Opinião

PEC do Quinquênio: os argumentos favoráveis se sustentam?

Autor

  • André Gambier Campos

    é docente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Positivo (PPGD-UP) pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada do Governo Federal (Ipea) mestre e doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Direito do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes (Ucam).

    View all posts

25 de maio de 2024, 6h03

A Proposta de Emenda à Constituição nº 10 de 2023 (PEC do Quinquênio) é uma iniciativa do Senado. Ela prevê o pagamento de nova parcela de remuneração para membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, da União, de estados e do Distrito Federal. Tal parcela está vinculada ao tempo de atividade jurídica desses profissionais, correspondendo ao valor de 5% de suas remunerações, acrescidos a cada cinco anos de atividade, limitando-se ao máximo de 35%.

Marcello Casal Jr/Agência Brasil

O respaldo à PEC pôde ser visto já no ato de sua proposição. Esta contou com o apoio de 36 senadores (incluindo o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e o relator na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, Eduardo Gomes). Os senadores responsáveis pela proposição pertenciam a nove partidos distintos (MDB, PDT, PL, PP, PSB, PSD, PSDB, Republicanos e União) e estavam vinculados a 21 estados da federação.

Na votação da PEC nº 10/2023 na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, dos 25 senadores titulares e suplentes que efetivamente votaram, apenas 28% rejeitaram a proposta, de cinco partidos (MDB, PSD, PT, Podemos e Novo) e cinco estados da federação. A proposta foi aprovada nessa comissão e encaminhada para deliberação do Plenário do Senado no final de abril de 2024.

Durante a tramitação da PEC, vários grupos de profissionais foram acrescidos como beneficiários da nova parcela de remuneração, além de membros do Poder Judiciário e do Ministério Público (que exercem função-poder). Incluindo, entre outros: membros das advocacias públicas e das defensorias públicas da União, de estados e do Distrito Federal; membros de Tribunais de Contas da União, de estados e do Distrito Federal; delegados da Polícia Federal.

Sete questões

Múltiplos questionamentos vêm surgindo no debate público da PEC nº 10/2023, em fóruns econômicos, sociais, políticos e jurídicos. Entre esses questionamentos, podem-se mencionar os seguintes:

Spacca

1) A nova parcela a ser criada pela PEC possui natureza jurídica remuneratória ou indenizatória? É conhecido que, a depender da resposta a esta pergunta, há consequências bastante distintas, inclusive do ponto de vista tributário.

2) Caso a parcela a ser criada pela PEC tenha natureza remuneratória, ela se coaduna com o “espírito” da remuneração por meio de subsídio fixado em parcela única, tal como previsto pela Constituição Federal (artigo 39, parágrafo 4º) para a remuneração de membros do Poder Judiciário e do Ministério Público?

3) Por determinação da PEC, a nova parcela a ser criada não integra o cômputo de remuneração submetida aos limites do ‘teto constitucional’ de remuneração definido na Constituição Federal (artigo 37, inciso XI), o que pode ser um problema para a ‘racionalidade’ que rege remunerações no setor público.

4) A nova parcela a ser criada pela PEC assegura a contagem retroativa de tempo de exercício de atividade jurídica (e não apenas o tempo posterior à sua eventual aprovação), o que pode conduzir a valores elevados de pagamentos pelo setor público.

5) Aposentados e pensionistas também se beneficiam da nova parcela a ser criada pela PEC, mesmo não mais trabalhando no Poder Judiciário e no Ministério Público (ou mesmo sem nunca terem trabalhado, no caso de parcela provavelmente majoritária dos pensionistas).

6) O conceito de atividade jurídica utilizado pela PEC é bastante amplo, envolvendo até mesmo atividades de advocacia privada que membros do Poder Judiciário e do Ministério Público tenham exercido anteriormente.

7) Qual o sentido da inclusão de alguns grupos profissionais (advogados, defensores, delegados etc.) durante a tramitação da PEC e a exclusão de outros, que também exercem atividades jurídicas (pode-se pensar, como exemplo, nos analistas que trabalham no Poder Judiciário e no Ministério Público).

A justificativa

Na seção de “justificativas” que acompanha a PEC nº 10/2023, há alguns indícios de respostas, direcionados a parte desses questionamentos. Mas, neste artigo, vamos destacar uma das justificativas centrais, apresentada pela própria PEC, para a criação da nova parcela. Tal justificativa encontra-se principalmente no seguinte trecho:

A importância que essas carreiras jurídicas têm para a democracia e para o Estado de Direito demanda uma carreira bem estruturada, remunerada e atrativa para que estudantes de direito de todo o Brasil continuem vendo o serviço público como um sonho e para que membros queiram continuar atuando em suas atividades. Assim, nós não podemos permitir que bons magistrados vocacionados queiram sair das suas carreiras para irem para a iniciativa privada, para a política, ou para o exterior porque a atividade da vocação deles deixou de ser atrativa.” (“Justificação” da PEC nº 10/2023).

