Medidas atípicas e processo do trabalho: olhar a partir da decisão do STF na ADI 5.946 (parte 2)
9 de abril de 2025, 6h04
Continuação da parte 1

Corroborando com a posição adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, a doutrina igualmente reconhece a adoção das medidas executivas atípicas, em caráter excepcional ou subsidiário, quando exauridas as vias típicas:
“(…) tem o órgão jurisdicional de aferir se a técnica processual destinada pelo legislador infraconstitucional para a tutela ressarcitória pecuniária é eficaz e apropriada. Em outras palavras, tem-se de verificar se a técnica expropriatória satisfaz as exigências mínimas, no que concerne à sua eficiência, para tutela da res in iudicium deducta. Se não satisfaz, então é porque a previsão legal é inadequada para a proteção daquele caso específico, e deve ser considerada. Isso porque uma regra só é aplicável se as suas condições de incidência são satisfeitas e se a sua aplicação não é excluída pela razão motivadora da regra. O raciocínio aí implicado denota a necessidade de examinar-se a razoabilidade da aplicação do binômio condenação-execução forçada, alcançando-se mão da razoabilidade na sua acepção de razoabilidade como equidade. Evidentemente, a motivação do art. 523, CPC, está em possibilitar a prestação de uma tutela adequada e efetiva às obrigações de pagar quantia. Se tal não se dá, por inadequação dessa técnica processual, a regra não pode ser aplicada. Uma vez demonstrada a não efetividade do procedimento do art. 523 e seguintes, CPC, à espécie, o que indubitavelmente passa pela explícita motivação dessa superação legal na decisão, cumpre ao órgão jurisdicional examinar o emprego de ordem sob pena de multa coercitiva (ou outro meio de indução ou de sub-rogação) se oferece ou não aplicável ao caso concreto (art. 139, IV, CPC).” (Marinoni, Arenhart, Mitidiero, 2015, p. 529) [1].
“O modelo baseado na tipicidade das pedidas executivas tende a alcançar resultados satisfatórios na medida em que as situações de direito material e os problemas que emergem da sociedade sejam parecidos. Nesses casos, é até mesmo conveniente a previsão de medidas similares para as hipóteses em que problemas parecidos se reproduzem, a fim de que se observe em relação àqueles que estejam em uma mesma situação de direito material um procedimento também similar. Quando, porém, o modelo típico de medidas executivas mostra-se insuficiente, diante de pormenores do caso, faz-se necessário realizar-se um ajuste tendente a especificar o procedimento, ajustando-o ao problema a ser resolvido. Para tanto, é de todo conveniente que o sistema preveja um modelo atípico ou flexível de medidas executivas.” (Medina, 2017. p. 936). [2]
Há de se pontuar, contudo, que a possibilidade de apreensão de passaporte e de CNH não é uníssona, como se observa também de respeitável doutrina:
“Ainda que adequadas fossem, a retenção de CNH e do passaporte não parecem ser medidas necessárias (no sentido de exigíveis), uma vez que outras medidas podem, em tese, ser utilizadas sem causar igual gravame ao executado – como, por exemplo, a simples restrição do uso de cartões de crédito. A retenção de documentos pessoais é medida que termina por restringir a liberdade de ir e vir do executado, mostrando-se, a princípio, não razoável, por ir de encontro ao dever de equivalência, e desproporcional, por restringir demais o direito à liberdade em favor do direito de crédito pecuniário do exequente.” (Didier Jr.; Cunha; Braga; Oliveira, 2017, p. 246) [3]
Ainda sobre o esgotamento de medidas típicas, como pressuposto à constitucionalidade da aplicação dos meios atípicos, destaca-se decisão proferida pelo STJ:
“AGRAVO INTERNO. HABEAS CORPUS. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. MEDIDAS EXECUTIVAS ATÍPICAS. CONSTITUCIONALIDADE. ADI N. 5.941/DF. SUSPENSÃO DA CNH. NÃO CONHECIMENTO. APREENSÃO DO PASSAPORTE. PRÉVIO ESGOTAMENTO DOS MEIOS TRADICIONAIS PARA SATISFAÇÃO DO CRÉDITO. ILEGALIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. 1. Nos termos da jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça, a suspensão da Carteira Nacional de Habilitação não configura, por si só, ofensa direta e imediata à liberdade de locomoção do paciente, razão pela qual não pode ser impugnada por habeas corpus. 2. O Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento da ADI nº 5.941/DF, considerou constitucional a adoção de medidas executivas atípicas para se buscar a satisfação de crédito. 3 . ‘A jurisprudência desta Corte Superior reputa, em tese, lícita e possível a adoção de medidas executivas indiretas, inclusive a apreensão de passaporte, desde que, exauridos previamente os meios típicos de satisfação do crédito exequendo, bem como que a medida se afigure adequada, necessária e razoável para efetivar a tutela do direito do credor em face de devedor que, demonstrando possuir patrimônio apto a saldar o débito em cobrança, intente frustrar injustificadamente o processo executivo’ ( AgInt no RHC 128.327/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, DJe 15/4/2021)”. 4 . Na hipótese, as instâncias de origem se preocuparam em esgotar os meios executivos ordinários para tentar satisfazer o crédito, tendo lançado mão de via atípica como ‘ultima ratio’, a qual, diante das circunstâncias, se mostra razoável e proporcional para o caso de inadimplemento de verbas de natureza alimentar. 5. Agravo interno a que se nega provimento.” (STJ – AgInt no HC: 711.185 SP 2021/0391817-1, relator.: ministra Maria Isabel Gallotti, data de julgamento: 24/4/2023, T4 – 4ª Turma, data de publicação: DJe 27/4/2023)
A título de exemplo, e como reforço da criticidade jurisprudencial envolvida na aplicação da via atípica, tem-se que, havendo prova pré-constituída no sentido de que o devedor se ativa como motorista profissional, eventual ordem de suspensão da sua carteira de habilitação, apta para o exercício de atividade remunerada, violará o livre exercício da profissão, na medida em que a carteira de habilitação, com expressa indicação de categoria profissional, é requisito legal que possibilita o desempenho da função de motorista profissional.
