanção seria estabelecida, em dissonância com a nossa ordem constitucional inaugurada com a Constituição de 1988. Ao advogado sequer era dado o direito de defesa, sendo também inexistente qualquer previsão legal de recurso contra a decisão impositiva de multa.

Nessa toada, o artigo 265 do CPP, a partir de 2023, passou a ter a seguinte redação:

Art. 265. O defensor não poderá abandonar o processo sem justo motivo, previamente comunicado ao juiz, sob pena de responder por infração disciplinar perante o órgão correicional competente. (Redação dada pela Lei nº 14.752, de 2023)

§ 1º A audiência poderá ser adiada se, por motivo justificado, o defensor não puder comparecer. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

§ 2º Incumbe ao defensor provar o impedimento até a abertura da audiência. Não o fazendo, o juiz não determinará o adiamento de ato algum do processo, devendo nomear defensor substituto, ainda que provisoriamente ou só para o efeito do ato. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

§ 3º Em caso de abandono do processo pelo defensor, o acusado será intimado para constituir novo defensor, se assim o quiser, e, na hipótese de não ser localizado, deverá ser nomeado defensor público ou advogado dativo para a sua defesa. (Incluído pela Lei nº 14.752, de 2023)

Uma vez que a inovação do legislador extirpou do nosso ordenamento jurídico a aplicação da sanção de multa nos supostos casos de abandono da causa no processo penal, contudo, havia dúvida com relação às imposições aplicadas antes da lei revogadora.

Proposta de indulto de multas a advogados

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil propôs, para corrigir eventuais distorções, a indicação 49.0000.2024.010755-4 à Presidência da República, com proposta de indulto das multas aplicadas aos advogados e advogadas por abandono do processo penal, na forma do revogado artigo 265 do Código de Processo Penal, sendo inédita a indicação de indulto proposta pela OAB, nos 94 anos de existência da instituição. Tal proposta de indulto, como se sabe, foi ignorada pela atual Presidência da República.

Uma vez que o Poder Executivo poderia conceder o indulto às penas de multa impostas anteriormente à edição da Lei 14.752/2023, e o pedido da OAB não foi atendido, resta à Ordem requerer a anistia junto ao Congresso Nacional, o que envolve questões políticas, muito embora se saiba que a OAB tem força política suficiente ao embate dentro e fora do Parlamento.

Spacca

Um dos objetivos seria reduzir o impacto financeiro sobre o cotidiano dos advogados que laboram no âmbito do processo penal, como corolário democrático do direito à ampla defesa da liberdade, que, afora a vida, é um dos bens jurídicos tutelados de maior importância, segundo o artigo 5º, inciso LV, da Constituição: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”, ou seja, punir o advogado com tal medida fiduciária é prejudicar o defendido e contribuir para uma cultura de penalidades pautada na arrecadação.

Isso porque, como de conhecimento geral, os honorários advocatícios, no caso, de cariz contratual, constituem a verba alimentar do advogado, que dão o sustento de si e de sua família, levando também em consideração que a maioria dos advogados não auferem grandes quantias mensais e lutam bravamente frente a um Judiciário hermético.

Muitas vezes, os valores previstos para a referida multa são incoerentes com os atuais ganhos recebidos pelos advogados no Brasil. Nesse sentido, ao permitir que os valores da multa variem entre os parâmetros de 10 a 100 salários mínimos, compromete-se a própria subsistência da classe, uma vez que de acordo com censo realizado no ano de 2023, os vencimentos nacionais dos advogados giram em torno de dois a dez salários mínimos mensais (Perfil ADV.2023). Há, portanto, ofensa aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

Pressão sobre a advocacia

Outro ponto de atrito, que se volta à imprecisão da norma revogada, dá azo a aplicações distorcidas da norma. O Brasil é um país imenso, e, em muitas localidades, o exercício da advocacia democrática atuante pode sofrer pressões ou retaliações de elites políticas e econômicas locais. Como a norma criticada deixava a mensuração do suposto abandono ao alvedrio do juiz, como tudo o que não está precisa e objetivamente plasmado na lei, pode haver interpretações em detrimento do livre exercício da advocacia.