Ou seja, em meio às “justificativas” que acompanham a PEC nº 10/2023, há o suposto de que, por problemas de “atratividade” das condições de trabalho (com destaque para a “atratividade” da remuneração), os profissionais do Poder Judiciário e do Ministério Público estariam se desligando do setor público e se vinculando a outras oportunidades de atuação no setor privado (como na advocacia, por exemplo).

A suposta fuga de profissionais

Essa assertiva encontra respaldo nas informações oficiais que retratam as condições de trabalho desses profissionais? O foco do presente artigo é exatamente este: verificar se os profissionais do Poder Judiciário e do Ministério Público estão se desligando de seus órgãos públicos em busca de melhores oportunidades de atuação em instituições privadas.

Os dados utilizados para essa verificação são da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), que é uma fonte oficial gerida pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), disponível a todo e qualquer pesquisador interessado[1]. Os dados referem-se aos últimos 12 anos para os quais há informações disponíveis a respeito do conjunto de órgãos do Poder Judiciário estadual e federal, bem como do Ministério Público Estadual e Federal.

E o que os dados da RAIS/MTE demonstram [2]? Em primeiro lugar, eles evidenciam que, em todos os anos entre 2010 e 2021, é muito reduzido o número de profissionais que se desligam de seus órgãos. A taxa de desligamento média de todo o período é de apenas: 1) 1,2% no caso do Judiciário Estadual; 2) 3,6% no caso do Judiciário Federal; 3) 1,6% no caso do Ministério Público Estadual; 4) 1,8% no caso do Ministério Público Federal.

Explicando melhor essa taxa, pode-se pegar o caso do Judiciário Federal. Considerando os magistrados dos seus diversos órgãos, de todas as varas e todos os tribunais, de todos os graus e ramos (comum e especializados), somente 3,6% se desligam a cada ano, na média do período entre 2010 e 2021. É uma taxa muito reduzida, especialmente se comparada às taxas de desligamento de outros profissionais do Estado brasileiro.

Além disso, dos poucos profissionais que se desligam de seus órgãos, uma fração diminuta o faz por iniciativa própria (para, alegadamente, se vincular a outras oportunidades de atuação no setor privado). Ainda que com algumas variações, a proporção dos que desligam por iniciativa própria, na média dos anos entre 2010 e 2021, é de apenas: 1) 17,3% no caso do Judiciário Estadual; 2) 10,9% no caso do Judiciário Federal; 3) 22,5% no caso do Ministério Público Estadual; 4) 10,7% no caso do Ministério Público Federal.

Na verdade, em meio aos poucos profissionais que se desligam de seus órgãos, a maior parte o faz para se aposentar (e aí sim, eventualmente, começar a atuar no setor privado). A aposentadoria é a causa majoritária de desligamento dos profissionais do Poder Judiciário e do Ministério Público, Estadual ou Federal, em praticamente todos os anos entre 2010 e 2021.

Fenômeno raro

Em suma, o que os dados oficiais revelam sobre o desligamento dos profissionais do Poder Judiciário e do Ministério Público no Brasil recente? Eles estão se desligando de seus órgãos públicos em busca de melhores oportunidades de atuação em instituições privadas (da advocacia, por exemplo)?

Os dados mostram essencialmente que não. O desligamento de magistrados, promotores e outros profissionais do Poder Judiciário e do Ministério Público é um fenômeno raro e de expressão reduzida. As informações das taxas de desligamento mostram isso claramente.

Ademais, quando de fato há algum desligamento, ele com frequência é derivado pura e simplesmente de aposentadoria. As informações mostram que o desligamento por iniciativa própria de magistrados, promotores e outros profissionais do Poder Judiciário e do Ministério Público também é um fenômeno incomum e de expressão diminuta.

Conclusão

Ou seja, uma das justificativas centrais da PEC nº 10/2023, para a criação de parcela de remuneração para membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, não encontra embasamento na realidade empírica. Esses profissionais raramente se desligam do setor público por iniciativa própria, para se vincular a oportunidades de atuação no setor privado. Quando o fazem, é porque já estão se aposentando.

É verdade que outras justificativas podem, eventualmente, ser cogitadas para a instituição da parcela remuneratória acima referida. Mas não a justificativa que consta explicitamente da PEC nº 10/2023, pois ela não encontra respaldo na realidade empírica.

 


[1] A Respeito da RAIS/MTE, verificar: < https://tinyurl.com/3399dssc >. Acesso em: 08/05/2024.

[2] As informações completas acerca do desligamento de profissionais do Poder Judiciário e do Ministério Público, aqui mencionadas, podem ser acessadas em: < https://tinyurl.com/3xnnjbm5 >. Acesso em: 08/05/2024.

Autores

  • é docente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Positivo (PPGD-UP), bem como técnico de planejamento e pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!