Os fundamentos ora suscitados estão contemplados nas recentes decisões proferidas pela Subseção II Especializada em Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho:
“MANDADO DE SEGURANÇA. RECURSO ORDINÁRIO. ATO COATOR QUE DETERMINA, EM SEDE DE EXECUÇÃO, A SUSPENSÃO DA CNH E DO PASSAPORTE DOS IMPETRANTES. CABIMENTO DA AÇÃO MANDAMENTAL. CARACTERIZAÇÃO DA ABUSIVIDADE DO ATO COATOR. VIOLAÇÃO A DIREITO LÍQUIDO E CERTO. ORDEM CONCEDIDA. PRECEDENTES. 1. Conquanto a medida hábil contra ato que determina a suspensão de passaporte seja, a priori, o Habeas Corpus, a jurisprudência desta Corte orienta no sentido de que, quando determinada a suspensão concomitante de passaporte e de CNH, é cabível Mandado de Segurança para impugnar o ato quanto às duas restrições. Precedentes. 2. O art. 139, IV, do CPC/2015 dispõe que o juiz, na direção do processo, pode determinar a adoção de medidas atípicas, dentre as quais se inclui a suspensão da CNH e do passaporte em sede de execução. 3. Entretanto, deve-se observar que a validade dessas medidas está condicionada à demonstração de sua utilidade no processo, para a efetiva realização da coisa julgada, pois, em verdade, as chamadas medidas atípicas têm lugar nos casos em que o devedor, embora possuidor de patrimônio suficiente para satisfazer a obrigação contida no título judicial, emprega meios ardilosos para dela se esquivar. E mesmo nessa hipótese tais medidas não estão imunes à pesquisa sobre a observância dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Logo, não se admite que a determinação de suspensão dos documentos funcione como meio punitivo ao executado. 4. No caso, o Ato Coator não contém indicativo algum de que a medida adotada poderia contribuir, de forma concreta, para a satisfação da obrigação definida no título executivo: não se menciona a hipótese de ocultação de patrimônio dos recorrentes, ou mesmo a eventual incompatibilidade entre seu estilo de vida e a situação patrimonial revelada no processo Assinado eletronicamente por: EDUARDO DE SOUSA SANTOS – Juntado em: 01/12/2023 16:10:51 – d7456af Fls.: 8 (31) 3296-5072 | melloemelloadvogados.com.br Av. Presid. Tancredo Neves, 2.640 – Conj. 503 – Bairro Castelo – CEP: 31.330-472 – Belo Horizonte | 8 matriz. Ao revés, o Ato Coator, apenas e tão somente determina a retenção da CNH e do passaporte dos impetrantes. 5. Nesse panorama, portanto, em que a ausência de satisfação do título judicial se revela como efeito da inexistência de patrimônio do devedor, a medida adotada no Ato Coator, longe de se caracterizar como instrumento coercitivo para o pagamento da dívida, constitui mera penalização dos recorrentes, circunstância que desnuda a abusividade do ato, porque decretado em descompasso com o objetivo da norma contida no art. 139, IV, 6. Recurso Ordinário conhecido e do CPC de 2015. provido” (ROT1941-87.2021.5.05.0000, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, relator ministro Luiz Jose Dezena da Silva, DEJT 17/03/2023).
“RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. EXECUÇÃO. ADOÇÃO DE MEDIDAS COERCITIVAS ATÍPICAS. SUSPENSÃO DA CNH E DO PASSAPORTE. ADI N.º 5.941. CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 139, IV, DO CPC DE 2015. MOTORISTA PROFISSIONAL. EXERCÍCIO DE ATIVIDADE REMUNERADA GRAVADA NA CARTEIRA NACIONAL DE HABILITAÇÃO – CATEGORIA’ AE ‘. CABIMENTO DO MANDADO DE SEGURANÇA NA FRAÇÃO ESPECÍFICA DA SUSPENSÃO DA CNH. SUPERAÇÃO DA COMPREENSÃO DEPOSITADA NA ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL N.º 92 DA SBDI-2 DO TST. No caso concreto, verifica-se que o presente Mandado de Segurança foi manejo contra ato do Juízo da 19.ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte que, na execução que se processa nos autos da Reclamação Trabalhista nº 0011080-36.2016.5.03.0019, determinou a suspensão da Carteira Nacional de Habilitação – CNH e do passaporte do impetrante, com base no artigo 139, IV, do CPC, após a frustração dos vários meios ortodoxos possíveis para que o exequente pudesse receber o que lhe garantiu o título judicial. 7. Portanto, havendo prova pré-constituída no sentido de que o impetrante se ativa como motorista profissional, a ordem de suspensão da sua CNH, gravada para o exercício de atividade remunerada e estampada com a categoria profissional” AE”, atenta contra o livre exercício da profissão, na medida em que a habilitação oficial funciona como uma das qualificações exigidas por lei para o desempenho da profissão de motorista. 8. Recurso ordinário conhecido e provido apenas no capítulo alusivo à suspensão da Carteira Nacional de Habilitação, com ordem de imediata liberação do documento” (ROT-0015210-82.2023.5.03.0000, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, relator ministro Luiz Jose Dezena da Silva, DEJT 29/11/2024).

O que se extrai das decisões proferidas pela SDI-2 do TST quanto à aplicação das medidas atípicas previstas no artigo 139, IV, do CPC, em caráter excepcional, é justamente o dever de cautela que se espera das decisões judiciais, as quais devem perseguir – precipuamente – a entrega da prestação jurisdicional, dentro dos limites da proporcionalidade e da razoabilidade. Punir o devedor em sua liberdade e criar constrangimento sem qualquer utilidade e eficiência à satisfação do crédito, é um retrocesso histórico: uma repristinação dos tempos em que a execução pessoal.
2.1. ADI 5.941 e seus reflexos
O Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade do artigo 139, inciso IV, do CPC, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.941: por maioria, o colegiado admitiu a possibilidade de, caso a caso, ser examinada a aplicabilidade de medidas indutivas, coercitivas ou sub-rogatórias, consistentes em suspensão do direito de dirigir, apreensão de passaporte e proibição de participação em concursos públicos ou licitações, obedecidos o devido processo legal, a proporcionalidade, a eficiência, em respeito à liturgia imposta pelo sistema processual no Brasil.
Os princípios constantes dos artigos 1º, 8º e 805 do CPC foram ressalvados pelo STF, ao declarar a constitucionalidade do artigo 139, IV, do CPC, sob a ressalva de que a aplicação deve atentar-se ao caso concreto, preservando-se os princípios processuais e constitucionais.
A decisão proferida pelo STF autoriza a aplicação da via atípica, desde que o Juiz fundamente o porquê da medida excepcional (jamais ordinária) e revele – mediante robusto contexto fático e probatório – estar diante de um típico devedor intencional: práticas de litigância de má-fé e de não cooperação (i.e., medidas procrastinatórias, tumulto processual), desvios de recursos/bens, ocultação de patrimônio e/ou estilo de vida dissonante com a insolvência declarada ao Estado.
Desta feita, ao magistrado impõe-se a cautela necessária quando da aplicação de tais medidas atípicas, sob o manto de uma fundamentação adequada e equilibrada que bem demonstre o animus do devedor em persistir nesse estilo de vida típico do fraudador contumaz, seja protelando ações em flagrante tumulto processual, seja ocultando bens ou desviando recursos para, ao fim e a cabo, se esquivar dos efeitos da execução trabalhista.
3. Considerações finais
Em arremate, afora o cenário de inação reincidente do devedor, culminada com a postura protelatória irresponsável e eivada de má-fé, bem como o comprovado esgotamento das tentativas de penhora e evidenciada a ocultação de bens (assim como respeitados outros direitos fundamentais, a exemplo do contraditório e da fundamentação), não se mostra razoável a aplicação de medida restritiva atípica, no processo do trabalho, como meio eficaz para o adimplemento do crédito, por bem ou por mal.
Salvo nas situações excepcionais decorrentes das premissas acima apontadas, imputar ao devedor restrições ao exercício de direitos alheios a sua esfera patrimonial – motivado apenas pelo dever de prestação jurisdicional eficiente e a justa necessidade de satisfação do crédito – é justificar os meios para transcender os limites do princípio da responsabilidade de natureza civil e assumir um cariz punitivo, e não de satisfação de crédito, no processo executivo.
Adicionalmente, insta registrar que o Estado dispõe de acesso amplo às plataformas integradas de informações, as quais subsidiam o Juiz no reconhecimento de eventual manobra empresarial de ocultação de bens e recursos, alcançando com eficiência toda e qualquer movimentação financeira, ainda que desafiado amplamente pela criatividade dos fraudadores, de modo que sobram meios para promover a liturgia processual em sede de execução, sem esbarrar nos limites dos direitos fundamentais.
[1] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado. 1ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.
[2] MEDINA, José Miguel Garcia. Curso de Direito Processual Civil. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 935
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