Nesta esteira, a anistia das cominações anteriores à Lei 14.752/2023, na redação anterior do artigo 265 do CPP, é medida de direito, na medida em que se verificava desrespeito ao contraditório e à ampla defesa na aplicação da penalidade ao advogado, e, por consequência, a norma revogada mitigava a autonomia da atividade da advocacia e a ingerência da OAB sobre as atividades profissionais e postura ética do advogado, enquanto autarquia federal sui generis, no seu papel constitucional, de investigar e eventualmente, punir tal conduta, de acordo com o Estatuto da Advocacia.

Nessa linha, há várias decisões judiciais no sentido de inaplicabilidade da multa, inquinada ilegal e inconstitucional, mantendo o princípio de não interferência institucional.

Já foram proferidas diversas decisões anulando a imposição de multa nos termos aqui apresentados, fundamentadas tais decisões na própria lei que extirpou do ordenamento jurídico a multa em análise, além do argumento da incompatibilidade existente entre o Estatuto da OAB (Lei 8.609/94), em seu artigo 6º, que estabelece a inexistência de “hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público”.

Anistia se faz necessária?

Mas se houve uma lei que acabou com a multa anteriormente prevista na antiga redação do artigo 265 do CPP, por que seria necessária a anistia, se existe o princípio da lex mitior?

O Judiciário já está assoberbado de processos, a Justiça por si só é custosa e o cálculo das custas depende do valor da causa. Tal medida evitaria uma série de litigâncias desnecessárias, vista pela análise econômica do processo.

Sob outro aspecto, os tribunais estariam dispostos a abrir mão de tal receita? Se as advogadas e advogados não colocarem a discussão a litígio judicial, a resposta provável é um retumbante “não”.

Portanto, é possível observar que o entendimento se mostra coerente com a realidade jurídica hodierna, no que tange ao respeito, à compreensão e à importância da hermenêutica aplicada ao caso em exame, ressaltando que o advogado não está livre de responsabilização profissional, mas a correição é atribuída, legal e constitucionalmente, à OAB.

Entretanto, ainda remanescem decisões condenando advogados ao pagamento de multas desproporcionais por suposto abandono da causa em âmbito processual penal. Tais decisões vão de encontro aos princípios basilares do direito e distorcem a definição de justiça e proteção dos acusados no processo penal.

Se ainda resta alguma dúvida sobre a imperiosa necessidade de indulto das sanções atinentes às multas cominadas sob a égide do antigo artigo 265 do CPP, a verificação de que a Lei 14.752/2023 é uma lex mitior acaba com qualquer óbice à almejada anistia A lei posterior que revoga lei anterior, juridicamente mais abrasiva à pessoa penalizada, revoga todos os dispositivos legais anteriores sobre a matéria. O princípio se aplica como medida de direito a evitar distorções sistêmicas para profissionais numa mesma situação jurídica.

Contra o ordenamento constitucional

Diante de todo o panorama investigado, fica evidente que a aplicação da multa criticada não condiz com nosso ordenamento constitucional, e malfere a concepção de justiça que a advogada e o advogado representam na democracia, sem contar que a imposição de multa da forma que era realizada sob a égide do artigo 265 do CPP revogado não condiz com a realidade social dos advogados e advogadas do Brasil.

Diante de todos os enfoques analisados, é de premência a anistia aos advogados e advogadas do Brasil ao pagamento das multas previstas no vetusto artigo 265 do CPP, no ambiente democrático, que se mostra uma proposta coerente e acertada, merecendo, portanto, ser encampada por toda a categoria profissional envolvida, extirpando do nosso ordenamento jurídico elementos contrários à Constituição: o livre exercício da advocacia, que se submete, por lei, à fiscalização profissional regulada pela OAB, em ecossistema de normas infralegais de ética e conduta da profissão, respeitando suas regras próprias e metodologia exclusiva, bem como a proteção da verba alimentar das advogadas e advogados, potencialmente afetada por uma sanção ilegal e inconstitucional, porquanto constituem categoria profissional autônoma que depende dos honorários, tanto contratuais, quanto sucumbenciais, para seu sustento e de sua família.

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Referências

https://www.oab.org.br/noticia/62188/perfil-adv-conheca-o-resultado-do-primeiro-estudo-demografico-da-advocacia-brasileira

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11719.htm

 

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